Em 1924, o Giro d’Italia foi constituído por 12 etapas e por uma quilometragem total de 3613 quilómetros. 90 ciclistas arrancaram para a corrida e apenas 38 chegaram ao fim da prova, com Giuseppe Enrici a vencer por uma margem clara de 58 minutos para o 2º classificado, Federico Gay. Mas esta não é a história de Enrici ou de como se desenrolou a Volta à Itália, em particular. É sim a história de Alfonsina Strada, a primeira mulher de sempre a participar no Giro. Nesse ano de 1924, Strada alinhou em Milão para participar na Volta à Itália e concluiu a corrida 11 dias depois, na mesma cidade italiana.
Alfonsina Moreni (nome de solteira) nasceu em Riolo di Castellfranco Emilia (Província de Modena) no ano de 1895. Era filha de Carlo Morini e Virginia Marchesini, dois trabalhadores rurais sem estudos, pelo que eram uma família sem a capacidade financeira necessária para adquirir uma bicicleta.
Ainda assim, o pai de Alfonsina conseguiu adquirir uma bicicleta antiga, em troca de algumas galinhas, para se deslocar ao trabalho, mas inadvertidamente iria levar a sua filha a ter o primeiro contacto com o ciclismo. Com 10 anos de idade, Alfonsina aprendia sozinha a andar de bicicleta e, três anos depois, conquistava a sua primeira vitória.
A família de Alfonsina não aprovava a sua paixão e os habitantes da zona rural por onde a jovem passava não escondiam o escândalo por ver uma mulher a andar de bicicleta, uma prática que consideravam imoral para o sexo feminino. Alfonsina não quis saber e continuou a participar em provas competitivas aos domingos. À família, dizia que apenas ia à Igreja.
Aos 16 anos, Alfonsina mudou-se para Turim, onde a imagem de uma mulher a praticar ciclismo, nomeadamente a nível competitivo, não era encarada com o mesmo desdém. Foi em 1911 que fez um novo recorde da hora, ainda que o mesmo não tenha sido oficialmente reconhecido, e conseguiu contratos para correr nos Velódromos de Paris.
A sorte bateu à porta de Alfonsina Moreni e do seu sonho velocipédico, quando conheceu Luigi Strada, homem com quem viria a casar e que apoiou a paixão da esposa. Luigi ofereceu mesmo uma bicicleta a Alfonsina (como prenda de casamento), treinando-a nas estradas de Milão.
Em 1917, Alfonsina Strada alinhava na Volta à Lombardia e conhecia Costante Girardengo, um ciclista que viria a vencer o Giro por duas vezes, a Milão-São Remo por seis e a Lombardia por 5 ocasiões, que respeitou a presença de Alfonsina no pelotão e admirou a sua coragem. A “corridora” (como Gianni Celati se refere a Alfonsina na obra “Narratori delle pianure) completou a corrida no 32º lugar e em 1918, ficou à porta do top 20, com um 21º lugar.
ALFONSINA ENCONTRA O SEU LUGAR NO GIRO
Em 1923, o “Almanaque para Mulheres Italianas” definia que as mulheres não deviam “forçar o corpo a excessos perigosos e a exageros ridículos”. No ano a seguir, Alfonsina Strada colocava o dorsal 72 para alinhar na Volta à Itália. Será que a perspetiva da sociedade italiana se alterara tanto no período de um ano ao ponto de apoiar provas de ciclismo com pelotão misto?
Infelizmente não. O ano de 1924 foi bastante invulgar para o Giro d’Italia, com nomes de grande relevo, como Girardengo e Ottavio Bottecchia, a ficarem de fora devido a disputas com a organização da corrida e as respetivas equipas em relação a pagamentos. De acordo com a obra “The Story of the Giro d’Italia: A Year-by-Year History of the Tour of Italy” de Bill e Carol McGann, os ciclistas exigiam o pagamento de um valor pelas equipas para participarem na corrida; já as equipas queriam o pagamento de um valor pela organização para alinharem na “Corsa Rosa”.
Como tal, para preencher o pelotão, os organizadores abriram vagas a indivíduos que quisessem alinhar na corrida. Pois bem, foi assim que Alfonsina Moreni, agora Alfonsina Strada conseguiu participar na edição de 1924 da Volta à Itália. Várias fontes relatam que Alfonsina se inscreveu com o nome “Alfonsin” para que o seu sexo não fosse percetível pelo nome, mas não existem informações que garantam a 100 % que esse foi o caso ou se foram apenas os bons resultados da corredora que lhe valeram a participação na prova
A verdade é que a participação de uma mulher num pelotão exclusivamente masculino trouxe ao Giro uma popularidade que estava a precisar para se manter bem reputado. Após 4 dias de competição, lia-se na capa da “Gazzetta dello Sport”: “Alfonsina e la bici” (Alfonsina e a bicicleta). Num pelotão que para o público não despertava grande interesse (nomeadamente porque alguns ciclistas de renome foram desistindo), era uma mulher com o apelido “Strada” quem cativava os italianos.
Depois de 9 dias de competição, debaixo de muito calor e com perfil longo e acidentado (a etapa mais curta tinha 230 km), Alfonsina Strada passou muitas dificuldades na 8ª etapa, um dia marcado por chuva torrencial (há coisas que nunca mudam). A ciclista de 29 anos sofreu diversos furos e quedas, vendo-se obrigada a usar um pau de vassoura para reparar o guiador da bicicleta. Nesse dia, completava os 296 km entre L’Aquila e Perugia fora do controlo, pelo que acabou desqualificada do Giro.
Todavia, Emilio Colombo, editor do “Gazzetta” sabia que a presença de Alfonsina Strada estava a atrair os adeptos italianos para uma corrida em que a geral ficara decidida no mesmo dia, com Federico Gay a perder mais de 40 minutos para Giuseppe Enrici. Assim, o organizador decidiu que Alfonsina continuava em prova, ainda que sem contar para as classificações. Ou seja, não participava de forma competitiva.
No fim da 10ª etapa, Strada completou os 415 km e acabou a prova magoada e a chorar depois de uma queda. Sofreu muito, mas completou os mais de 3500 km de Giro. Dessa forma, Alfonsina Strada tornou-se na primeira e única mulher da história do ciclismo a iniciar e a completar o Giro d’Italia masculino.
Ainda continuou a correr pela Europa fora nos anos seguintes, mas não voltaria a correr o Giro, apesar de nunca se ter desligado do ciclismo. Morreu em 1959, de ataque cardíaco, no mesmo dia em que assistiu ao vivo à Tre Valli Varesine, corrida de um dia, nas redondezas de Turim.
O LEGADO
Alfonsina Strada foi uma pioneira do ciclismo feminino e são as próprias ciclistas italianas que o reconhecem. É o caso de Barbara Guarischi, ciclista da SD Worx que salientou ao “Cycling Weekly” que seria bom “se as pessoas que encabeçam as pequenas equipas jovens começassem a ensinar-lhes as origens do ciclismo feminino e sobre a Alfonsina”.
Já Elena Cechini destacou, também em declarações ao site britânico, a importância da aprendizagem da história de Strada pelas corredoras jovens. “Eu estou a lutar todos os dias por entre o treino, as viagens e as corridas, para ser melhor, ganhar e fazer a minha equipa ganhar. Ter um exemplo como o da Alfonsina em mente ajuda-me a recordar que para seres bem-sucedida e realizares os teus sonhos realidade, tens frequentemente de atravessar dificuldades e às vezes isso significa escolher o caminho mais difícil.