Recordar é Viver: Agostinho decide o Tour mais importante da História

    A QUEDA

    Mas Eddy Merckx não atirou a toalha ao chão. Havia ainda força no Canibal e muito Tour pela frente para tentar reclamar aquela camisola amarelada que agora lhe escapava, mesmo que ninguém nisso houvesse apostado uns meros dias antes.

    Logo no etapa seguinte, a 12.ª,  houve espaço para loucuras. Com alguns colegas de equipa, Merckx atacou nos metros iniciais duma etapa plana de mais de 250 quilómetros e, durante cinco horas, o seu grupo da frente de nove foi perseguido arduamente por um pelotão enraivecido, chegando a Marselha meia hora antes do previsto e com quase dois minutos recuperados face ao rival. Sucedeu-lhe um contrarrelógio de 16,3 quilómetros em Albi e Merckx saiu vencedor, mas Ocaña foi segundo, cedendo somente 11 segundos. Dois dias de ganhos para o belga, mas o espanhol continuava com uma soberba vantagem de mais de sete minutos.

    Três subidas marcavam a parte final da jornada que se seguia e os primeiros 100 quilómetros já indicavam que haveria luta entre os dois galos do pelotão, com ambos a colocarem um par de companheiros na frente da corrida, de onde José Manuel Fuente acabaria por resistir para vencer a etapa.

    Finalmente, o momento dos escaladores. Primeiro, o Portet d’Aspet. Merckx ataca várias vezes, mas Ocaña não lhe larga a roda e no topo continua tudo igual. Em segundo vem o Col de Menté. Novamente, Merckx acelera uma e outra vez, Ocaña continua a segui-lo e novamente passam juntos na contagem de montanha.

    Entretanto, também a meteorologia decide ajudar o tom épico da etapa e uma chuva torrencial abate sobre os ciclistas. Bernard Thévenet, que acabaria quarto no Tour de 1971, descreveu assim as condições enfrentadas: «era uma chuva tão pesada, nunca vi nada assim antes ou depois, era como ter baldes de água a serem descarregados na tua cabeça».

    Sem medo, Merckx continua impiedoso e, pressentindo que o espanhol começa a apresentar debilidades, passa ao ataque também na descida. A velocidade estonteante e com os pés já a servirem de travões, é sem surpresa que, umas curvas mais à frente, acabem os dois no chão.

    Van Impe era o mais próximo do duo e, pouco atrás, seguia Joaquim Agostinho. Nono à partida para a etapa, o português ia mostrando os seus dotes de escalador para se manter na dianteira e procurar melhorar a posição na Geral. Chegado à fatídica curva, também ele iria ao asfalto, mas não só por culpa da tempestade.

    Descendo a alta velocidade, naquele local foi encontrar Luis Ocaña e contra ele embateu contra toda a violência, deixando o espanhol novamente prostrado no chão. Ocaña ainda fez o esforço para se reerguer, mas o destino de Agostinho repetir-se-ia, desta vez com Zoetemelk.

    Enquanto Merckx continuava descida abaixo, Ocaña havia esperado para trocar uma roda na qual furara e esses instantes foram o fim do sonho. Os poucos registos que há do evento não mentem e neles podemos ver a agonizante dor do espanhol, forçado a abandonar de amarelo. Acabaria por não ter fraturas, mas o trauma era visível na parte superior do seu corpo e, durante dias, custava-lhe a respiração.

    A bem ou a mal, o Canibal vencia novamente. Não sem mazelas, cairia ainda mais duas vezes na descida e faria o restante da prova com um estilo bem mais defensivo que o habitual, ainda assim suficiente para somar mais duas vitórias de etapa e triunfar na Geral final com mais de nove minutos de avanço sobre o segundo classificado, Zoetemelk.

    Por seu turno, Agostinho chegaria a Paris no quinto posto da Geral, dando a Portugal a sua melhor classificação de sempre na mais importante prova velocipédica, melhorando o seu próprio oitavo de 1969 e o décimo de Alves Barbosa em 1956. Até ao final da carreira, terminaria por mais seis vezes entre os dez primeiros do Tour, incluindo duas subidas ao podium final.

    O que teria acontecido à carreira do invencível Canibal se não tivesse ganho este Tour? O que mudaria na história do Tour se Ocaña tivesse ganho? E teria sequer Ocaña ganho se não tivesse caído? Johnny Schleck, colega de equipa de Ocaña nesse fatídico Tour, colocou em palavras os pensamentos de muitos, «se tudo se mantivesse igual, ele [Ocaña] teria na mesma derrotado Merckx, mas temos sempre de colocar algo em parêntesis: Merckx era Merckx».

    Foto de Capa: CM Torres Vedras

    Artigo revisto por Joana Mendes

    - Advertisement -

    Subscreve!

    Artigos Populares