Caros leitores, começo por confessar que sou um profundo admirador da maneira intensa e apaixonada com que os sul-americanos (nomeadamente os argentinos) vivem o futebol, sempre e quando os limites não são ultrapassados.
O futebol é um autêntico culto na Argentina. “Ir a la cancha” (como os argentinos costumam dizer), é visto como uma espécie de tradição e inclusivamente podemos dizer que é um dos programas familiares mais recorrentes entre as famílias argentinas.
A sua paixão fervorosa pelo seu clube de coração (e igualmente pela sua seleção), é algo que muitas vezes invejei de forma saudável, pois para mim, o futebol é isso: um desporto único que move paixões, com um elevado grau de imprevisibilidade e uma dose enorme de espetáculo.
O entusiasmo e paixão dos “hinchas” (maneira como se denominam os adeptos na Argentina) é uma das coisas mais diferenciadoras do futebol argentino, onde não param de entoar cânticos de apoio à sua equipa e seleção.
Esses cânticos são icónicos (muitas vezes copiados e adaptados por adeptos de outros países), e dão um colorido ainda maior a um futebol que não consegue assegurar um elevado grau de competitividade, porque os seus maiores talentos saem ainda adolescentes em alguns casos (como foi o mais recente com Franco Mastantuono, que deixou o River Plate para reforçar o Real Madrid numa contratação que ficou fechada, antes do mesmo completar 17 anos).
Contudo, este texto não é feito com o artigo de enaltecer e elogiar a generalidade da massa adepta argentina e da sua paixão pelo futebol, sendo completamente o oposto. O tal fervor que destaquei anteriormente, jamais poderá ser confundido com fanatismo.
É o amor por um clube de futebol algo tão inexplicável quanto irracional? Sim, é. Mas isso não pode nunca justificar o que se viveu recentemente no estádio do Independiente, um clube histórico na Argentina, e que recentemente esteve a bordo do seu desaparecimento.
O “Rey de copas” (como assim é conhecido, pelo fato de neste momento ainda ser o clube com mais títulos internacionais a nível mundial, tendo ganho umas impressionantes sete Taças Libertadores), tem vivido nos últimos anos momentos bastante convulsos a nível directivo, estando igualmente mergulhado numa profunda crise financeira, a qual só não representou o fim deste emblemático clube, devido ao investimento financeiro dos seus adeptos.
Antes do jogo entre os argentinos do Independiente e os chilenos da Universidad de Chile para os oitavos-de-final da Taça Sul Americana, os “barra brava” (nome utilizado para se referir às claques mais radicais da América do Sul) do Independiente lançaram pedras ao autocarro da equipa chilena, além de proferirem os habituais (mas que jamais deviam ser normalizados) insultos que se vê nas diversas recepções hostis durante a generalidade dos jogos da Taça Libertadores, sendo mais comum entre argentinos e brasileiros e entre argentinos e chilenos, que sempre tiveram uma rivalidade histórica, não só motivada pelo futebol.
Os ânimos acederam-se logo a partir desse momento, tornando-se quase inevitável que viesse a ocorrer o que se verificou já com adeptos de ambas equipas dentro do estádio. Antes do jogo começar, os adeptos mais violentos e radicais da delegação chilena, resolveram danificar os postos de comida e destruir parcialmente as casas de banho do estádio, chegando a lançar pedaços de excremento e urina para a bancada onde se encontravam adeptos do Independiente.
Depois de uma troca de insultos entre ambos adeptos, o jogo foi para intervalo e a partir daí, o que se viu foi um cenário dantesco e de guerra, de acordo com todos os testemunhos que ouvi daqueles que se encontravam em Buenos Aires, desde jornalistas desportivos a adeptos da Universidad de Chile e do Independiente.
À total falta de acção de elementos da segurança privada (cujo número para este jogo era completamente inadequado para um jogo de alto risco) e do contingente policial destacado para esse jogo (mais de 800), alguns adeptos do Independiente sentindo-se agredidos e receosos de que uma tragédia estivesse prestes a ocorrer, decidiram instigar as suas claques mais radicais, e entoaram o cântico irresponsável “A barra tem medo. A barra não nos protege”.
Perante os cânticos dos seus adeptos e após serem provocados, parte dessa facção conseguiu ao fim de alguns minutos, passar da tribuna onde estavam para a bancada onde se encontravam os adeptos da Universidad de Chile, nomeadamente aqueles que desencadearam estes incidentes.
Conseguiram cruzar uma parte do estádio de uma ponta a outra, e chegaram ao portão de acesso a essa tribuna, tendo-o arrombado perante a perplexidade das pessoas presentes, mas quando chegaram a esse lado do estádio, já eram menos de 20 os adeptos da Universidad de Chile que aí se encontravam.
Esses “barra brava” chilenos já haviam conseguido sair do estádio, o que costuma ser habitual nestes casos, ficando os adeptos mais pacíficos e que apenas vão ao estádio para animar o seu clube, para poderem evitar aglomerações e saírem de forma mais tranquila.
Apesar desse diminuto número de adeptos chilenos, os tais adeptos mais radicais do Independiente, decidiram fazer justiça pelas próprias mãos, agredindo indiscriminadamente todo e qualquer adepto da Universidad de Chile (entre eles jovens adolescentes, a idosos, a mulheres, etc…), alguns deles tendo sido desnudados, esfaqueados, e dois deles projetados para fora do estádio (!).
Uma das imagens mais impactantes que vi num estádio de futebol foi a de um adepto chileno a agarrar-se às redes de proteção para evitar ser torturado por esses adeptos argentinos, e um deles empurrá-lo com uma estrutura de ferro, para que este caísse no vazio. Felizmente e de acordo com as últimas informações que pudemos obter, esse adepto encontra-se aparentemente livre de perigo (soube-se posteriormente que a morte terá sido evitada por ter caído num teto de proteção do estádio), e era previsto que pudesse receber alta na próxima semana, mas está atualmente internado nos Cuidados Intensivos, com prognóstico reservado.
Brutalmente violenta foi igualmente a imagem de um jovem adepto da Universidad de Chile estar a receber bastonadas com uma barra de ferro de forma consecutiva, até levar a estocada final, que fez com que caísse desamparado, desconhecendo-se ainda o seu estado de saúde.
Através da transmissão, foi igualmente possível ver sair do estádio pessoas ensanguentadas e gravemente feridas, ao passo que o operativo policial (que se encontrava incompreensivelmente fora do estádio), assistia àquele cenário praticamente impávido e sereno.
Depois de terem sido brutalmente agredidos durante várias horas, os adeptos do Independiente foram saíndo do estádio e manifestaram todo o seu descontentamento e consequente revolta por tudo aquilo que tinha acontecido, acusando a sua direção e o próprio governo da província de Buenos Aires, da sua total passividade e inoperância perante tudo aquilo que estava a acontecer.
“Foram mais de três horas de violência e a polícia devia ter atuado imediatamente desde que os adeptos da Universidad de Chile começaram a lançar todo o tipo de coisas para os adeptos do Independiente. Isto é inadmissível e não se pode tolerar. O nosso país não pode estar refém das decisões da Conmebol de suspender ou não um jogo”, disse uma evidentemente desgostosa Patricia Bullrich, Ministra de Segurança da Argentina em conferência de imprensa, reforçando essa ideia noutras declarações proferidas a outros meios de comunicação argentinos.
Patricia Bullrich foi também ela questionada sobre o fato de estarem apenas detidos adeptos chilenos, e não estar um único adepto do Independiente, ao que a ministra não soube responder, mas afirmou que tudo farão para capturar todos aqueles a que se pôde “apreciar” que foram partícipes e cúmplices deste ataque selvagem e absolutamente inqualificável.
Ficam várias questões perante este bárbaro incidente no estádio do Independiente. A quem se ocorreu a brilhante ideia de colocar adeptos rivais acima de uma bancada onde se iriam localizar adeptos locais? Quem negligenciou a presença de segurança privada e de um operativo policial nesse local? Como é possível que não se tenha acautelado um mais do que provável confronto entre os adeptos do Independiente e da Universidad de Chile? Como é que a Conmebol (entidade organizadora do evento) não deu o encontro por suspenso, vendo que a direção do Independiente nada fazia?
Nas últimas 48 horas, ouvi testemunhos de várias pessoas (algumas que estavam no estádio, como elementos da imprensa desportiva e chilena), tertulianos e comentadores de programas de desporto nacionais e internacionais, assim como políticos de ambos os países, e dá para ter uma ideia do que se terá passado e ainda mais revoltante é perceber que tudo isto podia ter sido evitado.
A realidade do futebol argentino é das mais tóxicas que existem no futebol mundial. Os dirigentes preocupam-se mais com dinheiro, do que com a segurança dos adeptos do seu clube. Néstor Grindetti, o atual presidente do Independiente, disse de forma descomplexada que “O Independiente não tem nada a ver com o que se passou. Todos viram quem cometeu os atos violentos e esses foram os adeptos da Universidad de Chile. Viemos aqui para defender os interesses do clube e dos nossos adeptos. Não merecemos ser castigados nem receber nenhuma punição.”
Ou seja, num momento em que adeptos do seu clube (porque também adeptos argentinos foram hospitalizados) estavam gravemente feridos, o que mais importava ao seu presidente, era a parte desportiva e evitar uma desqualificação da Taça Sul-Americana e a correspondente desqualificação da equipa chilena. Só estas declarações (absolutamente infantis e despropositadas) refletem a toxicidade e a “politiquice” que se vive no futebol argentino.
Grindetti afirmou ainda que os atos de vandalismo foram apenas cometidos pelos adeptos chilenos. Sim, também o foram, mas o presidente do Independiente esqueceu-se do “simples” pormenor de que parte dos seus adeptos quase mataram adeptos chilenos, agredindo-os barbaramente.
É igualmente responsabilidade do Independiente tudo aquilo que acontece no seu estádio, nomeadamente todos os aspectos referentes à segurança do evento. É uma autêntica falácia e igual propaganda política que Grindetti diga que foi à sede da Conmebol no Paraguai, para defender os interesses dos seus adeptos, quando a sua principal preocupação devia ser a segurança dos mesmos em primeiríssimo lugar.
Como disse anteriormente, o futebol é um espetáculo e deve ser vivido e entendido como tal. O hábito de ir assistir a um jogo de futebol deve continuar a ser o tal momento sagrado para os argentinos, pela forma tão única e apaixonada como vivem o futebol.
Desde 2011, o governo argentino tomou a decisão drástica de não serem permitidos adeptos visitantes na sua liga doméstica, o que é realmente triste, pois deveria ser possível que adeptos rivais pudessem conviver com absoluta normalidade, mesmo que houvesse algum tipo de picardia saudável fruto da rivalidade que há entre os clubes, mas tal não é possível.
E na generalidade dos casos, não é possível devido ao tal fenómeno dos “barra brava”. Elementos absolutamente desestabilizadores e que usam o clube e o seu escudo para proveito próprio (para negócios obscuros, para poderem exercer o seu poder junto de outros adeptos da sua equipa que supostamente amam, por questões políticas, etc…), com a total conivência e complacência das direções dos clubes.
A sua influência é tão grande ao ponto de que nos últimos anos, haver pouca polícia ou até inexistente presença policial (desde 2023, no caso do Independiente) nos estádios argentinos, com a justificação de que a presença dos polícias irrita e incomoda (!) esses adeptos. Devo admitir que fiquei absolutamente perplexo quando ouvi essa afirmação (que é maioritariamente feita de forma resignada) de forma repetida por vários jornalistas argentinos.
Quando um clube e (principalmente um país), cedem aos caprichos de uma facção radical, está sujeito a que aconteça o que aconteceu recentemente no tal jogo entre Independiente e Universidad de Chile.
O que se passou em Buenos Aires, reflete bem o estado da sociedade em geral, não só da sociedade argentina. E reflete igualmente a forma como o futebol é vivido em muitos cantos do globo, onde é indevidamente usado para atos de violência extrema entre adeptos rivais, que em nada engradece e dignifica o desporto que muitos consideram o desporto-rei.
Se não se erradicar toda e qualquer facção de adeptos radicais, corremos o sério risco de que, para além de começar a ser proibida a presença de adeptos visitantes em qualquer estádio (não só na Argentina, porque a FIFA não vai permitir que desqualifiquem e descredibilizem o seu produto), sejam os próprios adeptos locais a tomarem a decisão de não irem aos estádios acompanhados dos seus amigos ou familiares, com receio de que possam não regressar com vida de um momento que devia ser de celebração e de desconexão da sua vida quotidiana.
Como adepto do futebol, este incidente deixou-me profundamente triste. Espero que tanto Independiente como Universidad de Chile (apesar de saber que não representa a sua instituição e a generalidade dos seus adeptos), sejam severamente punidos pela Conmebol devendo ser devidamente eliminados da competição, porque adeptos de ambos clubes foram os responsáveis por este massacre na Argentina.
Deve haver sempre lugar para a competitividade no futebol, mas jamais para a violência. O ódio destrói o futebol.