O futebol espanhol está recheado de históricos, espalhados por todo o país e pelas várias divisões que fazem a estrutura do desporto rei no país vizinho. Tal como em Portugal, os escalões inferiores podem revelar-se um absoluto inferno para as equipas que na teoria são favoritas. Anualmente, assistimos a surpresas e a desilusões, acompanhadas do nascimento e/ou crescimento de atletas que acabam por chegar mais longe, mas que, como atuam na Primera/Segunda RFEF não passam de meros desconhecidos para a maioria do público. O mesmo sucede com os treinadores. Estas divisões são uma prova de fogo para as equipas técnicas, que têm que procurar soluções para problemas inesperados, contando com um entrave da lista de inscrições ser bastante curta (daí o desenvolvimento das equipas B e dos Sub-19).
O Real Múrcia é um dos emblemas que marcou a história do futebol espanhol. Não sendo um habitual militante da La Liga, o conjunto do Nueva Condomina é a equipa com mais conquistas da La Liga 2, com oito no total, à frente de Real Bétis, Real Oviedo ou Deportivo de La Coruña. Na classificação histórica, os pimentoneros ocupam o terceiro posto do segundo escalão. Contudo, a equipa não pertence à prova em 2025/26.
Em 2013/14 o Real Múrcia conseguiu finalizar a La Liga 2 no quarto posto, perto de uma promoção. Porém, acabou por ser despromovido depois de não ter conseguido inscrever a equipa na competição, vivendo uma crise financeira sem precedentes (dívidas acima dos 12 milhões de euros à Agência Tributária). Os adeptos do clube realizaram várias manifestações, questionando a decisão de Javier Tebas de não aceitar o emblema no escalão (Jesús Samper, que dirigia o Real Múrcia na ocasião, não tinha a melhor relação com o atual presidente da La Liga, o que aumentou a polémica da decisão).


Esgotaram-se todas as opções, mesmo com um juiz a dar razão ao clube, mas tudo foi em vão, num caso que contou inclusivamente com a presença de Luis Rubiales, que na época desempenhava funções na AFE (Associação de Jogadores). Os granas desde esse momento que vivem uma travessia no deserto e em 2021, ano da reestruturação do futebol espanhol, acabaram inclusivamente por participar na Segunda RFEF, ainda que promovidos de imediato. Devido ao seu histórico, a instituição apresenta-se sempre como uma hipotética candidata à subida, ao regresso aos escalões profissionais, algo que até ao momento não aconteceu.
O Real Múrcia já caiu na fase regular, mas também já foi eliminada nos playoffs, como no caso de 2024/25, onde perdeu contra o Gimnàstic Tarragona nas meias finais do acesso. Tal como a maioria dos clubes espanhóis de referência conta com um dono, os pimentoneros não são exceção. Felipe Moreno bateu com o pé e disse basta, apontando a um 2025/26 em grande, precisamente a época em que poderia voltar a ser o grande representante da região (o Cartagena está de regresso à Primera RFEF- por curiosidade, uma parte da SAD deste emblema pertence a um amigo de Felipe Moreno, com esta ‘parceria’ a ser investigada pelo CSD).
A direção resolveu despedir Fran Fernández para colocar um nome de peso no posto de treinador. Joseba Etxeberria, histórico futebolista do Athletic, chegara ao Nueva Condomina depois de anos de experiência na La Liga 2, no Tenerife, Mirandés e Eibar, de onde tinha saído em 2024/25. O basco era o homem forte de Felipe Moreno e Asier Goiria, diretor desportivo, colocaram a fasquia bem alta. Afinal, Joseba Etxeberria não rumava ao sul para falhar.


Olhamos para o plantel do Real Múrcia e verificamos que existem uma série de nomes conhecidos, com experiência bem acima da média, dotados de qualidade. Na baliza mantiveram a um experiente Gianfranco Gazzaniga, que conhece bem o escalão. A equipa conta com a melhor dupla de laterais direitos da divisão, com os dois a possuírem valências mais do que suficientes para atuarem nas competições profissionais: Jorge Mier e David Vicente. Esteban Saveljich ficou conhecido pela sua passagem no Rayo Vallecano e nem todos os plantéis se podem dar ao luxo de ter um jogador com experiência de La Liga. Ao seu lado, Alberto González prometia ser o patrão da defesa, cargo que tem ocupado nas últimas três temporadas. Na lateral esquerda, o Real Múrcia decidiu fechar a contratação de Cristo Romero, outrora grande promessa do Málaga e que na temporada passada tentou impressionar o El Madrigal, representando a equipa B do Villarreal.
No meio campo, Isi Gómez via em 2025/26 a sua temporada de afirmação no Nueva Condomina e Juan Carlos Real queria assumir o papel de estrela, algo que não conseguira, pese a sua experiência em La Liga 2. No ataque, Ekain desejava voltar a ganhar o estatuto do passado, que o levou ao Racing Santander. Pedro Benito, para muitos mais conhecido pelas suas atividades nas redes sociais, estava pronto para explodir. Palmberg, antiga promessa do São Paulo, procurava uma afirmação no futebol europeu, algo igualmente desejado por Matheus Cadorini. Flakus mereceu a confiança da propriedade para o adquirir em definitivo do Castellón, por 500 mil euros. Já Álvaro de Bustos fazia parte do grupo de jogadores com experiência na Primera RFEF e que podia guiar os mais jovens. Na liderança de todo este projeto, o perito Pedro León procurava aos 39 anos voltar a colocar a equipa onde foi formado novamente na La Liga 2. O internacional jovem espanhol, conhecido pelo seu célebre conflito com José Mourinho nos tempos de Real Madrid, saberia que não ia ser um indiscutível, mas a sua importância no balneário mantinha-se como fundamental.
Como vemos, trata-se de um plantel que, pese as carências, estaria dotado para conseguir disputar o acesso ao playoff de promoção, pela mão de Joseba Etxeberria. Ninguém esperava que o trabalho do treinador basco roçasse a mediocridade, nem mesmo os mais negativistas. Nas primeiras jornadas a contestação já se fazia sentir e o técnico somente era protegido por Felipe Moreno e pela direção desportiva, que estava igualmente tremida.


O antigo avançado durou nove partidas, acabando por conseguir apenas uma vitória, quatro empates e quatro derrotas, deixando o Real Múrcia na zona de despromoção, antevendo-se o pior. Felipe Moreno tentou dar tempo a Joseba Etxeberria, consciente de que nem sempre a solução está no despedimento do treinador. Além disso, a sua saída, acompanhada da equipa técnica e de Asier Goiria, custaria aos cofres do clube uma verba a rondar os 500 mil euros, valor pesado para um emblema deste escalão. O dirigente decidiu premir o gatilho e recomeçar um projeto de novo, com uma comissão desportiva e um treinador interino (que previsivelmente seria substituído por outro nome mais conhecido).
Adrián Colunga foi confirmado como sucessor de Joseba Etxeberria, com a missão de conseguir gerir interinamente um plantel que ao nível psicológico estava de rastos, mas que continuava a ser as suas valências. Conhecido avançado da última década, o asturiano contava com pouca experiência, ocupando o posto de técnico do Múrcia B desde o último verão, merecendo a confiança de Pedro Asensio, diretor de futebol jovem, dirigente que promete ser parte chave no projeto do clube. Adrián Colunga já tinha passado pela estrutura da instituição liderando os juniores 2023/24, depois de passar pelo Mallorca e pelo San Francisco (conhecida escola de formação das Baleares).
Poucos esperavam os resultados que Adrián Colunga alcançou. Antes de ser anunciado como treinador principal, deixando de ocupar o posto de interino, o técnico somou três triunfos (um deles para a Copa del Rey) e um empate. Felipe Moreno ficou convencido e o timoneiro está a corresponder às expectativas, não sabendo o que é perder e colocando o Real Múrcia na disputa do seu objetivo inicial: a luta pelo playoff de promoção. Os seus últimos resultados possivelmente foram os mais épicos e a confirmação de que o sucesso não se deve apenas ao efeito da chicotada psicológica. O clube apurou-se para os 16avos de final da Taça do Rei depois de bater o Cádiz, equipa da La Liga 2 por 3-2 e poucos dias após este triunfo, rumou ao Cartagonova para vencer o seu maior rival, o Cartagena, por 1-0.


Ao contrário de Joseba Etxeberria, Adrián Colunga já convenceu os adeptos. Simplificou o estilo de jogo, recuperou mentalmente a equipa e promoveu alguns jovens, que eram utilizados no Múrcia B. O antigo avançado seguiu a antiga receita de apostar na prata da casa para realizar uma remontada, mas não deixou ninguém de parte, o que é fundamental para manter um balneário com um ambiente positivo, já que todos os jogadores contam com esperanças de darem a sua ajuda dentro das quatro linhas. Adrián Colunga ‘renasceu’ alguns atletas como Juan Carlos Real ou Pedro Benito (algo desacreditado, mas que passou para o topo dos favoritos entre os aficionados), arranjou forma de colocar David Vicente e Jorge Mier (teriam lugar na Primeira Liga) ao atuarem ao mesmo tempo, puxando o segundo para a esquerda, e possivelmente travou uma ida mais agressiva do Real Múrcia ao mercado, com a utilização constante de Héctor Pérez (que deu a vitória frente ao Cartagen e ainda enviou uma bola ao ferro), que está a ocupar com sucesso o lugar de Esteban Saveljich, que vai parar até ao final da época, além de colocar jovens promessas no banco de suplentes, como Manuel Lara.
O Real Múrcia poderá concentrar-se em janeiro em oferecer contratos de primeira equipa às jovens promessas, ao invés de realizar muitas aquisições. Isto não significa que o clube não tem que ir ao mercado. É algo óbvio, mas que poderá ser realizado em menor escala e com mais precisão. Não deixa de ser criticável o facto de jogadores como Palmberg ou Sekou Djanbou, que estão totalmente assentes no plantel principal, ainda terem ficha de filial. Os granas poderão aproveitar para colocar cláusulas de rescisão maiores nos contratos das suas novas promessas. Certamente que há emblemas de olho nas prestações de Héctor Pérez.
O projeto do Real Múrcia é deveras interessante, acompanhado com o nascimento de uma Cidade Desportiva que procura colocar o clube como uma das referências do país, algo que conseguiu ser outrora. Felipe Moreno conseguiu virar a página com a promoção de Adrián Colunga, que representa uma ‘lufada de ar fresco’ no Nueva Condomina, prevendo-se que se transforme num treinador de sucessos nos próximos anos. O Real Múrcia não provocou um terramoto no seu plantel para que o mesmo voltasse a produzir, bastou mexer na peça certa, que aparenta estar talhado para conseguir retirar o melhor dos seus jogadores, apelando principalmente ao seu psicológico. A mentalidade do atleta é fundamental no futebol moderno e Adrián Colunga aparenta ser um especialista em saber trabalhar os jogadores. Algo natural, depois de tantos anos dentro das quatro linhas.


É complicado definir se o Real Múrcia vai ser uma equipa da La Liga 2 na próxima época, mas está muito mais perto de o ser agora, do que com o seu estado em setembro. Adrián Colunga quer ir jogo a jogo, discurso conhecido em Portugal pela sua aplicação por parte de Ruben Amorim no Sporting. Atualmente, a equipa está na quarta posição do grupo B da Primera RFEF, que tem no Atlético Madrid B o seu provável campeão. Europa e Sabadell, conjuntos catalães, estão na frente do Real Múrcia, mas poucos apostam na continuidade de resultados positivos por parte destes dois emblemas, que não estão talhados em 2025/26 para lutar pela subida. O Nou Sardenya, casa do emblema de Gràcia, tem o seu relvado feito por material artificial, algo que não é permitido na Primera RFEF e o Europa pode sofrer as consequências de uma mudança de recinto.
2025/26 não começou da melhor maneira na região de Múrcia, que tem em Carlos Alcaraz a sua maior referência na atualidade. Porém, no que trata ao desporto rei, o emblema da capital promete dar espetáculo e seguir com a sua recuperação. Pode até falhar na presente temporada, mas ao olhar para o longo prazo, o futuro é risonho.



