
Recentemente, o ciclista esloveno Tadej Pogacar ganhou os Europeus de Estrada de ciclismo, batendo o seu grande rival Remco Evenepoel. Foi uma reedição de uma batalha que já se tinha verificado na semana anterior nos Mundiais de Estrada disputados no Ruanda.
Desta vez, a superioridade de Pogacar “apenas” se viu plasmada a 62km da meta. E digo “apenas”, porque o que este atleta tem conseguido é absolutamente estratosférico e indescritível, já que nos Mundiais (que pela primeira vez se disputaram em solo africano), Tadej Pogacar atacou a mais de 100 km (!) da meta. Uma autêntica barbaridade, só mesmo ao alcance de um predestinado, que caminha a passos largos (se é que já não é), o melhor ciclista de todos os tempos.
Para o considerarem o maior ciclista de todos os tempos, muitos dizem que será necessário que consiga igualar todos os recordes do grande ciclista belga Eddy Mercx, por muitos considerado o melhor de sempre. Mas se pensarmos que Pogacar apenas tem 27 anos e que ainda terá mais uns bons anos ao mais alto nível, não será difícil de afirmar que o esloveno poderá bater todos e quaisquer recordes a que se proponha.
Para além da sua qualidade em cima de uma bicicleta, do seu enorme espírito ofensivo (é um ciclista que toma a iniciativa e não é de todo calculista, o que contribui imenso para o espectáculo), Pogacar tem provado ser dotado de uma enorme força mental.
Senão vejamos. Nos Mundiais de Kigali no Ruanda, Pogacar protagonizou uma das imagens mais icónicas do desporto mundial. Num contra-relógio nada adaptado às suas características, Pogacar acusou o cansaço de ter competido no GP Montreal na semana anterior e de não ter preparado devidamente o contra-relógio, e viu-se dobrado (como se diz na gíria ciclista, quando um ciclista consegue ultrapassar outro corredor que partiu à frente do mesmo numa prova de contra-relógio) por Remco Evenepoel, absolutamente dominador da disciplina, e que havia partido dois minutos e meio antes de Pogacar.
Uma imagem absolutamente surpreendente, e um momento que poderia ter deixado marcas profundas na prova individual. E pasmem-se, ainda assim, Pogacar ficou em quarto lugar, falhando o pódio por apenas um segundo. Mas não só, essa ultrapassagem humilhante não o afectou, como deu uma autêntica exibição em cima da bicicleta.
Como disse anteriormente, em Kigali, Pogacar atacou a mais de 100 km da meta, inicialmente conseguiu ter a companhia do seu colega de equipa e o jovem talentoso mexicano Isaac del Toro, mas a 63km da meta, partiu sozinho (naquela que foi considerada a prova mais dura da história dos Mundiais de ciclismo), como se quisesse ele mesmo testar os seus próprios limites, protagonizando um contra-relógio individual de mais de 60 km.
Ganhou a prova desses Mundiais de uma forma categórica, e toda a desilusão que viveu (ainda para mais sendo o dia do seu aniversário) por ter sido simplesmente arrasado por Evenepoel, transformaram-se em lágrimas de contentamento, contrastando com as lágrimas de desapontamento por parte de Evenepoel.
A luta entre dois ciclistas durante este ano tem sido lendária, e o ciclismo só tem a ganhar com isso. Os adeptos desta apaixonante modalidade, estavam sedentos de uma rivalidade histórica, e esta entre Pogacar e Evenepoel já entrou para as páginas mais douradas da história do ciclismo mundial.
Evenepoel é o melhor rolador da actualidade. É o actual campeão olímpico, o actual campeão do mundo e o actual campeão da Europa. Contra factos não há argumentos. Nessa disciplina, tem sido rei e senhor nos últimos anos, destronando um especialista como o italiano Filippo Ganna, por exemplo.
Mas Pogacar é indubitavelmente o melhor ciclista do mundo. E quis prová-lo uma vez mais nos Europeus de Estrada. É verdade que o percurso lhe era favorável, mas estamos a falar de um ciclista que não se prepara apenas para ganhar o Tour (que voltou a vencer de uma maneira quase insultante ao seu arquirrival dinamarquês Jonas Vingegaard). É um ciclista que “vai a todas”, e muitos o têm criticado por causa disso.
Sinceramente, eu sou partidário de que ele poderia poupar-se mais e não competir tanto durante o ano, mas por outro lado desfruto intensamente deste extraordinário ciclista, e considero muitíssimo positivo que estejamos a assistir a um ciclista que testa constantemente os seus limites (físicos e igualmente psicológicos), competindo em provas tão distintas e complexas durante o ano.
No ano de 2025, Pogacar esteve a um pequeno passo de ganhar a Paris-Roubaix. Devido à sua morfologia física, e à dificuldade da prova, neste que é considerado um dos Monumentos do ciclismo (nome que é dado às cinco corridas de um dia com mais tradição no ciclismo), o esloveno foi apenas superado por Mathieu van der Poel, que apresenta uma compleição física muito superior à de Pogacar.
Na primeira vez que Pogacar correu a Paris-Roubaix, provou que não é impossível que venha a ganhar um dia destes, o qual só não o fez este ano por um pequeno erro que lhe provocou uma queda e perder tempo precioso para o seu rival holandês.
Apesar disso, conseguiu um mais que honroso segundo lugar, assim como já tinha conseguido fazer pódio na Milan-San Remo, o outro monumento que lhe escapa, e que acredito que um dia também possa vir a ganhar, porque tem perdido apenas por detalhes, e para ciclistas mais fortes no sprint, como o caso de Mathieu van der Poel.
No Tour, e apesar de já ter certificado a sua vitória na prova mais importante do ciclismo mundial, quis dar mais uma vez espectáculo e lutou arduamente para vencer a última etapa, numa chegada a Paris distinta daquelas que costumam terminar nos Campos Elísios.
Cedeu perante um especialista do sprint, como o belga Wout van Aert, mas Pogacar provou que não compete apenas por si, também o faz pelos seus milhares de adeptos, e são estes gestos e atitudes (como as de deixar o seu companheiro Brandon McNulty ganhar o GP Montreal), que fazem com que a generalidade dos adeptos do ciclismo idolatrem este atleta.
Fiz este aparte para que percebamos a dimensão desportiva e humana de Pogacar, que tem no nosso fantástico ciclista João Almeida um dos seus fiéis escudeiros, tendo manifestado publicamente por diversas vezes o seu apoio e solidariedade ao ciclista nacional, quando este sofreu uma dura queda na edição do Tour deste ano, ou quando se soube que Almeida ia ser um dos líderes da equipa UAE Emirates para disputar a Vuelta (em que João Almeida lutou até ao último dia pela vitória, sendo apenas superado por Vingegaard).
Os Europeus de Estrada disputados há um dia seriam a primeira prova na qual competiria depois de sagrar novamente campeão do mundo. E Pogacar queria provar mais uma vez que não entende de descansos, e que nas competições mais importantes (à excepção de alguns contra-relógios), é de longe o melhor de todos.
Desta vez tomou uma decisão inteligente e igualmente lógica, optando por não competir na prova de contra-relógio individual, claramente talhada para as características de Remco Evenepoel. Um percurso praticamente plano, sem nenhum desnível, não é o adequado para Pogacar, a quem lhes favorece mais os percursos com rampas de grandes pendentes na alta montanha ou provas no qual o acumulado de montanha seja superior ao que se roda numa superfície plana.
Essa decisão revelou-se a mais acertada, e uma semana depois de ter ganho os Mundiais, Pogacar voltou a “derreter” a concorrência, superando novamente Evenepoel, sendo que a medalha de bronze foi para a nova promessa do ciclismo, o francês Paul Seixas, de apenas 19 anos.
Nestes Europeus, já tivemos a presença de João Almeida, mas tendo estado doente nas últimas semanas, não se conseguiu mostrar ao seu melhor nível e acabou por desistir da prova.
O mesmo aconteceu com Jonas Vingegaard, que depois de ganhar a Vuelta, queria testar-se e ver o seu nível numa prova de um dia, e mais uma vez ficou completamente aquém das expectativas. O ciclista dinamarquês é a par de Pogacar o melhor voltista (nome dado na gíria ciclista àqueles corredores que competem pela classificação geral numa prova de três semanas) da actualidade, mas não é de todo um ciclista completo, além de que opta muitas vezes por uma táctica extremamente conservadora e calculista.
Essa táctica já deu os seus frutos, mas na minha modesta opinião, não contribui nada para o espectáculo. Correr na roda de outros ciclistas, não tomar o relevo praticamente nenhuma vez, e aproveitar-se do esforço físico que é despendido por outros ciclistas, é legítimo, mas eu não aprecio nada esta maneira de correr uma prova de ciclismo. É obviamente mais fácil, andar na roda de outros ciclistas e não ser o que dita o ritmo, do que puxar montanha acima para impor o ritmo da corrida.
Por isso, não me surpreendeu minimamente que Vingegaard cedesse logo na primeira aceleração de Pogacar nestes Europeus de Estrada, provando mais uma vez que terá de trabalhar muito, se quiser vir a ser um ciclista competitivo em provas de um dia. Poderá não ser esse o seu objectivo, e está tudo certo com isso.
Já Pogacar continuará a correr da mesma forma, independentemente de ganhar o Tour, de ganhar dois ou três Monumentos por ano, e de nos últimos dois anos ter disputado os Mundiais, tendo ganho ambas as provas. Pogacar torna-se igualmente o único ciclista da história a ganhar o Tour, os Mundiais e os Europeus no mesmo ano.
A regularidade do esloveno é tão grande, que praticamente em todas as provas de um dia que disputa, ou as ganha ou faz pódio em todas elas. Além disso, venceu quatro etapas no Tour, fez segundo lugar em muitas outras, e acredito mesmo que possa pulverizar o recorde de vitórias em etapas de Mark Cavendish. Apesar de não ser um sprinter como o ciclista britânico, Pogacar tem apenas 27 anos e já ganhou 21 (!) etapas no Tour. Cavendish ganhou 35 e Eddy Mercx ganhou 34.
Não será difícil de imaginar que se ganhar quatro a cinco etapas nas próximas quatro edições do Tour, que os conseguirá superar. Pogacar tem ainda uma espinha entalada na sua garganta e acredito que vá tentar igualmente conseguir a medalha de ouro olímpica pela sua Eslovénia em Los Angeles, em 2028.
E que talvez não seja no próximo ano, mas acredito que futuramente irá voltar a competir na Vuelta (onde fez pódio quando apenas começava no ciclismo em 2019, onde ganhou três etapas e a classificação do melhor jovem), para completar a trilogia das 3 Grandes, depois de já ter ganho o Tour de France e o Giro d’Italia.
Além disso, quererá continuar a disputar as clássicas de um dia, como a Amstel Golden Race, ou os Monumentos em que ele adora competir, como Il Lombardia, que será disputada nos próximos dias, e no qual Pogacar quererá terminar esta época de sonho em beleza com a conquista da sua quinta vitória nessa corrida e nono monumento da sua carreira, ainda longe dos 19 (!) de Eddy Mercx.
Mas como disse anteriormente, se eu não arrisco em dizer que Pogacar acabará a sua carreira sem ganhar os Cinco Monumentos ou em bater o recorde de vitórias em etapas no Tour, também não me atrevo a dizer que poderá igualmente igualar ou bater o recorde do fabuloso ciclista belga nesta luta particular e saudável que Pogacar trava com Mercx, mas essencialmente consigo mesmo.
A única coisa que poderá impedir Pogacar de continuar a cimentar o seu lugar na história e perseguir estes recordes quase inalcançáveis, será a sua eventual perda de motivação, se sofrer alguma queda que o impeça de continuar a competir, ou se mentalmente se cansar de correr e deixar de se divertir em cima de uma bicicleta.
Apesar de já ter apresentado alguns evidentes e até naturais sinais de exaustão mental (sendo estes verbalizados e bem patentes na última semana do Tour deste ano), parece que nestes últimos meses do ano, voltamos a ver um Pogacar sorridente, que prova semana após semana que está feito de outro material. Rendemo-nos e desfrutamos da sua grandeza. Tadej Pogacar pertence a outra galáxia.