O Jogo dos Milhões: Arábia Saudita, futebol e muitos petrodólares

Foi há pouco mais de um mês que Cristiano Ronaldo, no final do Al Nassr 3-2 Al Shabab, afirmou que a principal liga de futebol na Arábia Saudita será uma das cinco melhores do mundo nos próximos anos.

Embora na altura tenha parecido uma declaração completamente descabida, como se tivesse sido retirada de um guião de promoção do próprio campeonato, as últimas semanas têm colocado o mundo do futebol com os olhos postos no Médio Oriente. Apesar de ainda haver um longo caminho a percorrer e de ser muito difícil imaginar a rica, mas ainda insignificante Saudi Pro League entre os cinco melhores campeonatos do mundo, parece mesmo que a Arábia Saudita vai continuar a investir fortemente no futebol.

Ao longo dos últimos anos, os sauditas têm vindo a apostar no desenvolvimento do ‘desporto rei’ no país. Primeiro, a organização das Supertaças de Itália e Espanha, mudando até o formato das competições. Depois, a aquisição do Newcastle United FC, o anúncio de Lionel Messi como embaixador do turismo, a arrebatadora contratação de Cristiano Ronaldo e a surpreendente ida de Rúben Neves para o Al Hilal.

Mais recentemente, deu-se a compra dos quatro maiores clubes do país (Al Hilal, Al Nassr, Al Ahli e Al Ittihad) pelo Public Investment Fund (PIF), o fundo de investimento do estado saudita. Com esta compra, 75% destes clubes será detido pelo fundo e os restantes 25% pertencerão a investidores. O objetivo passa assim por injetar ainda mais dinheiro no futebol.

Cristiano Ronaldo Rudi Garcia
Fonte: Al Nassr

Projeto semelhante já tinha acontecido na China, mas, apesar de um aparente sucesso inicial, a febre da Superliga Chinesa durou muito pouco e não teve grandes contribuições para a evolução do futebol local. Já no Médio Oriente, e tendo em conta o diagnóstico inicial a este ‘novo’ futebol saudita, os resultados poderão vir a ser bem diferentes e bem mais positivos graças aos muitos petrodólares.

Todo este investimento vem na sequência do programa Saudi Vision 2030, anunciado em 2016 pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, que tem como objetivo reduzir a dependência da Arábia Saudita do petróleo e construir uma sociedade mais moderna, ocidentalizada e diversificada em vários setores.

Assim, num país onde a homossexualidade é crime, as mulheres são submissas aos homens por lei, a liberdade de expressão é nula e o número de execuções é alarmante, o desporto, mas em especial o futebol, assume uma importância extrema para o sucesso do programa, seja na atração de um elevado número de turistas que se deslocam ao país para ver a bola rolar, seja na sua utilização como arma de softpower e sportswashing.

A HISTÓRIA DO FUTEBOL SAUDITA

A Arábia Saudita não é propriamente um viveiro de talentos no que ao futebol diz respeito (aliás, foi mesmo necessário recorrer ao Google para encontrar as grandes estrelas da história do futebol saudita), mas está longe de ser um país onde o ludopédio não tem qualquer tipo de importância e acompanhamento. O termo ‘desporto rei’ aplica-se na perfeição, também, a este gigantesco país da Península Arábica. O mesmo já não se pode dizer da China e do Catar, por exemplo.

A primeira edição do principal campeonato de futebol saudita foi disputada na temporada 1975/76, terminando com a vitória do Al Nassr. Desde então, já foram disputadas outras 47 edições, e o Al Hilal é o clube que mais vezes venceu o campeonato, com 18 títulos.

Na última temporada, a média de ocupação dos estádios na Arábia Saudita rondou os 44%. Para se ter uma maior noção desses valores e do seu significado, a média em Portugal foi, por exemplo, apenas ligeiramente superior, alcançando os 48%. Além disso, e ainda acerca dos números da Saudi Pro League, já se pode entender um pouco do impacto de Cristiano Ronaldo por lá, tendo em conta que na temporada anterior os valores situaram-se abaixo dos 40%. E é de esperar que na próxima época voltem a aumentar.

Arábia Saudita jogadores no Mundial 2022
Fonte: FIFA

Em termos de seleções, os números da Arábia Saudita podem surpreender os adeptos mais desatentos. Os “falcões verdes”, como são popularmente conhecidos, já participaram em seis fases finais de Campeonatos do Mundo (na Ásia, apenas a Coreia do Sul e o Japão fizeram melhor, com 11 e 7 participações, respetivamente). Para além disso, os sauditas já venceram três Taças da Ásia, duas Taças das Nações Árabes, três Taças do Golfo e um Campeonato do Mundo de sub-17.

Posto isto, e ainda que seja difícil imaginar, para já, a Arábia Saudita a ter prestações nos Mundiais semelhantes às do Japão em 2018 e 2022, por exemplo, ou até mesmo a ser considerada um dos principais centros produtores de craques do futebol asiático, estes são dados que diferenciam e distanciam o país de exemplos como China, Catar ou Emirados Árabes Unidos, onde há muito dinheiro, mas pouca história e o interesse é profundamente escasso.

MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS VONTADES

De há uns anos para cá, a aposta dos clubes sauditas vinha a ser caracterizada pela aquisição de jogadores ora de campeonatos europeus mais periféricos, como, por exemplo, Marega, Talisca, Fábio Martins e Ivo Rodrigues – que se transferiu neste mercado de transferências do Famalicão para o Al Khaleej -, ora de jogadores de campeonatos mais conceituados, mas com idade superior a 30 anos, como foram os casos de Luiz Gustavo e Éver Banega. São, sobretudo, jogadores atraídos pelos muitos milhões e pela oportunidade de construírem uma reforma dourada.

Apesar de os sauditas continuarem a olhar para esses mercados (veja-se o exemplo de Jota, perto de trocar Celtic FC pelo Al Ittihad), a contratação de Cristiano Ronaldo, em janeiro deste ano, parece ter marcado um considerável ponto de viragem. Ainda mais se tivermos em conta as aquisições de Karim Benzema, vencedor da Bola de Ouro em 2022, Koulibaly, Kanté, e agora mais recentemente, Brozović. O investimento neste mercado de transferências tem sido ainda mais significativo, e o objetivo de elevar a qualidade individual do campeonato está em claro andamento.

Contudo, quando todos pensávamos que os alvos seriam agora estrelas do futebol com 30 ou mais anos e com um aparente final de carreira à vista, o Al Hilal surpreendeu tudo e todos e adquiriu o passe de Rúben Neves por 50 milhões de euros. 26 anos, quase 40 internacionalizações AA por Portugal, sete temporadas no Wolverhampton – seis das quais na Premier League -, capitão de equipa e alegadamente um dos jogadores pretendidos pelo FC Barcelona para suprimir a saída de Sergio Busquets, o médio português optou por continuar a carreira longe do palco principal do futebol mundial.

Rúben Neves
Fonte: Wolverhampton Wanderers FC

A transferência de Rúben Neves foi de tal ordem imprevisível que originou uma onda de questões sobre o futuro do futebol. Irão os sauditas mudar o paradigma das suas contratações? E deverá isso preocupar as principais federações do futebol europeu, inclusive a UEFA? Não é o momento para conclusões precipitadas, por isso o melhor mesmo é esperar pelo término desta janela de transferências, especialmente porque se especula que Bernardo Silva poderá vir a ser o próximo grande investimento da Saudi Pro League.

No entanto, não havendo, num futuro próximo, outra mudança semelhante à do médio formado no FC Porto, não creio que a contratação de Rúben Neves deva, por si só, preocupar os clubes europeus. O futuro até pode vir a contrariar-me, mas acredito que esta seja a exceção e não a regra. O incentivo dos petrodólares é atraente, mas a elite do futebol permanecerá no ‘velho continente’.

Contudo, não é de estranhar que os clubes sauditas não se queiram concentrar apenas nas estrelas em aparente final de carreira, até porque uma ‘liga de reformados’ não vai, a longo prazo, contribuir para o tão desejado salto meteórico no ranking do futebol mundial.

DAS QUATRO LINHAS PARA A POLÍTICA

Já aqui dei a entender, mais acima, que o futebol é o ópio do povo saudita, tal como acontece em vários outros cantos do globo. Ainda assim, não deixa de parecer estranho todo este súbito e enorme interesse do governo local. Bem, na realidade, e se estivermos atentos àquilo que acontece no Médio Oriente, não é assim tão estranho e pode ser justificado, essencialmente, através de dois termos: softpower e sportswashing.

De acordo com a ONU, a Arábia Saudita é um dos cinco países no mundo que mais violam os direitos humanos. Também, a Amnistia Internacional acusou o país saudita de ter sido o terceiro que mais pessoas matou sob pena de morte, em 2022, num total de 196 execuções. Por meio de um regime autocrático, sem liberdade religiosa, de expressão ou de imprensa, a Arábia Saudita esteve nas bocas do mundo, em 2018, pelo assassinato do jornalista Jamal Kashoggi, um profundo crítico do regime saudita.

Desde então, o governo de Mohammed bin Salman (MBS) tem tentado limpar a imagem externa do país, ou, para ser mais correto, “atirar o pó para debaixo do tapete”. O futebol tem sido uma das suas armas mais eficazes e o objetivo parece claro: levar para o país as estrelas do futebol; com isso, atrair milhões de espetadores e turistas; e, por fim, concentrar toda a atenção dos media no futebol e não nos problemas estruturais do país.

O ápice desta estratégia poderá estar muito próximo de acontecer, já que os sauditas vão organizar a Taça da Ásia em 2027, mas pretendem ainda receber um Mundial (desistiram de 2030, mas é de esperar que apresentem uma candidatura forte ao de 2034) e uma edição dos Jogos Olímpicos. A esta utilização do desporto como arma de legitimação e limpeza da imagem externa do país chama-se de sportswashing.

Jota Al Ittihad Arábia Saudita
Fonte: Al Ittihad FC

Para além disso, outro dado certamente relevante para MBS é o facto de grande parte da população saudita ser jovem (63% tem idade inferior a 30 anos). Nesse sentido, o investimento em grandes eventos desportivos e na promoção da principal liga de futebol local vem gerar não só maior interesse e satisfação por parte da população, que não quer ter uma vida monótona, como também mais oportunidades de emprego (as vagas em clubes desportivos aumentaram 129% em três anos).

A isto, e acrescentando-se ainda a compra de vários clubes de futebol e associações desportivas – os sauditas compraram o PGA Tour, a maior associação de golfe do mundo, e já há quem diga que o circuito ATP pode vir a ser o próximo grande investimento extra-futebol -, chama-se de softpower.

Apesar de tudo, é natural que alguns futebolistas continuem a mudar-se para a Arábia Saudita, sejam eles estrelas em final de carreira, jogadores de campeonatos mais periféricos ou figuras de clubes de segunda linha das Big Five. Isto porque muitas das propostas são financeiramente ‘irrecusáveis’, e a carreira de um jogador de futebol é manifestamente curta.

Além disso, e para mal dos nossos pecados, Mohammed bin Salman já percebeu que o futebol e os seus petrodólares têm a capacidade de ofuscar tudo no país onde os jornalistas são assassinados por se oporem ao regime.

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