
Num país lá à beira mar plantado, houve uma vez um Primeiro-Ministro que ofereceu a uma Ministra um boneco de uma vaca voadora. Equivocou-se no animal, porque, afinal, quem voa para dar glória a Portugal é um Leitão.
Tanto que no Velódromo Nacional de França podiam não haver bonecos, mas haviam camisolas com a inscrição #flyingpiggy e a imagem de um leitão com asas. Tudo para dar alento ao herói que, pela primeira vez, colocava Portugal como um favorito às medalhas no Ciclismo em provas Olímpicas.
Primeiro, era o Omnium, a prova rainha da endurance, quatro corridas em poucas horas. Começou bem numa das suas especialidades, o Scratch, para manter as aspirações intactas e brilhou na Tempo Race para subir a lugar de medalha. Na prova de Eliminação defendeu-se, mas ficou o amargo de boca de algum azar que permitiu ao francês Benjamin Thomas ganhar-lhe alguma vantagem. Ficou tudo para decidir na Prova dos Pontos e rapidamente se percebeu que a luta pela vitória era a dois, entre Leitão e Thomas. O português bem atacou, mas o gaulês respondeu sempre à altura e para Iúri ficou a prata. Ao fim de 20 anos, estava igualado o feito de Sérgio Paulinho em Atenas 2004.
Depois, veio a prova de Madison, em parelha com Rui Oliveira. Das 200 voltas à pista, a grande maioria passaram-nas reservados, à espera do momento certo. Houve um ataque a certa altura para amealhar alguns pontos, mas sem sucesso na tentativa de dar uma volta ao pelotão e a participação das cinco quinas passou quase despercebida até ao último quarto da prova. Aí, quais Deuses da velocidade, Rui e Iúri não pareciam capazes de acumular cansaço nas pernas e, aceleração após aceleração, foram deixando os adversários em apuros e, num relâmpago, deram a volta ao texto e à classificação e terminaram a levantar os braços no ar ainda descrentes no que haviam feito.
O ouro olímpico no Ciclismo repousou pela primeira vez em peitos lusitanos e Iúri Leitão teve asas para se tornar o mais bem sucedido português numa só edição dos Jogos.
A Fábrica de talentos da Bairrada
Numas Olimpíadas parisienses que ficarão por muito tempo na nossa memória, a primeira participação portuguesa de nota também foi no Ciclismo. Logo a abrir os Jogos, Nelson Oliveira assegurou o primeiro diploma nacional com o seu sétimo posto na prova de contrarrelógio.
O respeitado veterano do pelotão internacional, que cumpre a sua nona temporada ao serviço da espanhola Movistar Team, já assegurou um legado incontornável na Estrada, mas é fora dela que está a sua maior dádiva ao Ciclismo português. É que desde dezembro de 2014 que assume também as funções de Presidente do Clube de Ciclismo da Bairrada.
Por esses dias, o clube tinha pouco mais de um ano, acabado de surgir em março do ano anterior para dar um novo alento e dimensão ao que restava da secção de Ciclismo do Sangalhos Desporto Clube, mais que o clube da Freguesia onde hoje se ergue o Velódromo, um histórico nacional que, entre outras conquistas, levou Alves Barbosa a três amarelas na Volta a Portugal nos anos ’50.
Logo os resultados começaram a aparecer. Rui e Ivo Oliveira e Maria Martins ajudaram a que rapidamente a equipa se afirmasse como a maior força dos escalões jovens por terras lusitanas, lançando atletas para o sucesso tanto na Pista como na Estrada.
E foi dessa maneira que, em 2016, juntou no mesmo plantel de júniores os dois maiores porta-estandartes do Ciclismo português na atualidade, João Almeida e Iúri Leitão. Por uma temporada, o melhor voltista português das últimas quatro décadas e a nossa primeira verdadeira estrela da Pista foram colegas de equipa. Não foi mera coincidência, foi resultado do empenho e ambição de um clube fundado para criar campeões.
Daí em diante, o trabalho não amainou e o desenvolvimento de novas estrelas continua a bom ritmo. E se, na Pista, Diogo Narciso, também vai conquistando o seu espaço, é na Estrada que os alumni mais recentes da Bairrada se vão mais destacando, com a fornada de António Morgado, Gonçalo Tavares e Daniel Lima a ir já marcando território além fronteiras. Em particular, o ‘homem do bigode’, Morgado, amealha vitórias e desempenhos impressionantes, assumindo-se como um classicómano de referência na todo-poderosa UAE Team Emirates.
Um novo herói na Pista
O desenvolvimento do Ciclismo de Pista em Portugal é um fenómeno recente e assenta em duas pedras basilares que continuam ainda hoje a ser as fundações do crescente sucesso que vai surgindo: a contrução do Velódromo de Sangalhos e a contratação de Gabriel Mendes como selecionador nacional.
Com um local adequado para a prática da modalidade e o homem certo a conduzir os destinos dos atletas lusos, Portugal investiu na juventude e rapidamente começou a colher os frutos. Os gémeos Ivo e Rui Oliveira encabeçaram a primeira vaga nacional a competir além fronteiras com sucesso. Quando Ivo Oliveira se sagrou campeão Europeu e Mundial de juniores em Perseguição Individual em 2014, começou-se a perceber que havia algo de especial a ser construído na Anadia.
Nesta altura, as Olímpiadas eram ainda um sonho. Não as medalhas, mas uma simples participação. E, apesar das expectativas criadas, o setor masculino não conseguiu o suficiente para alcançar Tóquio. Porém, um outro talento ia surgindo e se afirmando no lado feminino e acabou por ser Maria Martins a selar a primeira ida do Ciclismo de Pista português aos Jogos.
Ora, enquanto outros iam sendo as figuras de proa da seleção nacional, Iúri Leitão fazia o seu caminho ainda sem o mesmo peso das expectivas. Interessado pela Pista desde muito jovem, até porque esta era também o utensílio para prepara a época de Estrada, permitindo-lhe chegar ao pelotão com maior ritmo competitivo e explosividade, foi timidamente dando nas vistas aqui e ali até entrar de rompante na elite mundial.
Entre começar a representar a seleção em provas internacionais e confirmar o seu potencial foi um ápice. 2020 foi ano em que se fez o clique. Das medalhas no Europeu de Sub23 ao título continental de Scratch em Elites, o jovem velocista anunciou a sua chegada ao lote dos melhores e nunca mais de lá saiu. Mais dois títulos Europeus de Scratch (2022 e 2024) e um sem número de outros resultados de excelência já bastariam para confirmar os seus créditos.
Todavia, um outro êxito ofoscou todos esses. Glasgow, na Escócia, foi o palco dos Mundiais de Elite em 2023 e foi também o palco do momento em que Iúri Leitão garantiu o direito a usar a mais desejada camisola, a do Arco-Íris. Numa corrida disputada até ao último sprint, o português bateu por meros dois pontos Benjamin Thomas e Shunsuke Imamura para se sagrar Campeão do Mundo de Omnium.
Agora, não é possível falar de Pista sem falar de Iúri Leitão. O português é uma das estrelas da modalidade e, Campeão Mundial e Olímpica, já escreveu de forma indelével o seu nome no livro da história do Ciclismo.
O melhor sprinter português da atualidade
Mas, para lá das repetitivas voltas ao velodromo na Pista, Iúri Leitão também faz das suas ao ar livre, integrando o contingente de emigrantes lusitanos das duas rodas, encontrando-se ao serviço da espanhola Caja Rural – Seguros RGA, uma ProTeam, isto é, que faz parte da segunda divisão do Ciclismo mundial.
Finalizado o percurso nas camadas jovens, o vianense integrou o pelotão nacional em 2017 pelas mãos da Miranda-Mortágua ao que se seguiram duas temporadas na Sicasal – Constantinos e uma primeira incursão por terras de nuestros hermanos ao serviço da Supermercados Froiz. Como com tantos outros, estes primeiros anos a enfrentar corredores de nível Elite não foram preenchidos por resultados entre os primeiros, bem pelo contrário. Todavia, aqui e ali surgiam indicadores do seu potencial, o mais deles a conquista de uma etapa na Volta a Portugal do Futuro 2018.
Foi no regresso a Mortágua (por esses tempos denominada Tavfer – Measindot – Mortágua) em 2021 que tudo começou a mudar. O ciclista deu um passo em frente na sua carreira, passou a ser presença assídua na disputa dos sprints e as vitórias começaram a aparecer. Dois triunfos em etapas da Volta ao Alentejo foram a cereja no topo do bolo de um ano de afirmação.
A recompensa foi o salto para o estrangeiro e para uma categoria superior e, perante corridas e adversários mais desafiantes, Iúri acelerou para um dos lugares de liderança da Caja Rural e assumiu-se cada vez mais como um sprinter a ter em conta. Entre os muitos resultados de destaque, a vitória na geral do Tour of Hellas 2023 e a conquista de uma etapa na CRO Race 2023, em que bateu os laureados Elia Viviani e Alexander Kristoff, são particulares evidências de que Leitão é, por larga margem, o melhor velocista nacional da atualidade.
Com o ciclo olímpico terminado e mais quatro anos até ao próximo, é possível que os próximos tempos nos permitam ver um Iúri Leitão com um pouco maior de foco na estrada, tentando perceber o quão longe o seu potencial o pode levar. Dois caminhos que poderá percorrer serão de especial interesse acompanhar.
Por um lado, finalmente vencer uma etapa na Volta a Portugal, um marco para qualquer ciclista nacional. Até ao momento, conta com uma única participação, em 2021, numa edição sem qualquer chegada em pelotão compacto e que, portanto, não lhe deu nenhuma oportunidade para procurar a glória. Mesmo que a organização não tenha sido muito simpática para os sprinters nos últimos anos, atrair o nosso herói olímpico à nossa maior prova poder ser o impulso necessário para voltarmos a ter mais excitantes chegas rápidas na Grandíssima.
Simultâneamente, para se testar contra os melhores é preciso ingressar mais vezes em eventos World Tour – conta apenas com uma ida ao Tour de Pologne em 2022 – e, or fim, atingir o pico de carreira na Estrada e aventurar-se nas Grandes Voltas, dando-nos esperança de replicar os feitos de ilustres do nosso desporto como Nelson Oliveira ou Rui Costa. Há motivos para acreditar, até porque, se em 2025 a Caja Rural regressar à Vuelta, Iúri Leitão pode muito bem ser a melhor arma da equipa para levar uma etapa de vencida.