Entre recordes e desilusões: O que nos ensinam os Mundiais de Atletismo

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Na passada semana, decorreram em Tóquio os Mundiais de Atletismo, onde vários atletas emergiram e outros confirmaram o seu favoritismo. Foram uns Mundiais apaixonantes, repletos de peripécias numa excelente promoção à modalidade.

Começando pelas provas de velocidade (sempre aquelas que são mais ansiadas e despertam mais interesse junto do público), assistimos à explosão de uma nova estrela da velocidade em Melissa Jefferson-Wooden.

A atleta norte-americana já tinha conseguido uma brilhante medalha de bronze nos Jogos Olímpicos em Paris 2024, mas sai destes Mundiais com o estatuto de nova rainha da velocidade.

Na prova dos 100 metros, arrasou por completo a sua concorrência, registando um tempo supersónico de 10.61 (!), tornando-se assim a quarta atleta mais rápida de todos os tempos. A medalha de prata foi para a jovem prodígio jamaicana Tia Clayton, que correu em 10.76 (batendo a sua marca pessoal), e a medalha de bronze foi para a campeã olímpica Julien Alfred, que registou o tempo de 10.84. 

A atleta de Santa Lucia não está a realizar uma temporada muito feliz depois do título olímpico, mas nada que possa beliscar todo o mérito de Jefferson-Wooden, que literalmente voou sobre a pista do Estádio Nacional de Tóquio.

Nessa final dos 100 metros, não posso deixar de destacar mais uma presença de Shelly-Ann Fraser-Pryce numa grande decisão, naquela que foi a última competição da sua carreira. A soberba e inigualável atleta jamaicana despede-se das pistas com a chancela de “melhor sprinter da história”. Pentacampeã mundial na prova dos 100 metros, bicampeã olímpica na mesma distância, acumulando ainda várias outras medalhas nas provas de 200 metros e estafetas de 4×100 metros. Aos 38 anos, Shelly-Ann cede o seu lugar no trono a Melissa Jefferson-Wooden, que tem todas as condições para marcar uma era no atletismo.

https://twitter.com/WorldAthletics/status/1967158740790149584

O “show” de Jefferson-Wooden ainda ia ter uma segunda parte na prova dos 200 metros. Já sem a concorrência de Julien Alfred (que abdicou de participar desta prova por ter alegadamente contraído uma lesão na final dos 100 metro), a atleta norte-americana via seu o caminho um pouco mais facilitado devido a essa ausência, não deixando os seus créditos por mãos alheias, ganhando de forma ainda mais “insultante” esta final, com o tempo de 21.68, a melhor marca mundial do ano.

A medalha de prata foi surpreendentemente ganha pela jovem britânica Amy Hunt, com o tempo de 22.14, e a medalha de bronze para a veterana jamaicana Sherika Jackson (22.18), que não conseguiu defender assim o seu título conquistado nos últimos Mundiais de Budapeste em 2023. 

Para completar o ramalhete de medalhas de ouro de Melissa Jefferson-Wooden, esta também contribui para a vitória tangencial da estafeta 4×100 metros dos Estados Unidos, sendo que no último percurso, Sha’Carri Richardson (uma das grandes desilusões dos Mundiais) quase se viu ultrapassada pela jamaicana Jonielle Smith, que nem sequer disputou a final individual dos 100 metros.

https://twitter.com/WorldAthletics/status/1969737368560439674

Por escassos quatro centésimos de segundo, Jonielle Smith não conseguiu que a sua capitã Shelly-Ann Fraser-Pryce encerrasse a sua carreira com mais uma medalha de ouro. Seria a cereja no topo do bolo de uma carreira ímpar.

Do lado masculino, o vencedor da prova dos 100 metros foi o jamaicano Oblique Sevillie, que conseguiu finalmente ter um resultado expressivo numa grande competição. E esta medalha de ouro não foi conquistada sem antes passar por um sobressalto (uma péssima saída) nas suas eliminatórias de apuramento para as meias-finais, onde esteve próximo de ficar eliminado na sua série.

Essa saída desastrosa foi comentada pelo seu rival norte-americano Noah Lyles, campeão em título, que para além de ser um extraordinário atleta, também tem pautado a sua carreira pelos famosos mind games que já haviam resultado anteriormente com Seville nos Mundiais de Budapeste em 2023 e nos Jogos Olímpicos de Paris em 2024, onde o atleta jamaicano (que um dia Usain Bolt disse ser o seu discípulo), também sucumbiu, ficando num modesto 8º lugar nessa final.

Mas em Tóquio, conseguiu redimir-se na final dos 100 metros, sob os olhares atentos do seu mestre Usain Bolt nas bancadas, que exultava com o facto de Seville (com o excelente tempo de 9.77 e registando assim a sua melhor marca pessoal) ter ganho a medalha de ouro, mas também porque a medalha de prata foi para o jamaicano Kishane Thompson (9.82), sendo que é a primeira vez na história que a Jamaica consegue ganhar medalha de ouro e prata numa prova de 100 metros nos Mundiais de Atletismo.  

https://twitter.com/WorldAthletics/status/1967221424067928271

A medalha de bronze ficou com o campeão em título Noah Lyles (9.89), um resultado que Lyles aceitou com um inusual fair-play e conformismo, sendo que dessa forma pôde centrar as suas energias na prova na qual tem sido o grande dominador dos últimos anos: os 200 metros. Nessa prova, Noah Lyles foi o claro dominador (19.52), igualando assim o recorde de tetracampeão mundial nos 200 metros que estava no poder de Usain Bolt, ao sagrar-se novamente vencedor desta prova e a vingar-se da derrota surpreendente na final olímpica para um até então desconhecido Letsile Tebogo. A medalha de prata ficou com o seu compatriota Kenny Bednarek (19.58) e a medalha de bronze foi para o jamaicano Bryan Levell (19.64).

Tebogo foi igualmente uma das grandes deceções destes Mundiais. Para além de uma falsa partida na final dos 100 metros (que o desqualificou automaticamente e o impediu de lutar por uma medalha), não conseguiu sequer chegar ao pódio nos 200 metros, prova na qual se havia sagrado campeão olímpico em Paris há sensivelmente um ano.

O atleta do Botswana não se apresentou na melhor forma nestes Mundiais de Atletismo, mas ainda foi a tempo de contribuir para um êxito descomunal para a sua nação, sendo um dos elementos da estafeta de 4×400 metros que ganhou a medalha de ouro numa final eletrizante, batendo na final os super favoritos Estados Unidos, com um último percurso absolutamente extraordinário do seu compatriota Busang Kebinathsipi, que já havia ganho com o tempo sensacional de 43.53 (!) a prova individual dos 100 metros.

https://x.com/WATokyo25/status/1968672572738015262

Na prova feminina dos 400 metros, tivemos um dos grandes destaques destes Mundiais de atletismo. A recordista mundial dos 400 metros barreiras Sidney Mclaughlin-Levrone, decidiu tentar a sua sorte nos 400 metros lisos, e provou que foi uma decisão certeira. Na final, a fantástica atleta norte-americana bateu a feroz concorrência da dominicana Marileidy Paulino (que defendia o título mundial e havia sido campeã olímpica nesta distância) numa das melhores finais destes Mundiais, com um tempo absolutamente indescritível e só ao alcance das predestinadas: 47.78, baixando da mítica barreira dos 48 segundos e ficando a escassos 18 centésimos do recorde mundial. Foi uma autêntica serenata à chuva aquela que Mclaughlin-Levrone proporcionou aos mais de 50 mil adeptos presentes no estádio.

No final, disse à imprensa norte-americana que se houver um ajustamento no calendário das provas, vai tentar a proeza de correr os 400 metros lisos e os 400 metros barreiras nos próximos Jogos Olímpicos de Los Angeles, dentro de três anos. Se há atleta que eu vejo com capacidade e talento para conseguir ser bicampeã mundial nas duas disciplinas, é claramente esta fenomenal atleta norte-americana.

https://x.com/WorldAthletics/status/1968669064785473542

Nas provas de média distância, tenho de enfatizar a extraordinária medalha de ouro conquistada pelo nosso atleta Isaac Nader, que protagonizou uma das recuperações mais impressionantes de que me recordo. Na final dos 1500 metros, Nader encontrava-se em sétimo a 60 metros da meta. Num acto de enorme coragem, Nader (3.34.10) decidiu sprintar como nunca, foi batendo um a um os seus adversários, conseguindo derrotar em cima da linha de meta o britânico Jake Wightman. 

O atleta português não cabia em si de contente, não deixando igualmente de esboçar uma reação de incredulidade por ter conseguido uma vitória desta dimensão, que acredito que irá levar Isaac Nader para outros patamares em futuras competições.

https://x.com/EurosportTV_Por/status/1968324397833273834

Nesta prova dos 1500 metros, destaque para a mais do que discreta participação do recordista mundial Jakob Ingebritsen, que não conseguiu recuperar de uma lesão no tendão de Aquiles, que o limitou bastante fisicamente e o impediu de lutar pelo grande título que ainda lhe escapa. Apesar de se ter apresentado debilitado, devo enaltecer a bravura deste brilhante atleta norueguês, que tem sido o grande dominador dos 1500 e dos 5000 metros.

Nos 5000 metros, a vitória sorriu ao norte-americano Cole Hocker, que havia sido desqualificado da prova dos 1500 metros, e que conseguiu assim a sua vingança pessoal, fruto de um vertiginoso sprint nos metros finais dessa prova. 

Do lado feminino, destaque para um dos grandes nomes destes Mundiais e que sai de Tóquio com um lugar na história. Recordista mundial dos 10000 metros e dos 5000 metros, Beatrice Chebet conseguiu a proeza de ser a primeira mulher na história do atletismo a conseguir ser bicampeão olímpica e campeã mundial de forma consecutiva nestas duas distâncias.

Se na prova dos 10000 metros, Chebet provou o seu favoritismo e ganhou de forma relativamente tranquila, nos 5000 metros, Chebet teve de se transcender para bater o seu ídolo Fatih Kipyegon, fazendo uso de uma arma que nem é uma das suas maiores valências: o sprint. Devo também realçar a “intromissão” de uma atleta europeia num terreno maioritariamente africano. A italiana Nadia Batocletti conseguiu ganhar a medalha de prata na prova dos 10000 metros e a medalha de bronze na prova dos 5000 metros. 

https://twitter.com/WATokyo25/status/1966868221765751096

Com apenas 25 anos (tal como Chebet), tem uma enorme margem de progressão e promete continuar a dar luta às suas rivais africanas. Não perdeu por uma distância colossal, pelo que não é impossível pensar numa Batocletti campeã mundial ou olímpica a curto prazo.

Antes de falar daqueles que para mim foram as grandes figuras destes Mundiais, tenho que dedicar algumas palavras a Pedro Pichardo, o nosso primeiro bicampeão mundial, que ganhou uma nova medalha de ouro com um último salto absolutamente estratosférico de 17.91. 

Pichardo é sem dúvida um dos melhores atletas nacionais de todos os tempos, e apesar de ser um dos seus maiores críticos devido às declarações deselegantes que costuma ter e ao seu pouco desportivismo durante as provas, não posso deixar de reconhecer a grandeza deste atleta, que um dia decidiu deixar de competir por Cuba e escolheu as cores nacionais para competir ao mais alto nível, onde é inegável que nos tem representado e elevado bem alto o esplendor de Portugal por variadíssimas vezes.

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Devo também fazer uma menção honrosa à nossa estafeta 4×400 metros, que conseguiu marcar presença na final destes Mundiais, sendo algo inédito na história do nosso atletismo. Nas meias-finais, bateram o recorde nacional com uma marca impressionante de 2.59.70. Foi uma lástima que as condições climatéricas não tivessem contribuído para uma melhor prestação na final. Na passagem de um dos testemunhos, um dos nossos atletas deixou escorregar o testemunho, ainda conseguindo entregar ao seu colega, mas comprometendo aí as aspirações de Portugal, que a meio da prova estava em 6º (!) lugar.

Ainda nas estafetas, apenas uma referência ao facto da equipa da Jamaica não ter conseguido o apuramento para a final da estafeta dos 100 metros, sendo que deixou cair o testemunho numa das transmissões. E esta não é a primeira vez que isso acontece com a Jamaica, com os Estados Unidos ou com a África do Sul, que são sempre crónicos candidatos às medalhas nestas disciplinas, mas que não treinam devidamente estes pormenores relacionados com as estafetas.

Uma equipa jamaicana com o campeão mundial Oblique Seville e vice-campeão mundial Kishane Thompson, não conseguiu lutar por mais uma medalha de ouro (que estava perfeitamente ao seu alcance), deixando assim em bandeja de ouro mais um título mundial de estafetas para os Estados Unidos, que na final “só” precisou de lançar Noah Lyles no último percurso para ganhar esta prova.

Com essas duas medalhas de ouro de Isaac Nader e Pedro Pichardo, Portugal ficou num honroso nono lugar no quadro de medalhas, ficando à frente de grandes nações do atletismo, como a Alemanha, o Reino Unido ou a Itália. 

https://twitter.com/WorldAthletics/status/1968308402087714903

Poderia dissecar mais sobre outras grandes vitórias e desilusões destes Mundiais, tantos seriam outros atletas cujos feitos poderia destacar, mas optei por me centrar naqueles que eu considero terem sido (sem desprimor para os outros) os grandes nomes destes Mundiais, do lado masculino e do lado feminino.

No lado masculino, não poderia ser outro que não Armand Duplantis. O atleta sueco de salto com vara, bateu em Tóquio o seu 14º (!) recorde do mundo em cinco anos e o seu quarto durante este ano. Duplantis não é só o dominador absoluto desta disciplina, já é na minha modesta opinião, um dos melhores atletas de sempre.

Com os seus 6,30m (!), Duplantis continua a fazer história e aos seus 25 anos, a sua margem de progressão ainda é tão grande, que é difícil prever qual será a próxima fasquia que ele irá derrubar. Para além disso, tem um enorme carisma, o que faz com que neste momento, seja provavelmente o atleta mais adorado e idolatrado por todos os amantes do atletismo, e igualmente pelos seus colegas de competição, que voltaram a festejar efusivamente mais um recorde batido por este atleta superlativo.

https://twitter.com/WATokyo25/status/1967595737803628848

Do lado feminino, o meu destaque tem de ser obrigatoriamente María Pérez. A marchadora espanhola igualou algo que só Carl Lewis, Mo Farah e Usain Bolt haviam conseguido, tornando-se assim a primeira mulher a ser bicampeã mundial de forma consecutiva em duas provas distintas, revalidando os títulos conquistados em Budapeste na distância de 35 km e 20 km marcha. A carismática atleta espanhola tem sido um grande veículo de promoção desta modalidade tão pouco mediática e de extrema dificuldade nos últimos anos.

Pela complexidade e exigência de ambas as provas, María Pérez é para mim o grande nome feminino destes Mundiais de atletismo. Pérez deixou igualmente mostras de um enorme desportivismo e fair-play, sendo até emocionante ver como esperava pela sua rival transalpina Antonella Palmisano para se fundirem num sentido abraço no final da prova dos 35 km marcha.

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Estes Mundiais foram igualmente pautados por esses gestos tão nobres de desportivismo e de fair-play. Vimos Beatrice Chebet nas bancadas a torcer pelos seus compatriotas quenianos em muitas outras provas. Assistimos à efusividade dos atletas de salto com vara com mais um recorde de Duplantis. Vimos atletas de diferentes modalidades (salto em altura e lançamento do martelo feminino, por exemplo), a exultar com os êxitos dos seus rivais. 

Vimos um sentido abraço como se fosse uma passagem de testemunho da rainha Shelly-Ann Fraser Pryce à sua sucessora Melissa Jefferson-Wooden. Foram infindáveis os momentos de solidariedade e de profundo desportivismo destes Mundiais do atletismo, que na generalidade dos casos, deram uma lição a outros atletas de outros desportos ainda mais mediáticos, deixando bem vincada a mensagem de que o bonito do desporto é competir de forma saudável. 

Os valores do desporto assentam nisso mesmo, num fair-play que escasseia cada vez mais, mas que continua a imperar no atletismo. E esse foi o grande ensinamento do atletismo ao mundo nestes Mundiais, provando estar mais uma vez à altura da ocasião.

https://twitter.com/WATokyo25/status/1969412034589835585
Tiago Campos
Tiago Campos
O Tiago Campos tem um mestrado em Comunicação Estratégica mas sempre foi um grande apaixonado pelo jornalismo desportivo, estando a perseguir agora esse sonho. Fã acérrimo do "Joga Bonito".

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