Gareth Southgate – Ano sabático e novos caminhos

Era uma hipótese bem real até deixar de ser. O rastejar Ten-Hagiano e as diferentes perspectivas dos novos donos do Manchester United viram na disponibilidade de Southgate o pote de ouro no final do arco-íris. A troca ia-se fazer até Gareth vir a público assumir que não, não estava assim tão disponível.

Os oito anos à frente dos Três Leões requerem período sabático, uma reflexão sobre que novo rumo dar à carreira. Chegou até ao ponto de Gareth deixar um aviso bem esclarecido. «Clubes só poderão ser bem-sucedidos se tudo estiver alinhado, de cima a baixo» começou assim a resposta via BBC. «Sei que as pessoas talvez mais espertas estão sentadas nos gabinetes e que os treinadores são um pouco mais dispensáveis do que se pensa. Enquanto treinador, pensamos que somos a pessoa mais importante. Sentei-me em todos os gabinetes do país durante oito anos e percebi que somos só uma peça na engrenagem».

As reacções percorreram de lés a lés um espectro entre o alívio e o regozijo. Southgate, o diplomata que mudou todo o paradigma desportivo e comunicacional do futebol inglês, tornou-se persona non grata. A aura de diplomata humilde deixou de fazer efeito a reboque do resultadismo vigente no futebol dos Três Leões. Mesmo que depois de Alf Ramsey, campeão do mundo de 1966, Southgate seja o treinador com mais resultados práticos de sempre.

Desde 1990 e Bobby Robson que a Inglaterra não chegava a umas Meias-finais dum Mundial: Southgate, depois de reformular a equipa, tendo a coragem de deixar cair Rooney para introduzir Delle Ali ou Lingard, lá chegou tendo pelo caminho vencido a Colômbia nos penalties, quebrando a maldição que durava desde 1990, com seis eliminações seguidas da marca dos 11 metros. Psicologicamente, foi uma pedrada no charco – Pickford defenderia quatro dos 14 penalties em desempates desde 2018, com grande ênfase no duelo contra a Suíça no último Europeu, recorde bem melhor que os dois que os keepers ingleses defenderam entre 1990 e 2012, no ano em que se saiu do Europeu com dois penalties falhados frente à Itália.

Southgate surgira como interino para preencher o vazio que os tabloides e a má conduta de Sam Allardyce provocaram no futebol inglês em 2016. Antes de ser eliminada pela Islândia do Euro2012, a eliminação ao segundo jogo no Brasil em 2014; 2008 nem dera direito a qualificação, 2006 e 2004 outra vez a história dos penalties. Era imperial para o novo seleccionador inglês comandar uma revolução desportiva, sim, mas só depois de pavimentar novo caminho na relação com os media, o povo e a própria concepção do destino inglês. As conversas sobre a Geração dourada dos Lampards, Beckhams e Ferdinands asfixiavam os jogadores, impondo-lhes pressão de elite continental num país que se orgulhava pela criação do jogo, mas que nas vitrines de Wembley só tinha um troféu para mostrar.

Southgate tinha que mudar mentalidades. Liderar com pedagogia. A humildade com que dava cada declaração rápida entranhou-se no imaginário inglês à medida que se percebia que também era possível vencer sem a tradicional prepotência e orgulho britânico. O fenómeno explodiu com a chegada às Meias-finais na Rússia – o colete waistcoat que o treinador tanto usava começou a surgir nas bancadas.

Os adeptos ingleses, em vez duma coisa mais simples como a bandeira na varanda, à portuguesa, vestiram todos a vestimenta de Gareth. Na bancada, em vez de manchas avermelhadas de pele nórdica exposta ao sol de Verão, bandos de dandys reunidos pela admiração ao treinador. Os grandes retailers londrinos registaram aumentos exponenciais de vendas, talvez explicados também pela febre Peaky Blinder.  

A queda aos pés duma competentíssima Croácia não desmereceu o feito. Além dos coletes, à estação Southgate do metro londrino acrescentou-se o Gareth durante dois dias, em forma de agradecimento.

Era a forma como comandava. A forma descomplexada como se dirigia aos agressivos tabloides e comandava as operações tão habilmente como construía relações no balneário. A importância dada à psicologia ia aproximando as massas com a equipa.

As convergências clubísticas, os grandes dramas da imprensa, a constante procura de problemas: a postura reconciliadora do treinador funcionou na perfeição – a chegada à final do Euro 2020, a primeira em termos continentais e a segunda de sempre, foi precedida duma carta aberta do treinador ao país. Dear England, o título que deu azo a uma peça de teatro, rezava pela inclusividade, a apreciação justa, o respeito e o combate ao ódio perpetuado de todas as formas.

I know my voice carries weight, not because of who I am but because of the position that I hold. At home, I’m below the kids and the dogs in the pecking order but publicly I am the England men’s football team manager. I have a responsibility to the wider community to use my voice, and so do the players.

It’s their duty to continue to interact with the public on matters such as equality, inclusivity and racial injustice, while using the power of their voices to help put debates on the table, raise awareness and educate.[1]

A Inglaterra voltaria ao marasmo traumático dos penalties. Saka, o corajoso batedor do penalty decisivo, foi a principal vítima duma tenebrosa campanha racial. O treinador inglês via os seus pedidos serem recusados pela força da frustração. Sofreria aquela geração como sofreu a do princípio do milénio, com as toneladas de responsabilidade e a cegueira ideológica da presunção duma tradição que talvez não fosse assim tão forte? Antes de Southgate, Eriksson e Capello não se conseguiram socorrer da sua própria reputação para se manter à tona. Voltando às declarações da BBC, Gareth explicava assim o antes e o desejado para depois:

«Talvez os jogadores tenham parado de pensar no que era possível e estariam recorrentemente com receio do que poderia correr mal. Pode ser uma experiência dolorosa. Alguns dos jogadores não estavam a corresponder ao nível desejado porque eram e estavam inibidos, a pensar mais em como não ser o responsável pela derrota em vez de se preocuparem em como chegar à vitória

Nova presença em final continental foi já conseguida depois de muito lutar contra a negatividade. Os adeptos reagiam ao futebol pachorrento, sem chama; os analistas viam nas escolhas do treinador alguém que não compreendia a quantidade de talento ao dispor. Southgate enfrentou na Alemanha avalanches de críticas à medida que a Inglaterra ia ultrapassando obstáculos sem grande mérito. Duma forma ou outra, a chegada à final representava a terceira final de sempre do país e a segunda em seu nome.

Finais de Europeu consecutivas? Só a Alemanha dos 70s, de Beckenbauer ou Rummenigge, e a Espanha da década passada. Southgate refugiava-se nas condições físicas dos atletas e a consequente impossibilidade da sincronização de ritmos e frequências para explicar o futebol pobre. A derrota contra a Espanha representou o total rompimento da já fraca ligação do treinador com o país, que na última fase foi incapaz de aludir aos pedidos de confraternização e paciência. Mesmo com Inglaterra no top5 da FIFA em seis dos oito anos de reinado, mesmo tendo inclusive chegado ao top 3 – igualando o melhor registo de sempre – fruto dos bons registos em grandes competições, Southgate viu-se engolido da mesma forma que os seus antecessores, apesar de todos os esforços e das boas condições criadas nos três primeiros torneios.

Apesar de ter lutado gloriosamente pela estadia no céu, desceria inevitavelmente ao inferno como todos os outros. «Vimos no Verão que essa mudança na relação com os media trouxe mais pressão para a equipa. É um aviso daqui para a frente. É preciso manter uma relação forte com os fãs e a comunicação social porque é muito mais difícil se não o conseguires[2]

Resignado, mas com sentimento de dever cumprido, Southgate é um homem realizado, plenamente ciente daquilo que pretende para o futuro. Reflectindo no exemplo de Jurgen Klopp, que enveredou pela via diplomática ao aceitar cargo executivo na Red Bull, é possível ver no afastamento dos relvados uma entusiasmante forma de desenvolver o fenómeno. O jogo evoluiu, exige outras visões mais clarificadoras sobre a relação entre o humanismo da empatia e a performance individual. De simples mas sofisticada personalidade, Southgate, dos únicos a poder orgulhar-se de domar os tabloides, tenha talvez mostrado ser alguém não tão talhado para o trabalho tático do relvado e mais para a supervisão directiva. A predisposição para explorar as vertentes psicológicas do jogo abriram-lhe as portas para o futuro cada mais óbvio do desporto enquanto negócio. «Sou um afortunado pela quantidade de oportunidades que vão surgindo. A parte comercial do futebol é muito interessante[3]».


[1] https://www.theplayerstribune.com/posts/dear-england-gareth-southgate-euros-soccer

[2] Tradução livre, como todas as outras citações elencadas à BBC, de: https://www.bbc.com/sport/football/articles/czegxjp4381o

[3] idem

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Adepto da discussão futebolística pós-refeição e da cultura de esplanada, de opinião que o futebol é a arte suprema.

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