Não diria que a última edição do galardão mais lisonjeado e ilustre do futebol mundial teve a votação mais renhida desde a era bipolar de Ronaldo e Messi, uma vez que a nova geração de Mbappé e Haaland também esteve, em várias edições, perto de chegar aos sopés da grandeza — como Peter Drury dizia no início da final do último Mundial, no Catar.
Hoje, com Ousmane Dembélé como o último vencedor e, por isso, a representação ideal da excelência que o futebol nos ofereceu na última temporada (desde a liderança de Dembélé e Raphinha em campo pelos seus clubes, às épocas de revelação dos portugueses do PSG, ao domínio tardio de Lamine Yamal e à consistência histórica de Salah na Premier League), imaginem agora a pressão e a ansiedade de prever um ano que normalmente constrói um legado de caos: um ano com Mundial e Champions League.


Entre os grandes candidatos, destaca-se Harry Kane. O ponta de lança inglês continua a ser o motor do ataque bávaro nesta temporada, marcada pela ausência de Musiala. Não só tem vindo a igualar o bom início de época que teve na estreia na Bundesliga, em 2023 — com 14 golos nos primeiros 12 jogos —, como é um grande candidato porque também responde às dúvidas e angústias sobre o que define um perfil de “Bola de Ouro”. Nos dias de hoje, sem um domínio absoluto de um jogador, é compreensível ter incertezas sobre o que é, afinal, um perfil de Bola de Ouro.
Se olharmos para Raphinha, ou até para Modric pela Croácia em 2018, jogadores que lideram a equipa e motivam o ataque estão dentro da categoria de excelência e mérito necessários, mesmo deixando de lado golos e assistências. E falamos de jogadores atacantes porque a opinião pública raramente valoriza os restantes — os verdadeiros condutores do “showbiz” (com a óbvia exceção de Rodri).


O primeiro Der Klassiker desta época, em outubro, contribuiu muito para a visão multifacetada que Kompany — e agora o mundo do futebol — tem do inglês. Com Nicolas Jackson a entrar nos planos do treinador após uma negociação conturbada com o Chelsea, a possibilidade de Kane jogar como número 10 foi explorada neste clássico, com feedback claramente positivo.
Apesar de já termos visto alternâncias entre Kane e Son no Tottenham, o sul-coreano não era uma opção natural como ponta de lança (pelo menos na era Kane). Era, sim, o extremo-esquerdo de confiança do inglês — e mais móvel do que Jackson tem sido na equipa alemã esta temporada.
O passe longo de Kane, ainda no meio-campo do Bayern, a colocar Luis Díaz no flanco esquerdo, seguido do golo de Olise, é uma das situações que mostram a versatilidade do inglês. Podemos dizer que Kane tem todas as condições para transportar este grande momento até ao próximo verão, no Mundial. A terceira época na Bundesliga está claramente a ser a culminação da aprendizagem adquirida até agora numa liga com menor intensidade do que a Premier League e, por norma, com mais espaços para elaborar o ataque.
O impacto na liga também se vê no banco. Durante a vitória frente ao Estugarda, de Tiago Tomás, Kane entrou aos 61 minutos e fez um hat-trick, apesar de Kompany querer descansar o jogador após uma semana exigente antes da receção ao Sporting, na Champions League. Não estamos a falar de um impacto à la Lewandowski – cinco golos em nove minutos – e até podemos comparar com o impacto semelhante de Haaland ao conquistar um triplo europeu histórico para o Manchester City. Mas estes argumentos têm pouco peso quando analisamos o contexto em que Kane se insere esta temporada.


E, mais uma vez, não é anormal nem imprevisível o nível a que está a jogar, tendo em conta a consistência da sua veia goleadora desde que chegou ao Bayern. Importa sublinhar as potencialidades desta época: este é um Kane que lembra o de 2017/18, quando atingiu os 30 golos na Premier League. Agora, além dos números astronómicos, há uma ambição coletiva renovada — não só com a seleção inglesa, sempre candidata ao segundo título mundial em 2026, mas também com jogadores de topo como Díaz e Olise, duas relíquias que continuam a afirmar a sua qualidade, especialmente nas vitórias contra Chelsea e PSG na fase de liga da Champions League. Estes casos coincidem, aliás, com o propósito da chegada de Kane ao Bayern: jogadores de topo finalmente integrados num projeto com papel preponderante para vencer.
Voltando ao impacto do Mundial: Haaland não esteve presente em 2022 para disputar votos com Lionel Messi na Bola de Ouro. Mesmo aproximando-se dos números da sua época histórica de 2022/23, é seguro dizer que o Manchester City não tem atualmente capacidade para regressar a esse nível, sobretudo com um Arsenal mais competitivo na Premier League. Também surgem oposições a Kane dentro do próprio campeonato, com exibições como as de Gabriel Magalhães ou Declan Rice, seu compatriota, que merecem destaque.
Esta pode ser outra vantagem de Harry Kane: além da gestão equilibrada nos jogos da Bundesliga, que não comprometerá os números pré-Mundial, há ainda a eventual função que poderá desempenhar no ataque de Thomas Tuchel, numa seleção favorita ao título. Isso limita a concorrência com outros jogadores com menor sucesso a nível internacional.

