Temos de falar, Cristiano

    É possível conciliar o ego desmedido de um jogador com o melhor jogo coletivo de uma equipa? Durante muito tempo, não só foi como também foi através dele transformado em exibições estratosféricas que nos fez ganhar os jogos mais difíceis.

    Mas o tempo passa. E quando esse ego perde esse superpoder para se tornar disfuncional (pela natural erosão do tempo no ser humano futebolista) o efeito é exatamente o oposto. Esse ego passa a devorar tantas vezes a equipa inteira. Se antes mais do que a fazer jogar bem, a fazia, por si só, ganhar, agora torna-se muitas vezes num confronto entre um desejo egocêntrico impossível e o potencial da equipa em jogar bem com um melhor (e mais indicado) último elo de ligação jogo-golo.  

    O problema é que, qual espelho da sociedade, a tendência é a de extremar. Neste caso, do endeusamento da maior figura do futebol português até à intolerância em vê-lo com a camisola nacional. Considero-me um moderado, mas, acima de tudo, procuro ser ponderado e compreensivo. Consigo encontrar, em argumentos que não abraçam o extremo, visões válidas nos dois lados. Tentarei dar a minha, que não espero que seja aprovada, mas que conto que seja respeitada – um adjetivo a rarear, por estes dias.

    Ora, houve dias, uma catrefada deles, que Portugal ganhou se não inteiramente por causa de Cristiano Ronaldo, por certo especialmente devido a ele.

    Cristiano Ronaldo
    Fonte: Filipe Oliveira / Bola na Rede

    A fria noite de Estocolmo, em 2013, cravou os traços mais fundos na pegada que deixará na seleção nacional quando, por três vezes, correu triunfantemente na direção da baliza e marcou um hat-trick contra a Suécia, a gloriosa tripla de golos que colocou Portugal no Mundial do ano seguinte. Cristiano Ronaldo tinha 28 anos. Exibia, então, um zénite das suas capacidades: explosivo na movimentação, ágil a desenvencilhar-se de adversários, letal a finalizar fosse com o pé direito, o esquerdo, a cabeça ou a parte do corpo que tivesse de ser, um esfomeado impossível de saciar no apetite por mais feitos, mais recordes, mais noites de glória que o elevassem a rasgar o céu.

    Que nem uma cordilheira montanhosa erguida acima da linha das nuvens, o monte “Cristianeste” conheceu vários picos, sintoma de um futebolista descrente na hipótese de ter um só apogeu: no Europeu prévio a resgatar a seleção naquele play-off contra a Suécia, o capitão da seleção desmantelou a Holanda na fase de grupos, com dois golos e uma exibição épica (tinha 27 anos); marcou duas vezes à Hungria, uma delas de calcanhar, e fez uma assistência no derradeiro encontro da fase de grupos no torneio de 2016, contribuição profética que deu um empate a Portugal e o livrou do lado mais ardiloso do quadro até à final (aos 31 anos); rugiu heroicamente na estreia no Mundial de 2018 com três estrondosos golos marcados à Espanha (aos 33).

    Cristiano Ronaldo Portugal
    Fonte: Filipe Oliveira/Bola na Rede

    Outros picos haveria por exaltar. Ronaldo é assim, as exibições estonteantes na seleção nacional são várias e farejar o seu trilho implica ir no encalço dos números, embora o futebol não se sirva deles como única unidade de medida, fazê-lo é ser enviesado e redutor, mas, ainda antes de alongar a longevidade nos relvados para longe da órbita dos trinta e até às imediações dos quarenta, o rasto futebolístico de Cristiano virou forçosamente tangível. Trata-se da pessoa que participou em mais de 30% dos jogos feitos pela equipa de Portugal desde a sua criação, que marcou 130 golos nessas 211 internacionalizações, ambos os registos insuperáveis no futebol de seleções, mais dois a incentivarem a frase que Ronaldo galantemente repete para dizer que tem um alvo nas costas.

    Esta recoleção de alguns feitos de Ronaldo constitui o tipo de louvo de que o português não precisa, o rasto que tem no futebol dispensa-o, os números podem ser enviesados se interpretados sem contexto, mas são o recheio mais sustentável dos factos e suportam um dos inquestionáveis que existe em Cristiano: ele é o melhor, mais importante, mais decisivo e influente futebolista que Portugal já teve e provavelmente terá na sua história.

    E reconhecer esse óbvio, que é inatacável, não deveria equivaler a ser um sacrilégio defender outra clareza, cada vez mais límpida, em relação ao maior futebolista português de sempre.

    A verdade é que louvar Cristiano Ronaldo não pode ser isentá-lo de ser avaliado, no dia a dia, à semelhança dos restantes jogadores, sobretudo quem discute a posição de avançado, do tipo de quem se esperam golos. Aplicar-lhe os mesmos filtros pelos quais os outros passam para aferir o sumo que dá no campo, aos 39 anos, não é uma diminuição do seu legado na seleção. Se ele tem a vontade, a paciência e a dedicação para manter a carreira em rolamento na Arábia Saudita, bem distante da exigência do futebol europeu, há que louvar tal perseverança e respeitá-la não é decretar que Ronaldo joga.

    Afirmá-lo não é prestar um desserviço ao legado de Ronaldo, nem é ser ingrato, muito menos é desrespeitar o que Cristiano inculcou na história da seleção e dos clubes por onde passou.

    Cristiano Ronaldo adepto invasor
    Fonte: Filipe Oliveira / Bola na Rede

    Mas, quanto menor é o seu rendimento, maior é o escrutínio a quem se atreve a apontar a sua míngua de rendimento. Neste Europeu, o menor desempenho palpável e visível do capitão desenterrou as acusações de ingratidão e desrespeito dirigidas a quem defende o defensável. O futebol tem no rendimento o seu critério inatacável e evocar o passado de Ronaldo não atenua as carências do seu presente. Apenas constata o óbvio, como óbvio é que até um dos melhores futebolistas de sempre não escapa à idade.

    Insurgi-me, por exemplo, contra a sua utilização frente à Geórgia, numa decisão desnecessariamente arriscada, pela exposição do jogador a um problema crescente que se via em toda a sua linguagem corporal, a falta de golo para os recordes que o perseguem (não, não é assim), mas sobretudo pela gestão da equipa, recuperando uma sensação que parecia estar a desaparecer relativamente a um tratamento privilegiado, mesmo que em detrimento do bem-estar coletivo. No que deu? No deprimente espetáculo dado por Cristiano contra a Eslovénia, em que a tal obsessão pessoal lhe toldou o espírito coletivo que aparentava querer abraçar. A palmada de Oblak foi um autêntico despertar para Cristiano (restabelecer-se-ia contra a França, é verdade), atónito com o choque de realidade, tão visível nas incessantes lágrimas e num lote final de 15 minutos em que se absorveu no desalento pessoal e ignorou a necessidade coletiva. Tinha a braçadeira…

    E aqui chegamos a um ponto crucial na minha reflexão – a braçadeira. Cristiano foi tornado líder demasiado cedo, ainda no tempo de Scolari. No auge da sua pujança, conseguiu que todos os da sua geração o seguissem, num formato de religião em jeito de seleção. Foi ele quem fez com que, não interessava o grupo, treinador ou adversário, o português passasse a não ter medo de acreditar. «Sim, mas Portugal tem Cristiano… e outros».

    A vida do capitão foi esta por mais de uma década. Pepe seguiu-o sempre. Miguel Veloso, Postiga, Patrício, Moutinho ou Bruno Alves também, enquanto puderam. Só que agora a geração já é outra. De repente, Cristiano tem ao lado Pepe, Patrício (terceiro guarda-redes, o que me parece uma bela forma de lidar com alguém que foi tão importante, pese embora ter sido suplente da Roma nos últimos meses) e mais nenhum dos “seus”. Vê, depois, uma geração diferente, que o idolatrou na televisão e que cresceu sob o barómetro dos «novos Ronaldos», mas que já tem comportamentos totalmente diferentes como futebolistas.

    Por isto tudo e mais alguma coisa, não creio que a forma de liderança egocêntrica de Cristiano (porque a isso também foi habituado pelos da sua geração) possa ter frutos. Hoje em dia, um líder que esbraceje, proteste, reclame constantemente e não apresente o outro lado da moeda, muito dificilmente tem sucesso. Veja-se como atua Rúben Dias, o mais provável líder de futuro, que bebe da liderança corporativista e motivacional de Pepe. O outro lado da moeda é o apoio imediato na adversidade, o incentivo no mau passe ou na opção de rematar em vez de passar, o elogio público que Diogo Costa merecia depois da Eslovénia, entre outros aspetos.

    Cristiano Ronaldo nunca foi genuinamente esse líder, pese embora alguns momentos esporádicos com um toque, aos meus olhos, artificial. Talvez por isso, também nunca senti nos colegas da nova geração uma devoção que não fosse, também ela, artificial. 

    Este é, a meu ver, o maior sinal de que o fim chegou. Os indicadores não indiciam que se vá adaptar. 

    Caso assim não aconteça, o que é provável, visto que não há mensagens de despedida, aqui estarei na missão de tentar compreender a razão para tal. Porque a haverá, disso não tenho qualquer dúvida.

    Para finalizar, queria apenas dizer que, neste momento, escrever sobre este Cristiano é quase tão ingrato quanto vê-lo jogar. Pelo respeito e a admiração criados ao longo de duas décadas. É como se lhe tocássemos no ombro e lhe disséssemos “temos de falar”.

    E temos, Cristiano. Temos mesmo.

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    Raul Saraiva
    Raul Saraiva
    Jovem entusiasta e curioso, o Raúl tem 18 anos e está prestes a ingressar na Universidade. O seu objetivo é fazer jornalismo, de preferência desportivo, até porque a sua paixão pelo desporto é infindável e inigualável. Desde pequeno que o desporto faz parte da sua vida. Adora ver, falar e escrever sobre futebol, nunca fugindo às táticas envolvidas no mesmo. O desporto-rei é, assim, a sua grande paixão e o seu refúgio para escapulir nos momentos em que a sua grave doença se faz sentir. Ainda assim, também se interessa bastante por NBA, futsal, hóquei em patins, andebol, voleibol e ténis. Acredita que se aprende diariamente e que, por isso, o desporto pode ser diferente. Escreve com acordo ortográfico.