
A Primeira Liga tem recebido vários estrangeiros nas últimas décadas. Afinal, quem não se lembra dos jogadores provenientes da América do Sul que entravam pela Europa através de Portugal? Há vários exemplos, como Radamel Falcao, Ángel Di María, David Luiz, entre muitos outros. Entretanto, os gigantes europeus começaram a ir buscar os seus jovens reforços à “fonte”. Ou seja, deixou de existir uma paragem intermediária entre a entidade formadora e a que recebia o atleta quase no seu auge. Países como Portugal, Países Baixos ou Bélgica saíram a perder e tiveram que encontrar alternativas. No entanto, isto é mais fácil quando existe capital para investir. Benfica, Sporting ou FC Porto (até podemos incluir o Braga nestas contas) têm muito mais disponibilidade financeira para fechar jogadores. O mesmo não acontece com os outros.
Certas direções desportivas, decidiram olhar para aqui ao lado e viram uma série de vantagens em apostar no futebolista espanhol, ou proveniente dos campeonatos dos nossos vizinhos. Nunca podemos falar em sucesso garantido, já que o mesmo não existe, mas tem sido uma política extremamente elogiada e repercutida em vários emblemas. Contudo, não foi sempre assim. A aposta no mercado castelhano foi alvo de várias críticas na década passada. O culpado? O FC Porto. Julen Lopetegui assumiu o comando dos dragões em 2014/15 e pediu uma série de conterrâneos, que passaram pelo Dragão sem sucesso: Andrés Fernández, Cote (anteriormente conhecido como José Ángel e que brilhou em 2023/24, no carril esquerdo do Sporting Gijón), José Campaña e Adrián López. Cristián Tello somou uma passagem mediana, enquanto que Iván Marcano e Oliver Torres foram tiros certeiros e trazem relativas boas memórias. O saldo é negativo e a acumular a isto, falamos de uma equipa com capacidade de investimento. Isto deu azo ao pensamento: “se estes são caros e não deram frutos, quão piores serão os outros?”.
Hoje em dia o pensamento é inverso, com os olheiros atentos ao que se passa na La Liga Hypermotion e na Primera RFEF, quando há capacidade para que exista atenção a estes escalões. Na minha visão houve um grande “culpado” para a mudança de opinião: o Famalicão 2019/20. Essa turma terminou em sexto lugar na Primeira Liga e tinha consigo vários elementos que passaram por Espanha, não sendo necessariamente espanhóis: Alex Centelles, Uros Racic, Gustavo Assunção, Pedro Gonçalves e Toni Martínez. Somente o lateral esquerdo e o médio sérvio encontravam-se emprestados, os dois pelo Valência, mas conseguiram brilhar por cá, estando a realizar boas carreiras, dentro de um patamar médio. Gustavo Assunção veio das camadas jovens do Atlético de Madrid. Pedro Gonçalves tinha aterrado proveniente do Wolverhampton, mas fez parte da sua formação no Valência. Por fim, Toni Martínez, chegara do West Ham, mas em 2018/19 esteve cedido ao Lugo, onde tinha feito um golo em 13 partidas. O sucesso desta equipa levou a que a aposta fosse cada vez maior, que deu azo a certos triunfos e relativos fracassos. Houve elementos com grande sucesso como Fran Navarro, Iván Jaime, Mario González (todos em equipas médias), mas também casos para não repetir como Olabe, Martín Calderón ou Eugeni. Os exemplos de 2023/24? Já lá vamos.
Como tudo, há uma probabilidade de acerto e de erro e muito depende do estudo prévio feito. Existem várias razões para o atual sucesso do jogador espanhol por Portugal. Em primeiro lugar, a cultura. Um português e um castelhano não são 100% iguais, porém há muitas semelhanças, o que faz com que a adaptação seja muito mais fácil, o que se adensa se falamos de um atleta galego ou de zonas fronteiriças como Pedro Porro ou Álvaro Carreras. De mãos dadas com a questão cultura, vem a linguística. Não é difícil aprender espanhol ou vice-versa. Tratam-se de línguas irmãs, provenientes do latim. Qualquer pessoa do leste da Europa, por exemplo, passaria por muito mais complexidades nesta temática.
Passemos ao nível competitivo. A maioria dos jogadores que vêm de Espanha, chegam oriundos da La Liga Hypermotion e da Primera RFEF, onde o patamar competitivo é muito elevado e são campeonatos muito equilibrados, que estão a sofrer um desenvolvimento rápido. Com isto não se quer transmitir a ideia de que a Primeira Liga é fraca, mas é de conhecimento público que existem apenas existem cinco equipas que já sabem que não têm que pensar na linha de água durante a época, o que dá azo a surpresas positivas época após época. Uma turma como o Eibar ou o Real Oviedo, não é tão inferior a históricos de Portugal, mas militam na La Liga Hypermotion. Temos o caso de Santi Colombatto, que atua nos asturianos, depois de se ter saído muito bem com a camisola do Famalicão e de ter sido associado ao FC Porto.
No entanto os elogios não se podem estender para o lado de Fuentes de Oñoro. Também temos a nossa quota parte. Os dirigentes, nomeadamente os diretores desportivos, voltaram a ter a capacidade de apostar em jogadores espanhóis, com contratações pensadas. Nem tudo o que vem do lado de lá, funciona. Mas, se encaixar no projeto, é perfeito. É sinal que contrataram um elemento com alta capacidade competitiva, de campeonatos de gabarito, por um baixo custo e fácil capacidade de adaptação. Vale a pena, enquanto olheiro e adepto, analisar algumas partidas da La Liga Hypermotion e da Primera RFEF, verificando que existem jogadores que encaixariam por cá (Clau Mendes, o exemplo mais recente, depois de descer ao quarto escalão com o Cornellà, deverá rumar ao Casa Pia). O facto de ser preferível para um jogador atuar numa Primeira Liga, que ficar numa Segunda ou Terceira, é importante. Há muito mais destaque e a probabilidade de se regressar ao país de origem pela porta grande, passa a ser mais elevada.
Hoje em dia é fácil imaginar surpresas de 2023/24, como Juan Bernal e Curro Sánchez a terminarem a vestir alguma camisola de equipa portuguesa, já que se destacaram no segundo escalão e podem ser estrelas na Primeira Liga. Não é de todo uma ideia descabida.
Durante a temporada 2023/24, contámos na Primeira Liga com 28 espanhóis. O mais valioso, de acordo com o Tranfermarkt é Álvaro Djaló, que chegou ao Braga em etapas formativas. No entanto, ao vermos a lista, verificamos mais casos de sucesso do que de falhanço. Aqui temos de ressalvar o exemplo do Arouca, que aplicou a tática perfeita, nos elementos da sua frente de ataque. Comecemos por quem já foi embora. Rafa Mujica rendeu à turma do distrito de Aveiro 10 milhões de euros, para assinar pelo Al Sadd. O ponta de lança chegou a Portugal em 2022/23 e rapidamente teve grandes resultados. Na primeira época foram 14 golos e na segunda 23. A sua última aventura havia sido no Las Palmas, onde em dois anos marcou dois tentos. Contudo, a sua formação na La Masia e o trabalho realizado por Armando Evangelista, que não desistiu de insistir nele, transformaram-no num avançado com golo, como se augurava que seria, enquanto estava na cantera do Barcelona. É o clássico caso do contexto perfeito, algo que ainda não tinha apanhado, até 2022.
Nos outros dois exemplos, falamos de talento puro. Cristo González sempre foi considerado uma grande promessa, tendo conseguido saltar até ao Real Madrid, depois de um período fenomenal em Tenerife. Ainda assim, ainda não tinha atingido todo o seu potencial. Em 2022/23, no Sporting Gijón, mostrou por vezes os traços da sua qualidade, mas era um jogador extremamente irregular, do qual era complicado retirar quatro ou cinco bons jogos consecutivos. No Arouca, Daniel Ramos e Daniel Sousa conseguiram levá-lo ao sucesso, sem ter medo de apostar nele. 18 golos e 10 assistência refletem toda a sua capacidade. Houve crença nas suas capacidades, o talento estava lá todo. Jason Remeseiro é o caso que falta, mas o mais simples de compreender. Já era craque antes de estar por Arouca. Conta com 29 anos e é um elemento mais experiente que os demais, com vários projetos vividos. Galego, fez uma carreira de sucesso na Comunitat Valenciana, brilhando em Villarreal e Levante, mas ficando um pouco aquém no Valência. No Deportivo Alavés, numa turma candidata à subida, mostrou todas as suas qualidades, ajudando os de Luis García Plaza a regressarem à La Liga. Em Portugal, foi só continuar o trabalho realizado. Não foi uma surpresa, pelo menos para quem já estava atento.
Ao percorrermos as equipas da Primeira Liga, vemos que há outros jogadores espanhóis em equipas de meio de tabela que são de qualidade: Gaizka Larrazabal, Javi Montero, Martín Aguirregabiria, Héctor Hernández (que não conseguiu “carregar” sozinho o Chaves) ou Óscar Aranda. No top 4, Iván Fresneda está em desenvolvimento, um pouco como Carreras. Juan Bernat flopou. Nomes como Adrián Marín, Iván Jaime, Abel Ruiz e Toni Martínez já deram provas, apesar do 2023/24 abaixo das expectativas. Nico González é fundamental para Sérgio Conceição e Álvaro Djaló conseguiu o salto para o Athletic. Fazendo as contas, a aposta é um sucesso e promete ser para continuar, com cada vez mais equipas envolvidas.
É tempo, para fechar, de fazermos a pergunta ao revés. Para quando uma aposta dos emblemas espanhóis em jogadores portugueses? Em certos casos, isso já acontece. Rui Silva ou Samu Costa, para não falar dos mais óbvios, foram importantes nas suas equipas na La Liga. Porém, mergulhando mais a fundo, é complicado vermos uma turma como o Real Murcia ou o Real Unión apostarem em lusos, pelo menos na ótica do imediato. Para isso, apostam “nos deles”. Veja-se o caso de João Dias e Gonçalo Tabuaço (que até foi treinador em parte da época por Paulo Alves e que apostou nele). O jogador português de nível médio não está disposto a rumar a um projeto que não seja de primeiro escalão, sem a garantia de um bom salário e isto é completamente compreensível. Em Espanha, o salário não é luxuoso, mas a competitividade é inegavelmente superior. Numa ótica de aposta para o futuro, a Liga Revelação seria um campeonato a analisar por parte das turmas da Primera RFEF e da La Liga Hypermotion, nomeadamente pela existência de turmas B nas instituições destes escalões. Tudo se trata de uma questão de visão, observação e planeamento.
A Primeira Liga tem beneficiado do jogador espanhol e o mesmo tem aqui uma montra para se mostrar. É uma relação com vantagens para os dois lados, cujo divórcio não aparenta estar perto.