Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas, que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa que a Fortuna castigasse
As minhas mais fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!
Luís Vaz de Camões
Não há, na lírica camoniana, muitas demonstrações tão grandes de sofrimento e desalento como aquela extrapolada em erros, má fortuna e um amor ardente repleto de enganos. Era este o historial do Sporting contra o Marselha, remontando à época de 2022/23, quando três expulsões e uma série de erros estranhos levaram os leões de Ruben Amorim a duas derrotas pesadas diante dos gauleses.
O feitiço virou-se contra o feiticeiro. O Sporting em que «Os erros e a fortuna sobejaram», que tinha presente a «A grande dor das cousas» e ainda na memória com os dias remotos em que «que a Fortuna castigasse As minhas mais fundadas esperanças», vingou-se na mesma moeda. Se o sujeito poético não conseguiu, coube ao leão encarnar n’ «Este meu duro Génio de vinganças».
Não há como não dividir a vitória dos leões frente ao Marselha num jogo com partes – bem – distintas. Os chavões fazem sentido, basta saber quando os utilizar. De dominado, o Sporting passou a dominante e, de derrotado, passou a ser vencedor. A expulsão de Emerson Palmieri após absurda estupidez mudou o ritmo de um jogo que os leões nunca, até então, tinham jogado à base do conforto.

O Marselha é uma equipa de autor e esta segunda época de Roberto De Zerbi está próximo do auge dos trabalhos feitos pelo treinador italiano, um dos mais teóricos e influentes técnicos da última década. Nos primeiros 45 minutos, espalhou superioridade em Alvalade e o 0-1, natural perante o domínio francês, era curto como se acabou por revelar.
As saídas de bola elaboradas com o intuito de atrair a pressão para gerar espaço nas costas e acelerar foram superando a pressão do Sporting que apenas montava as peças quando o Marselha assumia definitivamente o 3-2-5. Tão decisivo no rumo dos acontecimentos, Emerson Palmieri era o joker gaulês, partindo de lateral esquerdo para se desdobrar sobre a meia esquerda e aparecer como elemento surpresa nas costas dos médios. Benjamin Pavard ficava mais baixo, os franceses montavam em 3+2 e, com Arthur Vermeeren, um dos injustiçados da noite e forçado a sair ao intervalo para reforçar de músculo o meio-campo, ia dando saídas frequentemente. O Sporting conseguia recuperar bolas aqui e ali, mas não na mesma proporção com que o Marselha as metia no último terço de forma absolutamente vertiginosa.
Mason Greenwood, um jogador de relevo cujo carácter nunca poderá ser esquecido, jogava com a liberdade que Timothy Weah, à largura lhe permitia. Recuava em campo, à procura do espaço livre nas costas dos médios e de arrastar consigo Gonçalo Inácio ou quem de direito lhe estivesse nas costas. O objetivo era claro – finalizar as jogadas à esquerda, aproveitando o papel de Pierre-Emerick Aubameyang, nesta fase da carreira mais um avançado de ligação que um velocista, e a capacidade de imposição de Igor Paixão. Está a ser um dos melhores jogadores do mundo, se tamanha ousadia é possível, no início desta temporada. Chegou para ser o encaixe perfeito numa equipa que procura extremos verticais e com capacidade de chegar a zonas de finalização. Marcou um golaço que gelou em Alvalade e traduziu, em poucos segundos, uma filosofia que Roberto De Zerbi exponenciou.

Sem Emerson Palmieri ao intervalo, o jogo mudou radicalmente de figura e aí, Rui Borges soube dar ferramentas ao Sporting para crescer. Da incapacidade de fazer frente a um Marselha muito bem oleado, os leões assumiram-se como dominadores perante uma versão estranha de uma equipa de Roberto De Zerbi, encapsulada num 5-3-1 e sem capacidade para ter bola ou procurar saídas mais vertiginosas.
O cenário mudou de figura, o Sporting assumiu o domínio e Rui Borges foi buscar ao banco a vitória. O técnico confidenciou que havia pedido aos jogadores, plano da estratégia inicial, que procurassem jogar por fora, evitando perdas de bola interiores que desaguariam em transições. Na segunda parte, esse foi, porventura, o único ponto a apontar ao Sporting, que manteve parte da estratégia e por poucas vezes soube procurar o espaço interior.
Quando o fez, foi geralmente por Gonçalo Inácio. Jogou de cadeirinha na segunda parte, vendo o jogo de frente e quebrando linhas com o passe. Também Pedro Gonçalves, algo amorfo no seu lugar de sempre, cresceu quando passou a ver o jogo de frente, como 8, já fora do bloco muito junto do Marselha. Se coletivamente não foi fácil, individualmente houve jogadores capazes de aproximar o Sporting da baliza contrária.

Há, também, uma espécie de contrariedade na fase de Luis Suárez. Já não está a desfilar confiança como quando chegou, e isso traduz-se na forma como vem dificultando a tarefa de finalizar, Ainda assim, o colombiano aproxima o Sporting da baliza adversária. Há coisas difíceis de explicar, mas ao mesmo tempo que o 97 permite aos leões chegar perto do golo, também se distancia deste quando chega à hora de finalizar.
Até por isso, a entrada de Fotis Ioannidis, não direcionada diretamente com os golos, permitiu uma melhor tradução do volume ofensivo dos leões. O grego tem características interessantes para o futebol português e um lado físico imponente na resposta a cruzamentos e nos duelos, que se alia muito bem à capacidade associativa e combinativa no seu jogo. Está a crescer na sombra, mas pode muito bem conquistar o lugar ou, em muitos cenários, conjugar-se com Luis Suárez para o Sporting ganhar Pedro Gonçalves fora do bloco.
A última nota passa pelos marcadores dos golos. Geny Catamo era uma urgência no jogo e o golo, pelo posicionamento e frieza no momento do remate, nunca teria surgido de tal maneira com Geovany Quenda. O produto final do moçambicano é este e Rui Borges soube entendê-lo. Com uma ligação menos direta ao lance, a entrada de Alisson Santos também se percebe, apesar do contexto – pelo pouco espaço de terreno onde o jogo estava a ser jogado – e teve recompensa. Entrando a poucos minutos do fim, terá sempre impacto pela energia e pela capacidade de acelerar. É mais fácil ao brasileiro apanhar boas ondas a partir dos 70 minutos.

BnR na Conferência de Imprensa
Bola na Rede: É conhecido por saídas de bola elaboradas e por uma pressão muito alta ao adversário. Do ponto de vista pessoal, quais os principais desafios de pôr uma equipa a jogar com 10 tão recuada em campo e abdicando tanto da bola?
Roberto De Zerbi: Foi um jogo completamente diferente do que preparámos e uma forma de jogar diferente e do que estamos habituados a treinar. Se na segunda parte podíamos ter feito coisas melhores? Sim. O Murillo podia ter partido um pouco mais, o Weah também enquanto esteve em campo e teve energia. Podia ter colocado o Murillo um pouco mais cedo para repartir, sim. Mas há que deixar claro que foi um jogo completamente diferente. O Nápoles, campeão de Itália e com um grande treinador, ficou com menos um aos 70 minutos, quando perdia 3-1 e perdeu 6-2. Mostra a dificuldade de jogar com 10 num jogo europeu. Não é um jogo como outros. É dificil, joga o cansaço, muitos elementos, a qualidade do adversário. É muito difícil.