Drible de Letra é um espaço de opinião da autoria de André Rúbio Leitão. Um dos sócios fundadores da RMM Comunicação & Consultoria.
Há uns dias, durante uma daquelas jornadas de aprazível petisco boémio, em que o prato principal é sempre o companheirismo, dois amigos, fervorosos adeptos – um do Benfica e outro do Sporting – partilharam comigo um sonho. Apesar das constantes alfinetadas sobre cores e jogadores (o Gyokeres e o Di Maria; o Figo e o Eusébio), no fim do dia, não é o 7-1 ou 6-3 que prevalecem: quem ganha é a amizade. Sempre a amizade.
Não deveria ser essa a essência pura do desporto? A pedra basilar de quem nutre verdadeira paixão pelo jogo? Ter a liberdade (sim, a liberdade!) de ir à bola, ao fim de semana, em família, sem estar preocupado em levar com um isqueiro em cima ou, quem sabe, com uma cabeça de porco; ir ao Estádio do Dragão com um cachecol do Benfica e ser bem recebido; ser do Benfica e elogiar o Sporting; ser do Sporting e poder, livremente, ser fã do Eusébio; poder dizer o que se pensa sem ter medo de sofrer represálias. Pausa para respirar. E pensar.
Bem, voltemos ao sonho dos meus amigos. É tão-somente conseguirem ir ao Estádio da Luz e ao Estádio de Alvalade ver um jogo juntos, cada um com o cachecol do seu clube. Parece simples, não parece? Mas não é. Sabemos todos que não é. E, entre os culpados, estão pessoas próximas de nós, que nós conhecemos. É assustador. Porque, sejamos sinceros, e aqui está uma verdade dura: em Portugal, mais do que uma cultura desportiva, temos uma cultura futebolística. Quantos estão genuinamente entusiasmados com a magia que acontece dentro das quatro linhas: aqueles que assistem ao jogo de costas voltadas para o relvado? E quantos estão mais focados em confrontos e provocações? Quantos anseiam por ver um pontapé de bicicleta, um remate de primeira que dá um golo, um “cabrito”? Aqueles que valorizam mais a controvérsia e a violência do que a própria arte do jogo? É mais importante fazer uma espera aos adeptos da equipa adversária, fugir da polícia de intervenção e ir “curtir” para a esquadra. E até as notas artísticas em campo são utilizadas para fazer pirraça forte sobre o rival. Valorizar o quê? Como? Nada disso. Picardias saudáveis como as dos meus amigos? É para fracos. O que interessa é vestir a camisola a todo o custo. Defender a cor do equipamento de cada um, mesmo que se deixe de conhecer o barómetro do razoável.
Os programas de debate são apenas reflexos desta mentalidade. Dão mais relevância às vezes que os treinadores se levantaram do banco do que ao número de remates à baliza; predomina o grito e a injúria, sempre com a assinatura da polémica, pois claro.
E, por muito que nos custe assumir, estes certames que todos criticamos – campeões de audiências, imagine-se -, são o espelho da nossa cultura desport… perdão, clubística. A verdade é que os Media mostram o que o público quer ver. E é neste degredo que se aculturam, na grande maioria, os “amantes” do desporto.
Mais grave ainda é quando esta expressão, (verdadeiramente) feita, da cultura clubística se transpõe para a sociedade, onde deveria ser proibido perder o discernimento.
Vivemos tempos sombrios, onde duas (?) guerras assolam nações. E em situações tão voláteis, onde vidas estão em jogo, é imperativo que sejamos racionais e ponderados. A política e o desporto, embora apaixonantes, não devem ser palco para extremismos e irracionalidades. Precisamos de serenidade para distinguir o certo do errado, o justo do injusto. E, acima de tudo, devemos ser capazes de despir qualquer camisola ideológica e abraçar a verdadeira essência da humanidade. Não vale tudo. Não pode valer tudo.
É bom lembrar que, quando o PCP não vota a favor de receber, na Assembleia da República – a Casa da Democracia – um Primeiro-Ministro que pede auxílio para se defender de um ataque sangrento ao seu país, está a passar uma mensagem. E não é bonita. Quando o Bloco de Esquerda se associa a uma manifestação, cujo o mote utilizado pela organização é o direito à resistência da Palestina “com qualquer meio à disposição”, poucas horas depois do ataque do Hamas, importa lembrar que “qualquer meio” está inserido num contexto em que acabam de acontecer decapitação de crianças e violação de mulheres antes da morte. É a total perda de noção.
Tal como o Presidente dos EUA, Joe Biden, deveria pensar duas vezes antes declarar apoio total a um Estado que está a matar civis para atingir criminosos.
A defesa da Palestina e de Israel são legitimas, mas é preciso mandar a ideologia às urtigas quando se trata de atos desumanos. Se a cultura clubística já está a mais no desporto, a cultura partidária, na sociedade, é só e apenas desprezível. Devemos ser cuidadosos com as bandeiras que levantamos e os ideais que defendemos, especialmente quando vidas estão em jogo. Seja num estádio de futebol ou num palco mundial, não devemos perder a nossa humanidade.
Daqui para a frente é preciso pensar três vezes quando apoiamos ou defendemos certos políticos. O Chega até pode estar no extremo do racismo e da antidemocracia, mas fica a pergunta: estas posições de guerra do Partido Comunista e do Bloco de Esquerdam tornam-nos mais bonzinhos e moderados? Calma. Antes de responderem, tirem lá os cachecóis ideológicos. Sejam sérios, sinceros, justos e, acima de tudo, humanos.