O futebol vale mais do que as vidas humanas?

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    Qual é a contradição entre gostar de futebol e ser contra a realização deste Campeonato do Mundo? Nenhuma. Especialmente se o evento desportivo for organizado num dos países mais desiguais do planeta, onde o luxo e a miséria coexistem embora nunca se toquem. É o caso do Brasil: o país tem níveis de corrupção elevadíssimos, um sistema de educação elitista que praticamente impede qualquer mobilidade social, uma rede de saúde precária e vários problemas a nível de transportes e de habitação, para não falar na enorme criminalidade ainda existente. Ao mesmo tempo, a nação mais populosa da América do Sul tem dois representantes na lista das 100 maiores fortunas do mundo em 2014, segundo a revista Forbes. Somadas, as duas quantias atingem um valor de cerca de 36 mil milhões de dólares.

    Entendo que, por uma questão de igualdade de circunstâncias, deve haver uma certa rotatividade nos países-sede dos Campeonatos do Mundo. No entanto, esta alternância não pode sobrepor-se à realidade. Ou seja, não é por um continente nunca ter recebido a competição mais importante do planeta que devemos fechar os olhos ao atraso e aos problemas de um país, porque o Mundial acarreta sempre grandes despesas. Foi assim na África do Sul há quatro anos, é assim no Brasil em 2014. E é por isso que sou da opinião de que tem de haver critérios sérios para atribuir a organização do Mundial. Muitas vezes os governos argumentam que “não há dinheiro” como desculpa para não para melhorarem as condições de existência das suas populações. Portugal, como sabemos, não é excepção. Por outro lado, contudo, os mesmos governantes não hesitam em gastar largos milhões em estádios e infra-estruturas – tornando-se muitas delas, como também sabemos por experiência própria, autênticos “elefantes brancos”. O futebol e os negócios não se podem sobrepor às vidas de milhões de pessoas.

    O Mundial do Brasil tem motivado vários protestos dos locais Fonte: estadao.com.br
    Os gastos astronómicos e supérfluos com o Mundial têm motivado vários protestos dos brasileiros ao longo do último ano
    Fonte: estadao.com.br

    Não é a primeira vez que a atribuição da sede de um Campeonato do Mundo a um país é contestada: para além do já falado caso da África do Sul em 2010, também o Mundial de 1978, na Argentina, ficou marcado pela polémica. O país vivia então sob uma ditadura responsável pelo escândalo do desaparecimento de milhares de recém-nascidos, retirados aos oposicionistas e entregues para adopção a famílias próximas do regime. A FIFA não se deixou impressionar pela onda de protestos e manteve a sua decisão inicial, contribuindo para lavar a imagem do regime de Jorge Videla aos olhos da comunidade internacional. Hoje, ao querer organizar o mundial dos gastos astronómicos e das aparências (a “Copa” do Brasil vai custar mais do que as três últimas edições somadas), onde o bem-estar de um turista se sobrepõe ao de vários milhares de locais, o organismo máximo do futebol mundial está a ser cúmplice da perpetuação da desigualdade e da injustiça sociais.

    São milhões e milhões de reais que podiam ter sido aplicados na saúde, na educação, na habitação, nos transportes, etc. O valor previsto em 2010 para o total da construção era de 5 389 300 000 reais (cerca de 1 780 000 000 €). Em 2014, contudo, esse montante derrapou para 8 925 000 000 reais (quase 3 000 000 000 €). De modo a facilitar a percepção de tudo isto, penso valer a pena observar os dados nesta tabela:

    tabela
    Entre 2010 e 2014, a previsão de custos dos estádios do Mundial subiu 66% – um valor suportado quase na totalidade pelo Estado brasileiro
    Fonte: http://esportes.terra.com.br/

    De seguida, apresentam-se alguns dados reveladores acerca dos enormes gastos deste Mundial:

    – segundo um estudo da KPMG, empresa prestadora de serviços, 10 dos 20 estádios mais caros do mundo estão do Brasil:

    – o Estádio Mané Garrincha, em Brasília, é o terceiro mais caro do mundo, só ultrapassado por Wembley e pelo Emirates (ambos no Reino Unido).

    – os estádios brasileiros custaram mais 66% do que o previsto em 2010 (ver tabela anterior).

    – cerca de 97% dos custos totais dos estádios serão cobertos por dinheiros públicos.

    – apesar de a FIFA ter garantido, em 2007, que os estádios seriam financiados por privados, a presidente brasileira Dilma Rousseff afirmou recentemente que, se o governo não avançasse com dinheiros públicos, “nem meio estádio” sairia do papel.

    No final da semana passada o comediante britânico John Oliver protagonizou um brilhante momento televisivo onde, com muito humor à mistura, mostrou ao seu público norte-americano o que é realmente a FIFA. A visualização do vídeo é obrigatória. Porém, aqui ficam resumidas algumas das passagens mais revoltantes:

    – a FIFA contornou uma lei do Brasil que, por motivos de segurança nos estádios, proíbe que as bebidas alcoólicas patrocinem o futebol. Esta lei foi implementada devido ao número elevado de mortes entre os adeptos. No entanto, o órgão que rege o futebol mundial é patrocinado pela marca de cervejas Budweiser. Jérôme Valcke, secretário-geral da FIFA, disse apenas: “peço desculpa se pareço um pouco arrogante, mas não iremos negociar isso (…). Temos o direito de vender cerveja”.

    – quando confrontado com o facto de a organização – oficialmente sem fins lucrativos, diga-se – a que preside ter mil milhões de dólares no banco, Joseph Blatter proferiu cinicamente que esse montante é apenas “uma reserva”.

    – o modo pouco claro como a organização do Mundial de 2002 foi atribuído ao Qatar, um país descrito como “esclavagista”.

    Há exactamente um ano os brasileiros manifestaram-se durante a Taça das Confederações, e nem a repressão policial que se fez sentir impediu que houvesse protestos à porta do Maracanã quando lá dentro se jogava a final entre o Brasil e a Espanha. Agora, um ano depois, as demonstrações de descontentamento poderão voltar. Muitas delas têm sido novamente reprimidas, como é o caso da greve dos trabalhadores do metro de São Paulo.

    O que se passa actualmente no Brasil é a consequência natural de décadas de desigualdade, ampliadas nos últimos tempos por gastos astronómicos e desnecessários. Infelizmente, nem a FIFA nem os governantes brasileiros se mostraram sensíveis perante as reivindicações de quem apenas quer melhores condições de vida. Os protestos são justos, e nenhum torneio de futebol devia poder sobrepor-se a eles.

     

    Aqui fica também o documentário “The Price of the World Cup“, que aprofunda esta temática:

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    João V. Sousa
    João V. Sousahttp://www.bolanarede.pt
    O João Sousa anseia pelo dia em que os sportinguistas materializem o orgulho que têm no ecletismo do clube numa afluência massiva às modalidades. Porque, segundo ele, elas são uma parte importantíssima da identidade do clube. Deseja ardentemente a construção de um pavilhão e defende a aposta nos futebolistas da casa, enquadrados por 2 ou 3 jogadores de nível internacional que permitam lutar por títulos. Bate-se por um Sporting sério, organizado e vencedor.                                                                                                                                                 O João não escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.