Palestina: vencer o caos e a ocupação

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    O dia 30 de Maio de 2014 ficará para sempre na memória dos palestinianos. A vitória na Taça Challenge da Confederação Asiática de Futebol (AFC), após um triunfo por 1-0 sobre as Filipinas, significou o primeiro troféu internacional do país. Dessa forma, a Palestina garantiu o inédito passaporte para a Taça AFC, a competição de selecções mais importante do continente. As ruas de Hebron, Ramallah e Gaza encheram-se de multidões eufóricas, um cenário infelizmente muito pouco comum para aqueles lados. Estávamos a pouco mais de um mês dos ataques israelitas à Faixa de Gaza – porção de terreno com uma área inferior à do concelho de Torres Vedras mas com a maior densidade populacional do mundo, onde 1,8 milhões de palestinianos vivem enclausurados – que, segundo as Nações Unidas, ao longo de sete semanas vitimariam 2192 árabes, 1523 dos quais civis. Israel registou 66 baixas, das quais apenas 6 não eram militares.

    Na Taça AFC, a selecção treinada por Saeb Jendeya sabia que iria encontrar enormes dificuldades. O grupo não era fácil: o Japão é uma das equipas mais poderosas e bem-sucedidas do continente, e mesmo o Iraque e a Jordânia contam com presenças regulares na competição em disputa (os iraquianos venceram-na em 2007). Os dois primeiros resultados (derrota por 0-4 com o Japão e por 1-5 com a Jordânia) comprovaram na prática as mais do que evidentes lacunas da equipa.

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    Israel e Palestina: desde os anos 40 que os israelitas têm ocupado território palestiniano, desrespeitando inclusive as resoluções da ONU
    Fonte: barrybar (Flickr)

    Porém, há motivos para os palestinianos olharem para a sua selecção com orgulho. Membro da FIFA apenas desde 1998, foi somente a partir de 2002 que a Palestina pôde começar a disputar a qualificação para os Mundiais. A pressão israelita junto dos centros decisórios do futebol terá tido influência: segundo Peto Kettlun, futebolista palestiniano de origem chilena, Israel enviou uma carta ao secretário-geral da FIFA sugerindo que seria mais oportuno que a Federação Palestina de Futebol funcionasse através da Associação Israelita de Futebol, coisa que acontece aqui com algumas autoridades e ministérios”. A simples presença na maior competição futebolística do continente pode ser, portanto, encarada como uma vitória.

    A Palestina é, de resto, muito provavelmente a selecção mais flagelada do planeta. O boicote israelita é evidente. Para entender tudo isto é necessário lembrar que Israel domina militarmente a Cisjordânia, controlando quem entra e sai do território. Todos os dias, milhares de palestinianos que trabalham em Israel têm de esperar horas nos checkpoints antes de partirem para o emprego, passando novamente pelo mesmo processo quando regressam a casa. O desporto não usufrui de nenhum regime especial, pelo que os obstáculos ao desenvolvimento da prática desportiva se sucedem: em 2006, as autoridades israelitas não concederam vistos de saída aos jogadores palestinianos antes de um jogo com Singapura. Tanto a FIFA como a AFC recusaram o adiamento e, como resultado, a Palestina perdeu por 0-3 na secretaria; em 2009, três jogadores da selecção foram mortos num ataque israelita a Gaza, que vitimou cerca de 1400 pessoas; no mesmo ano, o defesa Mahmoud Sarsak foi preso por Israel sem ter direito a julgamento nem a acusações. O cativeiro durou três anos e só terminou devido à greve de fome do jogador, que o cegou parcialmente e o fez perder metade do seu peso; em 2011, quando a selecção regressava da Tailândia, os titulares Mohammed Samara e Majed Abusidu foram impedidos de entrar na Cisjordânia pelas autoridades israelitas, falhando assim a partida da segunda mão com os tailandeses. Tendo perdido por 0-1 no primeiro jogo, os palestinianos precisavam da vitória, pelo que a ausência forçada de dois dos seus elementos acabou por ter influência no empate a duas bolas. Como resultado, a Palestina ficou de fora da fase de grupos do continente asiático; em 2013, Israel impediu a entrada na Palestina a representantes da Federação de Futebol do Oeste Asiático, bem como a integrantes de várias equipas que iriam participar num torneio de sub-17; em 2014, soldados israelitas deram dez tiros no pé de um jovem futebolista palestiniano, e um tiro em cada pé num colega deste. Nenhum dos dois poderá voltar a fazer desporto; já em 2015, Israel proibiu uma comitiva da FIFA de entrar em Gaza para inspeccionar as infra-estruturas desportivas do país após os bombardeamentos do último Verão e avaliar a necessidade de eventuais apoios.

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    Checkpoint na Cisjordânia: todos os palestinianos têm de perder horas em instalações semelhantes controladas por Israel para entrarem e saírem do território. Os futebolistas não são excepção
    Fotos: Kashfi Halford (Flickr)

    Que país poderá desenvolver o seu desporto, ou o que quer que seja, quando tem de enfrentar semelhantes sabotagens? O que pode um povo pobre fazer quando vive cercado, controlado e condenado ao desaparecimento por uma das maiores potências militares do mundo, que por sua vez conta com a conivência tácita da Europa e com o apoio (e financiamento) explícito dos EUA? Como é possível que Israel bombardeie um estádio de futebol por duas vezes, argumentando que o espaço era usado para lançar rockets contra o seu território? Poderemos ver aqui outra coisa que não seja a vontade de semear a destruição, o desespero e o caos? Mesmo vindo de um país que não hesita em bombardear escolas e hospitais não deixa de ser espantoso, assim como é espantoso o pouco eco que tudo isto recebe.

    É por todos estes motivos que a presença da Palestina na Taça AFC deve ser vista com enorme satisfação por todos aqueles que se revoltam com as injustiças. Dizem-nos que não se deve juntar futebol e política, mas eles misturam-se todos os dias independentemente da nossa vontade. Nas palavras de Peto Kettlun, que acabou por ficar de fora da convocatória, disputar a maior competição asiática significa um prémio à resistência e ao apego que temos com as cores da bandeira da Palestina. Não é fácil viver aqui diante de uma ocupação militar, muito menos desenvolver uma actividade desportiva. Por isso, conseguir essa classificação para uma competição tão importante como a Taça da Ásia é algo que emociona todo o povo palestiniano”.

    Seja devido às restrições de circulação impostas por Israel, seja devido à necessidade de jogadores com maior qualidade e experiência, a Federação Palestiniana tem promovido a chamada à equipa de vários atletas estrangeiros com raízes no país. Para além de Kettlun é também o caso de Javier Cohene, que alinhou no Paços de Ferreira e no Vitória de Setúbal. Paraguaio de nascimento, Cohene descobriu origens palestinianas na sua família e tornou-se cidadão do país. Estreou-se frente a Taiwan com um golo, mas não foi convocado para a Taça da Ásia. O Público e o Mais Futebol fizeram recentemente dois trabalhos interessantes sobre este caso. Contudo, Cohene demarca-se dos assuntos políticos. Ao contrário, figuras consagradas do futebol como Éric Cantona, Lilian Thuram, Abou Diaby e Frédéric Kanouté têm manifestado o seu apoio à causa palestiniana – no que diz respeito ao futebol e não só.

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    Em 6 anos, Israel destruiu por duas vezes o Estádio de Gaza. Poderemos ver outra coisa que não uma sabotagem clara do desporto palestiniano?
    Fonte: barrybar (Flickr)

    À entrada para a última jornada da fase de grupos, a Palestina ainda não está matematicamente eliminada. Porém, as esperanças de seguir em frente são quase nulas. Para que tal acontecesse, a equipa teria de vencer o favorito Iraque por pelo menos 4-0, e ainda esperar que o Japão derrotasse a Jordânia. Missão praticamente impossível para uma equipa que sofreu nove golos em dois jogos. No entanto, mesmo com o jogo perdido, a carga simbólica do tão ansiado golo, que Jaka Ihbeisheh tornou realidade, já fez tudo valer a pena. A Palestina, nação martirizada, deixava para sempre a sua marca no palco mais importante do futebol asiático.

    A selecção do Médio Oriente está hoje numa situação que pareceria impossível há apenas um ano. Para que a evolução continue e se solidifique, há que defrontar e aprender com os melhores. Contudo, a edificação de algo novo a partir do zero é infinitamente mais morosa do que a destruição instantânea que um novo ataque israelita provocará. E os palestinianos sabem-no. Com o espectro dos bombardeamentos e da destruição sempre presente, esta selecção continua a progredir aos poucos. Amanhã, mesmo em caso de eliminação, por uma vez os palestinianos terão razões para sorrir.

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    Foto de capa: Nasya Bahfen (Flickr)

    Créditos do vídeo: Daniel Veloso

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