«Cruyff disse que eu o fazia lembrar a ele próprio» – Entrevista BnR com Dani

– Herdeiro de Cruyff em Amesterdão –

BnR: Disseste que os tempos na Holanda foram muito violentos a nível pessoal. Porquê?

D: Fui sozinho, mais uma vez. Os meus pais não podiam deixar tudo e ir comigo, embora fossem visitar sempre que possível. Em Londres, foi um choque enorme no início, mas tive de me habituar a isso e tirar o melhor partido da situação e do momento que estava a passar. Não podia estar ali como estive nas primeiras três semanas – sempre a chorar, sozinho, triste em casa. Treinávamos duas horas. À uma da tarde, estava despachado e tinha mais 20 horas até ao próximo treino. Era muito tempo livre e vivi muito fora dos relvados.

Dani esteve quatro épocas no Ajax
Fonte: AFC Ajax

BnR: Na Holanda também?

D: Na Holanda também. Fui aos Jogos Olímpicos e fui logo a seguir para o AFC Ajax, nem voltei ao Sporting. Fui para lá muito novo, e o Van Gaal disse “Ele só vai começar a jogar na equipa daqui a uns bons meses. Vai ter de se habituar à forma de jogar, à forma de treinar”. E eu senti isso. A intensidade dos treinos, a qualidade dos exercícios. Duvidei da minha qualidade muitas vezes, porque os exercícios tinham componentes técnicas e táticas a que eu não estava habituado. A qualidade do passe, da receção, os movimentos, a importância da decisão, ter também a noção de que se arriscares três ou quatro vezes e perderes a bola… Isso para a equipa não funciona. Preferiam a ausência do risco, e eu tive de me habituar a isso. Eu, que era um jogador de risco! Para me habituar a isso foi difícil. Mas habituei-me e cumpri.

BnR: E a verdade é que o Van Gaal aposta em ti mais cedo.

D: É, passado pouco tempo joguei logo a Liga dos Campeões. Por força das circunstâncias, tínhamos vários jogadores lesionados. Era o primeiro jogo da fase de grupos, contra o Glasgow Rangers. No Ajax, só entravas na primeira equipa depois de uns treinos com um treinador que fazia exercícios muito próximo daquilo que é o jogo, com uma intensidade brutal, como eu nunca tinha visto na vida. Quando jogávamos ao fim-de-semana para a liga holandesa, quem jogasse poucos minutos depois à 2ª-feira jogava pela segunda equipa. Eu joguei alguns minutos no campeonato, e depois, na 2ª-feira, fui jogar pela segunda equipa, como era normal. Entretanto, a primeira equipa já estava em estágio para o jogo de quarta-feira com o Rangers. Quando acaba o nosso jogo, o segundo treinador chega lá e diz-me “Faltam jogadores, agarra nas tuas coisas e vais para estágio”.

BnR: E que tal o estágio?

D: Foi logo uma situação diferente. Não era um hotel de 5 estrelas, era perto da praia, a meia hora de Amesterdão. Uma pensão só para nós, quartos abertos e sem chave, como uma família. Tivemos um treino lúdico na praia, na 3ª-feira de manhã, para desenvolver o espírito de grupo, mas ao mesmo tempo para fazer alguns exercícios. Depois ao final do dia, fizemos um treino tático. À noite, o Van Gaal entra-me pelo quarto e diz “Amanhã vais jogar!”. E eu fiquei “O quê?! Então mas o mister tinha-me dito que não ia…”. E ele diz “Eu pus o Kluivert, o Davids, o Seedorf a jogar com 16 ou 17 anos. Tu estás preparado e tens que fazer aquilo que eu digo.”

BnR: E estavas preparado?

D: Eu ia jogar a 10, no lugar do Litmanen que estava lesionado, e o Martijn Reuser a 9. Nós os dois da frente tínhamos movimentos muito específicos de atração, de arrastamento, e os dois extremos, Babangida e Overmars, sabiam perfeitamente os movimentos nos cruzamentos. Quer eles levantassem a cabeça ou não, um atacava o primeiro poste, outro o segundo e havia o extremo do outro lado. Se a bola fosse para aquelas três zonas, tínhamos de lá estar. Eu dizia ao Van Gaal que não tinha esse hábito de jogar de cabeça, gostava era de rematar e ir buscar a bola no pé, e ele “Não, não, faz o que te estou a dizer e vais ver”.

BnR: E fizeste o que ele te pediu?

D: Sim. No final da primeira parte, já tinha marcado dois golos de cabeça, mais uma bola à trave. Fiz uma 1ª parte extraordinária, e os meus colegas todos a dizerem “Espetáculo Dani, já fizeste dois golos”. O Van Gaal chega e diz “Calma miúdo. Se agora na 2ª parte começares a fintar, a inventar e a perder a bola, saco-te logo”. E eu fiz duas ou três assim mais ariscas e ele sacou-me (risos).

BnR: No Ajax, acabas por fazer provavelmente um dos melhores golos da tua carreira, frente ao Atlético de Madrid.

D: Lembro-me de que na primeira mão estava lesionado. Na segunda mão, vou para o banco, mas o Litmanen não estava a 100%, e o Van Gaal põe-me a aquecer logo na 1ª parte, por precaução. O Hélder, massagista português do Atlético, vai assistir um jogador na linha. Eu estava ali a aquecer e disse-lhe “Epá, se o homem me mete, eu hoje dou cabo disto. ‘Tou com uma fé!”. O meu pai e o meu tio tinham ido de Lisboa ver o jogo e tudo. Enquanto eu aquecia, o Danny Blind estava no banco, e eu ia fazendo sinais para ele e gritava “Diz ao homem para me pôr, o Litmanen está à rasca!”.

BnR: E ele?

D: Só dizia “Tu és maluco? Dizer ao Van Gaal para te meter?”. Lembro-me do Calderón completamente cheio a apoiar a equipa do Atlético. Eles estavam a jogar bem, e eu sempre a pedir para me porem. Estava no banco com o Nordin Wooter, e, antes de irmos aquecer, eu disse-lhe “Hoje vamos rebentar com isto. Vamos dar cabo disto”. E acaba por ser ele a fazer o passe para mim. Eu olhei, não tinha mais ninguém e decidi rematar. Pumba! E sai aquele golo.

BnR: É verdade que o Johan Cruyff na altura critica o Louis Van Gaal por não seres titular mais vezes?

D: Sim, estava a fazer comentários num jogo do Ajax, creio que da Liga dos Campeões, e comentou que eu a jogar o fazia lembrar a ele próprio: “O Dani é parecido comigo, tem coisas minhas” e tal. O Cruyff quando falava aquilo era lei.

BnR: Tu até acabas por jogar com o 14, que era o número dele.

D: Sim. No primeiro ano, jogo com o “21”, e no segundo o Ajax dá-me o “14”, como uma operação de marketing. Aquilo foi uma notícia muito forte na Holanda. Esse rótulo nunca saiu, fiquei sempre ligado aos comentários e à opinião do Cruyff. Descobri depois que o Cruyff e o Van Gaal já tinham histórico, aquilo não foi por acaso (risos). Ele queria que eu jogasse mais, e queria que a equipa jogasse mais como eu jogava. Mas o Van Gaal era muito restrito.

BnR: Ele também se deu mal no Barcelona. Houve jogadores que se queixaram disso publicamente.

D: Sim, mas as pessoas pensam que o Van Gaal era uma pessoa com quem não consegues falar. Pelo contrário! Eu adorei trabalhar com ele. Tivemos uma excelente relação. Ainda hoje falo com ele, e ele sempre apoiou. Uma vez perguntei-lhe “Mister, o Ajax joga desta maneira há muitos anos. Os adversários já sabem como é que nós jogamos, não devíamos mudar alguma coisa?”. E ele “Não, nós temos é que ser cada vez melhores na forma como jogamos. Porque se formos muito bons a jogar desta forma, com esta identidade e a filosofia do Ajax, somos fortes e conseguimos ser superiores aos adversários. Agora, temos é que ser praticamente perfeitos.”

BnR: Isso depende muito da qualidade dos jogadores também…

D: Sim, houve ali momentos na história que o Ajax não conseguia ser superior porque não havia qualidade. E o Ajax é de ciclos: nos anos 70/80 com o Cruyff e o Rinus Michels como treinador conquistam a Europa; depois nos anos 90 em que aparece aquela fornada de jogadores, Seedorf, Davids, Kluivert, Danny Blind, Frank de Boer e Ronald de Boer, Van der Sar, Overmars, os nigerianos Kanu e Finidi. Aquilo era uma qualidade extraordinária, e eles ganharam tudo de 1990 a 1995.

BnR: Mas dizias… sobre o Cruyff e o Van Gaal?

D: Quando fui ver a história do futebol na Holanda, percebi a história entre eles. O Van Gaal jogava no Alkmaar e o Ajax ganhava-lhes sempre, com o Cruyff a fazer a diferença. Um dia antes de um jogo, o Van Gaal disse aos colegas que não iam jogar como o treinador disse. Iam fazer marcação homem a homem, com o Van Gaal a marcar o Cruyff. Acho que perderam 10-0 ou 11-0, e o Cruyff marcou uma data de golos (risos). Por isso é que a relação deles nunca foi a melhor.

BnR: É no Ajax que compreendem melhor a tua vontade de aproveitar ao máximo a vida além do futebol?

D: Sim. Eles lá davam-nos muita liberdade – a liberdade própria dos holandeses, de Amesterdão. Um jogador que fosse para o Ajax, viesse de onde viesse e tivesse a idade que tivesse, quer tivesse família ou fosse casado… não havia preocupação nenhuma. Agora, um miúdo com uma apetência para viver a vida com essa vontade e com alguma irreverência, depois com qualidades próprias da minha maneira de ser… eles compreendiam e percebiam onde é que eu estava.

BnR: Em que sentido?

D: Uma vez estava a falar sobre isso com o treinador Jan Wouters, e ele diz-me que eu não podia sair tanto. Eu disse-lhe que só saía depois dos jogos, e ele “Ok, só sais depois dos jogos. Nós jogamos duas vezes por semana, isso num mês, faz as contas ao número de vezes que sais. E eu “Pois, de facto tem razão, mister”. Isto não era uma regra, não quer dizer que eu saísse sempre depois dos jogos, mas gostava de sair e gostava de sentir que “joguei, não tenho ninguém em casa à minha espera. Quero ir jantar” e, se depois acontecesse, “ir sair ou não”.

BnR: Algum episódio na noite no qual algum adepto te chateia por ali estares?

D: Sim, isso havia. Na Holanda não me lembro de sentir essa pressão. Agora noutros países sim. Em Portugal era comum. Quando estava tudo bem, era fotografias, abraços e beijinhos. Quando as coisas não estavam muito bem, as pessoas justificavam um mau momento qualquer, e depois era mais fácil apontar o dedo a quem estavam a ver. Se me vissem às duas da tarde num supermercado, não me iam dizer nada. Mas se me vissem às duas da manhã numa discoteca, se calhar iam-me dizer “Epá, o Sporting não está bem, isto e aquilo…”. Temos que enquadrar os momentos. Por exemplo, em Madrid não queriam saber. Se tínhamos perdido, fosse no supermercado, à hora de almoço ou à noite, os adeptos cobravam de uma maneira…

Sabe Mais!

Sabe mais sobre o nosso projeto e segue-nos no Whatsapp!

O Bola na Rede é um órgão de comunicação social de Desporto, vencedor do prémio CNID de 2023 para melhor jornal online do ano. Nasceu há mais de uma década, na Escola Superior de Comunicação Social. Desde então, procura ser uma referência na área do jornalismo desportivo e de dar a melhor informação e opinião sobre desporto nacional e internacional. Queremos também fazer cobertura de jogos e eventos desportivos em Portugal continental, Açores e Madeira.

Podes saber tudo sobre a atualidade desportiva com os nossos artigos de Atualidade e não te esqueças de subscrever as notificações! Além destes conteúdos, avançámos também com introdução da área multimídia BOLA NA REDE TV, no Youtube, e de podcasts. Além destes diretos, temos também muita informação através das nossas redes sociais e outros tipos de conteúdo:

  • Entrevistas BnR - Entrevistas às mais variadas personalidades do Desporto.
  • Futebol - Artigos de opinião sobre Futebol.
  • Modalidades - Artigos de opinião sobre Modalidades.
  • Tribuna VIP - Artigos de opinião especializados escritos por treinadores de futebol e comentadores de desporto.

Se quiseres saber mais sobre o projeto, dar uma sugestão ou até enviar a tua candidatura, envia-nos um e-mail para [email protected]. Desta forma, a bola está do teu lado e nós contamos contigo!

Frederico Seruya
Frederico Seruya
"It's not who I am underneath, but what I do, that defines me" - Bruce Wayne/Batman.                                                                                                                                                O O Frederico escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.

Subscreve!

Artigos Populares

Bayern Munique e AC Milan vão reunir por Rafael Leão e há 40 milhões de euros a separar os dois clubes

O Bayern Munique está muito interessado em garantir Rafael Leão. O jogador pertence aos quadros do AC Milan.

Lamine Yamal elogia Cristiano Ronaldo e fala da Bola de Ouro: «Para mim é para o melhor jogador do ano»

Lamine Yamal deixou grandes elogios a Cristiano Ronaldo e falou sobre a corrida à próxima edição à Bola de Ouro.

Casa Pia diz adeus a ex-Benfica e posição será reforçada

O Casa Pia não vai continuar com Cauê nos seus quadros. O jogador esteve emprestado por meia época pelo Lommel.

Boca Juniors fecha reforço ao AC Milan por 3,5 milhões de euros a tempo de defrontar Benfica no Mundial de Clubes 2025

O Boca Juniors tem a contratação de Marco Pellegrino fechada. Defesa de 22 anos regressará à América do Sul em definitivo.

PUB

Mais Artigos Populares

Matilde Vaz foi a 1ª jogadora a marcar pelo FC Porto e renova contrato

Matilde Vaz renovou contrato com o FC Porto. A jogadora foi a primeira da história a marcar pelos azuis e brancos.

Iván Fresneda quer subir o nível: «O meu próximo objetivo é a seleção de Espanha»

Iván Fresneda acabou por ser um elemento importante para o Sporting na última temporada. O lateral quer chegar à seleção.

Wellington Carvalho renova contrato com o Chaves

Wellington Carvalho vai continuar a vestir a camisola do Chaves. O extremo é mais uma das renovações flavienses.