Benfica: Uma Crise de Identidade

O legado que Rui Costa deixa no Benfica é este: uma crise de identidade. O clube do povo aburguesou-se, vive com a soberba típica de um novo rico e esquece-se de onde vem, muito menos sabe para onde vai.

João Diogo Manteigas, João Noronha Lopes e Martim Borges Coutinho já tocaram nesta questão e aprofundaram-na, referindo aspetos diferentes do tema e as variadas consequências que a falta de liderança e a ausência de sentimento de pertença geram.

Sendo candidatos à presidência do clube, o seu discurso é sobretudo institucional, como assim deve ser. Não sendo esse o meu contexto, faz sentido trazer o tema para dentro das quatro linhas, onde os candidatos ainda não entraram.

Historicamente, quando pensamos no Benfica e nas grandes equipas que o Benfica teve, pensamos em equipas de futebol ofensivo, dinâmico, fluido. Pensamos em equipas que gostavam de ter a bola e de fazer golos e que jogavam sobretudo em 4-4-2, tendo sempre por base a formação. Assim era o Benfica de Eusébio, assim era o Benfica de Otto Glória, de Eriksson e até o Benfica de Jorge Jesus, na sua primeira passagem.

Tal como se pode definir o Benfica do ponto de vista histórico-cultural, como muito bem fazem os referidos candidatos, também se pode definir o Benfica dentro de campo. Já existe uma identidade pré-definida. A tarefa que o líder máximo do Benfica deve ter é de alimentar esta identidade e fomentá-la, trazendo staff, equipas técnicas e jogadores que também acreditem e que espelhem esta identidade, fazendo-a refletir onde mais importa: dentro de campo.

O Benfica precisa de um treinador que goste de praticar futebol ofensivo, com ideias típicas do futebol moderno e que não tenha medo de jogar olhos nos olhos com ninguém e, principalmente, que lhe interesse trabalhar com jovens e dispor da formação.

A dada altura, parecia que Rui Costa iria aplicar esta identidade no Benfica, quando contrata Roger Schmidt. O treinador não era um nome ou um currículo, mas era uma ideia: pressionar alto, primazia pela posse de bola, ataque fluido e trabalhar com jovens. Noutros tempos, seria mais fácil ter apontado um nome já estabelecido no cenário para entreter as massas, como Abel Ferreira, que apesar de ser um bom treinador, creio que não se encaixa na identidade que o Benfica já estabeleceu. Por esse prisma, a contratação de Roger Schmidt foi o romper de um status quo que durava há 20 anos.

Roger Schmidt
Fonte: Carlos Silva / Bola na Rede

Durante quase um ano, Roger Schmidt foi uma aposta certeira. Especialmente durante os seis meses de Enzo Fernández, o Benfica praticava um futebol atrativo, pressionava alto e tinha jovens da formação como António Silva e Gonçalo Ramos no seu 11 inicial. Mais do que isso, o Benfica jogava como queria jogar contra todas as equipas do mundo- o Benfica ganhava e ganhava bem.

A partir daqui, já existindo uma equipa técnica com uma ideia de jogar futebol e jogadores capazes de a colocar em prática, o papel do Benfica é continuar a formar nesse sentido e de identificar potenciais contratações em perfis similares aos que já existiam, e foi aqui que o Benfica falhou.

No verão de 2023, Grimaldo e Gonçalo Ramos, que tinham sido jogadores fundamentais para a conquista do campeonato nacional, saíram do clube. Em sentido de continuidade, era fundamental apresentar reforços que encaixassem na identidade e no sistema de jogo que já tinham sido estabelecidos. Em sentido contrário, Jurásek e Arthur Cabral foram apresentados enquanto jogadores do Benfica.

Gonçalo Ramos é um ponta de lança exímio no momento sem bola, pressionando e ajudando a equipa a recuperar a posse de bola e que brilha sobretudo no ataque a cruzamentos. Arthur Cabral é um ponta de lança de área, que contribui pouco para o momento defensivo e que é melhor num papel de pivô. Grimaldo é um lateral técnico, confortável em sair a jogar e de fletir para o meio, de forma a ser ele o criador. Jurásek é um lateral de linha, joga na vertical e qualquer um tem que se esforçar para encontrar no lateral argumentos que o façam custar 14 milhões de euros. O Benfica errou completamente os perfis e, ao fazê-lo, fugiu de si próprio e condenou-se.

Arthur Cabral Benfica 2
Fonte: Carlos Silva / Bola na Rede

Para surpresa de ninguém, a segunda época de Roger Schmidt foi um desastre. As contratações do Benfica não tiveram nexo, tendo em conta a filosofia de jogo do treinador alemão, tornando a pressão obsoleta e o processo com bola previsível e banal.

Até mesmo nomes sonantes, como Kokçu e Di María, tiveram prestações aquém das expectativas- Kokçu chega enquanto sucessor a Enzo, mas é um jogador totalmente diferente do argentino. Di María chega enquanto astro, mas Roger Schmidt nunca soube tirar o melhor proveito nem gerir o extremo da melhor forma. Claro que estes jogadores, por qualidade individual, acabarão sempre por contribuir com golos e assistências para a equipa, se poderiam contribuir ainda mais ou se hipotecam o coletivo enquanto brilham já é outra questão.

Recusando um processo de continuidade que parecia simples, o fracasso era esperado. Este artigo não serve para inocentar Roger Schmidt, até porque este também tem uma grande parte de culpa. Naturalmente, quando o treinador falha de tal maneira, o rompimento do contrato é o caminho natural, mas nem uma chapa cinco de um FC Porto que também era medíocre serviu para Rui Costa tomar uma decisão.

Quando Roger Schmidt falha, o Benfica devia prontamente substituir o mesmo com um treinador de ideias de igual encaixe perante a identidade do Benfica (que sempre perdurará por definição) e recomeçar o processo. No entanto, Rui Costa deu um voto de fé a Roger Schmidt no final da época que apenas serviu para adiar o seu despedimento para o início da época seguinte. Nesse momento, o mercado de treinadores estava esgotado e o único nome livre e disposto a aceitar o trabalho era o já conhecido Bruno Lage.

Bruno Lage
Fonte: Carlos Silva / Bola na Rede

Entenda-se que Bruno Lage, apesar do que mostrou na época de 2018/19 com João Félix enquanto motor da equipa, é um treinador distinto de Roger Schmidt e até do que deveriam ser as ideias do Benfica. Lage brilha enquanto estratega, quando tem a oportunidade de anular o adversário sem bola e puni-lo em transições. Por suposto, irá requerer jogadores predispostos a tal, como Bruma e Belotti.

Bruno Lage é a consequência da inação de Rui Costa e o retroceder no processo de solidificação de uma identidade. Os recursos que o Benfica aloca agora para Bruno Lage e os jogadores que contrata para o seu modelo de jogo são recursos que a direção seguinte irá tentar reaver e jogadores que o próximo treinador irá querer ver-se livre, porque não fazem parte da ideia do que deveria ser o Benfica.

No fundo, Rui Costa e a sua direção não souberam tomar as decisões difíceis em prol de algo maior que eles próprios e Roger Schmidt é lembrado enquanto cara de um projeto que já não existe porque não soube ser continuado nem reformulado.

Um clube que não vive por si e para si é um clube com rumo à mediocridade e à irrelevância. O Benfica não se reconhece a si próprio, seja nas vitórias ou nas derrotas e atirar dinheiro para cima dos problemas não faz parte da identidade institucional que Noronha, Manteigas e Borges Coutinho defendem.

Rui Costa recusou o Benfica, e é por isso que o Benfica há-de recusar Rui Costa.

Rui Gonçalves
Rui Gonçalves
Licenciado em Sociologia, o Rui Gonçalves aborda o futebol dentro e fora das quatro linhas. Através de um olhar crítico, escreve sobre tática, gestão desportiva e os seus impactos individuais e sociais.

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