Benfica e Ajax são dois históricos europeus que vivem nas sombras, mas cresceram na luz. Hoje, despidos de identidade, são uma amostra do poderio que outrora emanavam. Ainda assim, há momentos onde a história se torna o presente. Os gigantes adormecidos medem forças, mais uma vez.
É dia de jogo, jogam Benfica e Ajax. Eusébio veste o manto que se tornou sagrado quando tocou na sua pele, camisola vermelha aguerrida com uma gola em “v” sempre reconhecível. Leva o 10 nas costas. Johan Cruyff calça as suas chuteiras pretas e veste a sua camisola de manga comprida, toda ela branca, não fosse pela larga risca vermelha ao meio. O número 14 marca-lhe as costas, porque não faz parte do rebanho, mas define-o. Revoluciona o relvado por o pisar, revoluciona um número por o usar. Os dois encontram-se no túnel e partilham um abraço antes do jogo, porque a amizade dos dois transcende mais que os próximos 90 minutos, simboliza o respeito pela construção de um legado que não haveria de ser maior, mas igual a eles próprios. É dia de jogo, jogam Eusébio e Cruyff.
São clubes que sendo iguais, são diferentes e que sendo diferentes, são iguais. Ambos com um palmarés invejável, no topo da montanha do seu respetivo país e dos melhores que a Europa tem para mostrar. Ambos com três estrelas, por terem conquistado mais de 30 campeonatos nacionais. São 26 Taças de Portugal contra 20 KNVB Beker (taça dos Países Baixos). Igualam-se em Supertaças.
Partilham um envolvimento cultural e desportivo cujos alicerces estão na formação de talento e na valorização de futebol ofensivo e criativo, atingindo o seu pico nas décadas de 60 e 70, onde a ambição europeia do Benfica rendeu ao clube duas Taças dos Clubes Europeus, o Ajax, na década de 70 conquistou, por sua vez, três e ainda conquistou a quarta em 1994/95. De um lado, o clube do povo, do outro, a representação do espírito progressista de Amesterdão, andam de mãos dadas na sua premissa: modelos de jogo marcados pela técnica, pela mobilidade e pela aposta nos jovens. Seixal e De Toekomst. Assim se construiu o Benfica. Assim se construiu o Ajax.
Divergem, talvez, no contexto em que este modelo foi aplicado e ao quanto cada clube se agarrou à sua identidade. Entre Países Baixos e Portugal, bem como a consistência estrutural que cada país aufere no social e no desporto, há diferenças gritantes. Mas também é verdade que a equipa neerlandesa nunca deixou morrer a sua identidade de “futebol total” e manteve uma consistência institucional ao longo dos anos que levou a que permanecessem durante mais tempo no topo da cadeia alimentar.
O Benfica, por outro lado, esqueceu-se de quem era e perdeu-se em ciclos de reestruturação interna e em projetos que nada honravam o trabalho feito pelos seus antecessores. Ainda vive e preserva a sua formação, mas não pelo romantismo do ser, mas sim pela subsistência do negócio.
Na década mais recente, tanto Ajax e Benfica têm-se afastado da sua identidade tão bem definida. Recusando-se a si próprios, o fracasso desportivo é uma certeza. No caso neerlandês, há uma sofrência vinda da perda da continuidade na liderança desportiva, marcada por sucessivas mudanças de treinador e instabilidade na direção. A saída de figuras-chave da gestão do clube sem uma alternativa capaz tem dissipado o modelo de futebol total criado nos anos 60.
Desportivamente, a equipa de 2019 do Ajax é marcante e o clube realmente parecia ter um projeto sério com Erik ten Hag, mas a equipa foi desmontada no verão seguinte com a saída não só do próprio treinador, mas como boa parte dos jogadores fundamentais da equipa. Seguindo-se um período fraco a nível de talento na formação, o Ajax tem somado erros de recrutamento, estando em constante reestruturação de plantel ano após ano, causando um efeito bola de neve, onde se torna difícil construir e solidificar uma identidade.
O Benfica, por sua vez, não se pode queixar de instabilidade diretiva, pois o seu presidente acabou de ser reeleito numa eleição histórica para o clube. Tem sido capaz de formar talento sólido e o Seixal ainda dá garantias, tanto é que o Benfica é o atual campeão nacional de todos os escalões de formação. No entanto, não tem sido capaz de aproveitá-lo, pois os seus projetos não têm como foco a formação. Na verdade, o Benfica investe fortemente todos os anos e tem um retorno desportivo desproporcional àquilo que investe. Para sustentar o modelo económico, o clube português acaba por sentir necessidade de vender, chegando ao mesmo ponto que o Ajax: reestruturação ano após ano, numa bola de neve que mais parece uma avalanche.
À sua maneira, seja no contexto, seja na intensidade, os dois gigantes adormecidos vivem o mesmo problema: quando a estratégia não é coerente com os pergaminhos do clube e a identidade perde nitidez, não há instituição que sobreviva. Lisboa e Amesterdão brilham um pouco menos e os troféus no museu passam a ser só uma história e não uma cultura.


É dia de jogo, jogam Benfica e Ajax. Eusébio veste a sua camisola vermelha e ajeita a gola branca, tão eterna quanto a sua memória. Cruyff veste o seu equipamento de manga comprida, branco exceto a tal risca vermelha. O 14 ainda reluz nas suas costas. Abraçam-se novamente, não enquanto jogadores, mas como espetadores de um legado que perdurará no tempo e no espaço. Sentam-se lado a lado e apreciam o jogo. Assim se vê a bola no Olimpo do futebol.
É dia de jogo, jogam Benfica e Ajax.

