Em modo dejá vu, Bruno Lage deixa um legado de controvérsia e um plantel com prestações aquém das expetativas. Depois de uma derrota histórica frente ao Qarabag, mediante julgamentos dos seus, no inferno (gélido) da Luz, o treinador sadino não resistiu à pressão do terceiro anel e Rui Costa tomou, novamente, a decisão que se recusou a tomar há meses atrás. Fim da linha para Bruno Lage, segue-se José Mourinho enquanto treinador do Sport Lisboa e Benfica.
Bruno Lage chegou ao Benfica há pouco mais de um ano, numa situação pós-apocalíptica. Caiu de paraquedas. Perceba-se: Bruno Lage é a consequência da inação de Rui Costa e a sua direção, que não tomaram a decisão de romper com Roger Schmidt no tempo certo e apresentar um sucessor à altura atempadamente, recomeçando o projeto. Deixando a época começar, já em situação de descontentamento, foram obrigados a tomar uma decisão simples no tempo errado ao invés de tomar uma decisão difícil no tempo certo. Com a época em andamento e poucos treinadores disponíveis, a única opção era uma cara conhecida. Chegaram tarde ao mercado e já não havia marisco, restou Bruno Lage.
Bruno Lage deixa um legado de controvérsias de situações que têm tanto de caricatas, como de insólitas, como de vergonhosas. Recordo a ilustre conferência de imprensa de “o Presidente”, de toda a situação em torno dos seus áudios, de lavar roupa suja com Kokçu num jogo frente a uma equipa amadora e de, mais recentemente, entrar em picardias verbais com adeptos durante os jogos contra o Estrela da Amadora e Alverca. Nenhuma destas situações dignifica algum dos envolvidos, e também é por estes episódios que torço o nariz à postura de Bruno Lage.

Dentro de campo, sou crítico (justamente) de Bruno Lage, por não considerar que a maneira como o mesmo vê futebol encaixa na forma como o Benfica deveria jogar futebol. Reconheço-lhe mérito enquanto estratega, onde procura anular os pontos fortes do adversário e feri-lo em transição, mas as suas equipas não são hábeis em ataque organizado, situações de pressão e de saída de pressão. Em sentido contrário, acho que um treinador do Benfica deve dominar estes últimos aspetos táticos referidos.
No entanto, eu inocentaria Bruno Lage se fosse apenas alguém a tentar fazer o melhor que pode com base no próprio contexto. Colocando-me no lugar do treinador setubalense, admito a dificuldade que deve ser viver sob a alçada de um presidente alvo de fortes críticas diariamente e que vê as eleições cada vez mais próximas, percebendo que o seu futuro está dependente da continuidade desse mesmo presidente.
Por outro lado, Bruno Lage é treinador de futebol e o seu trabalho deveria ser blindar-se a si próprio e ao balneário de qualquer barulho exterior, colocar a equipa a jogar à bola e evitar qualquer pergunta sobre eleições. Contudo, Bruno Lage resolveu fazer campanha eleitoral ao serviço de Rui Costa, e aqui decretou a sua sentença.
Os argumentos utilizados para a continuidade de Bruno Lage no cargo e os elogios feitos ao mesmo prendiam-se com o início de temporada e com os objetivos em qualificar-se para a Liga dos Campeões e vencer a Supertaça. Ignorando a qualidade exibicional, o Benfica fez um mês de agosto excelente: venceu o troféu, qualificou-se para a Liga dos Campeões e só conhecia a vitória no campeonato português. No entanto, bastaram dois resultados menos positivos para o treinador ser despedido. Porquê? Começamos aqui um paradoxo de Epícuro: se só os resultados importam, Bruno Lage não deveria ser despedido, porque a época ainda não está perdida. Se a qualidade exibicional importa mais que isso, Bruno Lage não deveria ter começado a época. Em que ficamos, Rui Cos- peço desculpa, em que ficamos, Presidente?
Na verdade, nada disso importa para esta direção. O ruído ao redor da equipa já era muito, a pressão sob Bruno Lage já não era controlável- assim como Roger Schmidt, esta é a decisão fácil porque é a decisão que mais convém ao incumbente: recomeçar com um nome sonante a um mês das eleições, eis Mário Jardel, eis José Mourinho.

Entenda-se também que, ao abrigo dos estatutos e do resultado eleitoral de 2021, Rui Costa e a sua direção têm perfeita legitimidade para tomar decisões no Benfica até, pelo menos, dia 25 de outubro de 2025. Não obstante, há decisões que, enquadradas no contexto, não são dotadas de bom senso: escolher um novo treinador (quinto em quatro anos) a um mês de eleições, é uma delas. A boa decisão teria sido apresentar um treinador-projeto antes do Mundial de Clubes, capaz de trabalhar ao serviço da identidade do clube, ultrapassando uma possível nova direção ou a continuidade da mesma em outubro. Neste momento, o sensato seria assumir um treinador interino que nunca tivesse tido contacto com a equipa principal ou um treinador de mercado interno nacional, também conivente com a identidade do clube.
Aqui está o troco de Bruno Lage e a sua recompensa por ter sido fiel a Rui Costa e pelas posturas não condignas para com os pergaminhos do Sport Lisboa e Benfica: despedido, pela porta do cavalo, fora de horário nobre enquanto metade do país já dormia, pela mesma direção pela qual assumiu o cargo de diretor de campanha eleitoral. Essa mesma direção que não hesitou em ver-se livre dele quando já não lhe era conveniente.

Como nem tudo é mau, Bruno Lage também deixa como legado um plantel com qualidade, com profundidade e diversidade de perfis que qualquer treinador teria o prazer de treinar. O resultado do único mercado de transferências em que a palavra de Bruno Lage foi tida em conta, segundo o próprio.
José Mourinho, herdeiro deste império de rei nu, chega na mesma posição que Lage chegou há um ano atrás: enquanto consequência da inação de uma direção que está a prazo.
Rui Costa chegou, outra vez, tarde ao mercado. Já não havia marisco, havia choco frito gourmet.