Espanha tetracampeã da Europa | A vitória de uma identidade

    Berlim. 14 de Julho de 2024. O dia em que o futebol venceu.


    A Espanha sagrou-se campeã europeia e é quase unânime (provavelmente à excepção dos adeptos ingleses) a opinião de que ganhou a melhor selecção deste Euro 2024.

    Foi a vitória de uma identidade, duma equipa sempre fiel ao seu estilo de jogo, independentemente das circunstâncias de cada jogo ou do adversário que defrontaram.

    Uma vitória alcançada depois de terem ganho à Croácia (terceira classificada do último Mundial e vice-campeã mundial em 2018), de terem banalizado a Itália (a passar por uma reestruturação profunda mas que não deixava de ser a campeã europeia em título), de ter conseguido eliminar a anfitriã Alemanha num jogo fantástico e digno duma final, de ter eliminado a França (vice-campeã mundial em título e uma seleção recheada de craques) e terminando ontem contra outra seleção muito poderosa e uma das que era considerada favorita a ganhar o torneio: a Inglaterra.

    Eliminar quatro seleções campeãs do mundo não está ao alcance de qualquer equipa e ganhar os sete jogos da competição (!), muito menos. Um fato absolutamente inédito e uma seleção que já tem o seu lugar na história.

    Nico Williams Lamine Yamal Espanha Euro 2024
    Fonte: UEFA

    Uma equipa liderada por um seleccionador que foi sempre muito coerente nas suas decisões e que não embarcou em experimentalismos (como por vezes o nosso seleccionador fez por exemplo).

    O futebol não deixa de ser um jogo muito simples, onde os jogadores se irão conseguir exprimir melhor quanto mais estiverem libertos de amarras táticas e jogando na posição que mais os favorece, fazendo aquilo que sabem fazer. 

    E Luis de la Fuente entendeu isso na perfeição.

    Uma mescla de jogadores tarimbados com jogadores jovens mas todos eles com enorme fome de vitória com um espírito de equipa inigualável, bem capitaneados pelo incansável Morata, alvo de várias críticas do país vizinho, mas cujo trabalho em prol da equipa é digno de todos os elogios e mais alguns.

    Na primeira parte e tal como já era expectável, a posse de bola da Espanha foi estéril perante uma Inglaterra bem organizada (mais preocupada em destruir do que construir, como já vem sendo apanágio das equipas de Gareth Southgate), a sair em transição mas sem conceder uma única oportunidade clara de golo à equipa de nuestros hermanos.

    Foi uma primeira parte equilibrada sem nenhuma das individualidades espanholas a sobressair.

    Do lado da Inglaterra, destaco a excelente primeira parte do Bellingham, nas poucas oportunidades em que conseguiu ter bola. Mesmo limitado fisicamente (devido a uma época incrível ao serviço do Real Madrid na qual jogou mais de 50 jogos e foi decisivo para as grandes conquistas da equipa), com os seus 21 anos recém-cumpridos é um jogador assombroso e alguém chamado a fazer história no futebol mundial.

    E também é de realçar a qualidade da saída de bola de Stones, várias vezes chamado a construir jogo no Manchester City de Pep Guardiola.

    Uma final que já se antevia que iria ser decidida em detalhes, cuja primeira parte veio comprovar isso mesmo.

    Gareth Southgate Euro 2024
    Fonte: Filipe Oliveira/Bola na Rede

    Uma Espanha fiel ao seu estilo mas sem encontrar os caminhos da baliza inglesa e uma excelente decisão táctica do Southgate ao colocar o Shaw (ganhou quase todos os duelos nos primeiros 45 minutos) no lado esquerdo da defesa, para impedir a progressão do menino prodígio Lamine Yamal.

    E assim caminhamos para o fim duma primeira parte sem história, quando em mais uma das milhentas intervenções defensivas de imensa qualidade por parte do Rodri, o jogador espanhol se lesionou e levou imediatamente a mão à coxa.

    Todos os espanhóis sustiveram a respiração quando viram o cérebro da sua equipa (e partilho da opinião do seleccionador Luis de la Fuente quando pede a Bola de Ouro para o mesmo) com um semblante bastante carregado e com um evidente esgar de dor a caminho dos balneários.

    Poderia ter sido a mudança de guião desta final (morna quanto muito até aquele momento) e o ponto de partida para uma Inglaterra a tomar finalmente as rédeas do jogo e a ter um futebol mais positivo.

    Para o lugar de Rodri, entrou Zubimendi e o médio da Real Sociedad cumpriu na perfeição a difícil tarefa de substituir o super médio do Manchester City e fez uns últimos 45 minutos muito competentes, não falhando praticamente um passe e sendo quase sempre quem iniciou a fase de construção do jogo espanhol.

    No início do segundo tempo, surgiu o golo da Espanha. Excelente condução de Zubimendi, passe de trivela de Carvajal (outro sério candidato à Bola de Ouro apesar da posição que ocupa, pois ganhou quase tudo o que havia para ganhar com clube e selecção e tendo uma contribuição muito significativa) para o menino Lamine Yamal que com 17 anos, em vez de apostar na jogada individual, viu a desmarcação do seu companheiro Nico Williams e com imensa classe deixou um passe açucarado que pedia uma finalização certeira do extremo do Atlético de Bilbau e esse não se fez rogado e abriu o marcador.

    Nico Williams Espanha
    Fonte: RFEF


    Com essa primeira grande participação no jogo dos chicos del TikTok (nome carinhoso como parte da imprensa espanhola os trata), este abriu e durante 15 minutos, foi um festival de futebol ofensivo, com sucessivas oportunidades de golo por parte da Espanha.

    Dani Olmo, Nico Williams, Lamine Yamal, Morata, Fabián Ruiz. A Espanha ia desperdiçando a oportunidade de aumentar a vantagem no marcador.

    A Inglaterra só conseguiu estabilizar com as saídas de Kane (capitão inglês que perdeu a sua sétima final e que não conta com nenhum título no seu currículo e cuja “maldição” vai ter que terminar um dia pois é um dos melhores avançados da última década), que passou totalmente inédito pela final de Berlim e do jovem Mainoo, que tinha feito um excelente Europeu até ao dia de ontem mas que acusou claramente a pressão da final.

    Em mais uma decisão acertada de Southgate (apesar do seu extremo conservadorismo e de acreditar que com outro seleccionador, esta Inglaterra jogaria muitíssimo melhor), as entradas de Palmer e Watkins mudaram completamente o cariz do jogo.

    Se bem que a Espanha continuava a ter posses de bola largas, começou a ser mais imprecisa e a Inglaterra mais agressiva nos duelos e na reação à perda da bola.

    De uma perda de bola do ataque espanhol, surgiu um contra-ataque rapidíssimo da Inglaterra com a bola colocada nas costas de Cucurella (provavelmente o único erro de um lateral que fez um Europeu absolutamente excepcional e fora de todas as expectativas iniciais), que se viu superado por Bukayo Saka e este muito inteligente, flectiu para dentro, viu a desmarcação de Bellingham no interior da área e com toda a intenção, deu apenas um toque na bola pois viu a aproximação do seu companheiro Cole Palmer, que desferiu um belíssimo pontapé de pé esquerdo que só terminou dentro da baliza do guardião espanhol Unai Simón. Estava restabelecida a igualdade e ainda faltavam 20 minutos para o fim do jogo.

    Espanha x Inglaterra
    Fonte: Filipe Oliveira / Bola na Rede

    O momentum da final poderia ter mudado naquele preciso instante. Uma Inglaterra embalada por mais de 50 mil adeptos nas bancadas (em clara maioria face aos espanhóis), certamente que se iria entusiasmar com esse facto e iria para cima da Espanha, que começava a perder mais duelos e que necessitava de mais frescura e clarividência.

    Pois, o que se viu foi exatamente o contrário. Mais uma vez (por iniciativa própria ou porque o seu processo ofensivo não está minimamente trabalhado por parte de Southgate), a Inglaterra recuou, voltou a conceder a posse de bola à Espanha e voltou a colocar a seleção espanhola na sua zona de conforto.

    Se para mim não há melhor seleção que a Espanha atualmente, ainda reforça mais esta minha opinião os momentos em que a equipa tem bola e faz uma exploração brilhante da qualidade de passe dos seus jogadores.

    Esta seleção é definitivamente mais objetiva e vertical do que outras seleções espanholas mas não deixa de ter os jugones (termo espanhol que associam aos jogadores com muita técnica individual e com uma inegável qualidade de passe), que sempre caracterizaram as seleções espanholas nas últimas duas décadas.

    Fabián Ruiz Espanha
    Fonte: RFEF

    Dani Olmo, Fabián Ruiz, o próprio Lamine e Zubimendi, comeram o meio-campo inglês e as oportunidades de golo começaram a suceder-se.

    Do banco espanhol, veio uma decisão que mudou o curso desta final. Mikel Oyarzabal (avançado da Real Sociedad e em quem este seleccionador sempre depositou muita confiança, sendo utilizado em quase todos os jogos deste Europeu), substituiu o capitão Morata (absolutamente extenuado depois de uma final de imenso sacrifício defensivo).

    A quatro minutos do fim e quando já muitos pensavam que o jogo iria para prolongamento (inclusivamente os jogadores ingleses davam a impressão de que estavam claramente a jogar a pensar nisso), surgiu a jogada que decidiu a final a favor dos espanhóis.

    Dani Olmo recuou para receber a bola de Zubimendi, combinou com Oyarzabal que viu a desmarcação de Cucurella do lado esquerdo e este com um passe de primeira absolutamente genial, fez um cruzamento tenso para o interior da área onde Oyarzabal surgiu como uma flecha, ganhando a frente a Guehi e antecipando-se à saída de Pickford (com um punhado de boas intervenções anteriormente) para colocar a Espanha de novo em vantagem no marcador.

    Foi preciso o recurso ao VAR e a utilização da regra do fora-de-jogo semi-automático para se validar o golo mas o joelho de Stones colocava Oyarzabal em jogo.


    Tal como tinha acontecido no prolongamento dos quartos-de-final com a Alemanha (para mim o melhor jogo deste Europeu e a final antecipada), a Espanha voltava a mostrar uma enorme personalidade e carácter para continuar a jogar o seu futebol e ir em busca do resultado, ao invés de especular com o jogo e baixar as suas linhas, expondo-se à velocidade e talento dos jogadores ingleses.

    A final não terminaria sem um momento de imenso apuro para a baliza espanhola e que deve ter provocado uns quantos ataques cardíacos nos corações espanhóis.

    Vendo-se a perder e já mais com o coração do que com a cabeça, a Inglaterra ganhou um canto que foi muitíssimo bem cabeceado por Declan Rice, Unai Simón defendeu a bola para a frente e surgiu Guehi na recarga mas a bola que levava selo de golo, foi cortada em cima da linha de golo por Dani Olmo (uma das grandes estrelas deste Europeu e um dos jogadores que mais se valorizou), que festejou a sua intercepção milagrosa como se de uma assistência ou de um golo se tratasse.

    E não poderia ser de outra forma. Dani Olmo sabia que aquele momento, lhes iria dar um Europeu, o quarto Europeu da Espanha (isola-se na lista de seleções com mais títulos europeus) 12 anos depois daquela geração que parecia irrepetível e que encantou o mundo do futebol com uma exibição deslumbrante perante a Itália e onde o resultado foi um expressivo 4-0.

    Essa Espanha tinha Casillas, Piqué, Ramos, Xabi Alonso, Fàbregas, Iniesta, Silva, Xavi, Villa, entre outros.. E muitos consideram ser a melhor seleção de todos os tempos e uma geração única do futebol espanhol.

    A selecção que ontem se sagrou campeã europeia não tem essas estrelas (e é mais seleção na verdadeira aceção da palavra pois tem jogadores de várias equipas e não metade da equipa do Barcelona como a de 2012) mas coloca-se ao nível dessa seleção (que já tinha sido campeã do Mundo dois anos antes), em relação à qualidade de jogo que ambas produzem, de uma ideia clara daquilo do que querem fazer em campo, bem comandada no meio-campo pelo futebolista total Rodri (digno sucessor de Busquets), assente numa grande solidariedade de todos os seus jogadores e em dois miúdos que aspiram a ser craques mundiais: Nico Williams e Lamine Yamal.

    É impossível dissociar o brilhantismo desta seleção espanhola sem falar nestes dois putos endiabrados e rebeldes. Extremos puros que escasseiam no futebol atual, que jogam por diversão e como se estivessem a jogar no pátio da sua escola ou com os seus amigos do bairro. 

    Por vezes, é quase insultuosa a forma simples como jogam e se apresentam em campo. Uma delícia vê-los jogar e é absolutamente contagiante a alegria com que jogam, quase sempre com um sorriso no rosto. 

    Que lufada de ar fresco são estes dois miúdos para o futebol mundial! 

    Lamine Yamal Espanha
    Fonte: Selección Española de Fútbol

    Lamine Yamal (com 17 anos acabados de fazer), joga como se fosse um veterano, pois para além de ser muito vertical, tem um entendimento do jogo raríssimo para alguém de tão tenra idade. Raramente se precipita, sabe quando acelerar, quando pausar o jogo, já tem uma considerável visão periférica (daí ter sido o maior assistente deste Europeu) e inclusive vê-se a dar indicações aos seus colegas de que naquele momento é para congelar a posse de bola e não avançar em cavalgadas loucas.

    Quando melhorar a finalização, será ainda mais determinante do que já é. O golo dele à França (para mim o melhor golo desta competição), vai entrar para a história dos Europeus e coloca este miúdo num patamar impressionante, um verdadeiro craque.

    A vitória da selecção espanhola não se pode entender sem o cunho do seu seleccionador De la Fuente. Alguém que pensou sempre pela sua cabeça, que conhece muito bem a maioria dos seus jogadores (já tinha sido campeão europeu sub-19 e sub-21 com vários deles), que lhes dá imensa confiança e que levou quase à perfeição o jogo de uma selecção que voltou a deixar rendidos todos os adeptos deste desporto maravilhoso.

    Luis de la Fuente Espanha
    Fonte: Filipe Oliveira / Bola na Rede


    Tem um mérito incrível todas as decisões valentes que tomou desde a convocatória às suas escolhas durante este Europeu. Bastante questionado pela imprensa espanhola inicialmente (inclusive humilhado e desvalorizado por parte da mesma), não cedeu a pressões e viu o seu trabalho recompensado.

    Quanto à Inglaterra, não foi desta que o futebol veio para casa. O seu futebol burocrático e praticamente vazio de ideias, já tinha sido premiado em rondas anteriores perante adversários claramente inferiores, comparados com os que a Espanha teve que enfrentar.

    Southgate conduziu-os a 2 finais consecutivas do Europeu (e obviamente que isso tem o seu mérito) mas nunca colocou esta equipa e geração de excelentes jogadores a exprimir o seu máximo potencial e a explanar o seu melhor futebol.

    O seu conservadorismo limita a criatividade dos seus jogadores e o futebol praticado é bastante enfadonho. Com tanta qualidade, não é possível jogar-se pior e quando quase todos jogam pior do que o que sabem, a responsabilidade só pode ser de quem os comanda.

    Espera-se que este ciclo termine por fim e que esta Inglaterra atinja finalmente o potencial que tanto se lhe reconhece mas que tarda em reflectir dentro do campo devido ao excesso de calculismo do seu actual seleccionador.

    A vitória da seleção de Espanha é uma excelente notícia para o futebol. Também é possível ganhar e jogar bem. Passa claramente a mensagem aos atuais mestres da táctica (que julgam ter descoberto e inventado o futebol) de que o talento e a criatividade jamais deverão ser coartados em detrimento do pragmatismo ou do resultado.

    Todas as ideias são válidas e existem várias formas de ganhar, mas eu serei sempre partidário de que estás mais perto de ganhar, quanto melhor jogares.

    Congratulo-me pelo fato de que a Espanha me veio dar razão desta vez.

    Para a grande parte desta geração de jogadores de Espanha, ainda falta mais de uma década de futebol ao mais alto nível e caso mantenham esta evolução, o céu será o limite e quem sabe, não estamos perante uma nova dinastia no futebol espanhol.

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