Os fantasmas de Bruno Lage

Ridículo não é e descabido muito menos será olhar para Bruno Lage e lembrarmo-nos imediatamente, com o sentimento de algo tão óbvio que já o devíamos ter percebido, que ali está Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, de corpo lânguido, não tão simbólico dum conceito, mas com a mesma carga caricatural. Camilo começa-nos a apresentação do Calisto por dizer que tem «hoje quarenta e nove anos, por ter nascido em 1815, na aldeia de Caçarelhos, termo de Miranda». Perguntando ao Google pela data de nascimento de Lage, surgem os mesmos algarismos.

O optimismo dos valores positivos do carácter de ambos ao chegar à ribalta contrastou no tempo e no espaço com a envolvência. Riam-se de Calisto, gozavam-lhe os modos e as expressões; a roupa só apimentava o avacalho. A Lage, a sequência de vitórias logo a abrir só adiou o escárnio, que se abateu depois sobre os modos aparentemente ingénuos do treinador-pedagogo que sustentava o sucesso no bom palavrear, na boa vontade com todos, na gentileza dos gestos; o seu futebol, enquanto tão vistoso quanto eficaz, protegeu-o. Era tudo demasiado perfeitinho. Idealizavam-lhe o perfil, que, supostamente, era à inglesa. Assim que a coisa começou a dar para o torto e o tempo permitiu discernir-lhe os inevitáveis e humanos vícios, veio o regabofe. A Igreja Lagiana perdeu o propósito; Lagiola passou a ser dito com um sorrisinho sarcástico.

Bruno Lage Benfica
Fonte: SL Benfica

Os dois tiveram que exercitar a resiliência e capacidade de adaptação. Camilo aproveita o embalo das paixões ardentes das mulheres metropolitanas para actualizar a sua personagem – deixa-o apaixonar-se, investe no guarda-roupa preparando-o as peripécias da sedução, promove-lhe a conversação com sábios que lhe induzem um estóico distanciamento dos valores milenares e o código de conduta trazido da impenetrável e irredutível província. O choque cultural serve não só para limpar dos recantos do seu intelecto, mas como gatilho para a revigorização física. Quem o conhecera antes como fidalgo dos latifúndios nem o reconhece agora – olha para ele e vê o diabo.

Lage não divergia muito do carácter acolhedor de Rui Vitória, mas abalou a pasmaceira que o futebol benfiquista se tinha tornado. De castiço passámos a pedagogo, mais sofisticado e mais sintonizado com os correntes tecnológicas – dum futebol embaçado passámos a futebol dilacerante, duma postura simpática, mas passiva começámos a testemunhar alguém que liderava pela magnanimidade, quase como Jesus no meio dos apóstolos. As vitórias acumularam-se, a média de golos disparou em flecha, do 4-3-3 pastoso vimos florescer o ideal benfiquista do 4-4-2 de transição, sempre veloz, mas sempre em associação.

Bruno Lage Benfica 2
Fonte: Carlos Silva / Bola na Rede

Viu-se na miudagem o ponto de luz. Félix foi acomodado em zona central, deu-se-lhe responsabilidade de criação e definição; permitia ao penetrador Rafa a liberdade total, percebendo-lhe as intuições na procura das profundidades, e compreendia o desbloqueador Pizzi, percebendo-lhe as intenções ao desmarcar-se sempre para onde o outro queria. A Seferovic tornou-o melhor marcador do campeonato, sem percebermos bem como. Quando Félix sai, começa o descalabro. Faltando-lhe o dinamizador, o futebol emudeceu-se. Ao duplo-pivot, tão destruidor como transportador ou colocador, de perfis híbridos, tentou-se encaixar Florentino, recuperador de elite, mas mediano em qualquer outro capítulo; as rotinas foram obrigadas a alterar-se. O planeamento de mercado refugiou-se no ideário do Seixal e a meia-dúzia de adicções revelaram-se inúteis. A rábula dos imberbes em plena Champions aprofundou o traço Mendista na carreira de Lage. É redutor considerar Félix como o primeiro fantasma do sucesso. É alguém mais acima.

Calisto e Lage depararam-se com uma parede ideológica. O tal choque de culturas levou-os à reconversão das suas identidades, o ponto de ruptura que ou destrói ou revigora. O que não mata engorda. Os dois passaram o cabo dos trabalhos até perceberem o que tinham de mudar, por instinto ou convicção. A inviolável moral que lhes permitiu a ascensão mediática não os sustentou na ribalta – se cimentaram admiradores, muitas vezes secretos, pela pureza das ideias, tão paradoxalmente caíram com estrondo. A integridade absoluta conspurcou-se no meio do charco. Calisto, que abominara os luxos e as liberdades da capital, começou-lhes a ver as virtudes, surgindo Ifigénia como o contraponto tentador da pacata Teodora, boa e fiel esposa, mas sem electricidade. Só assim personificados conseguiram os valores contemporâneos penetrar na muralha da sua moral.

Bruno Lage
Fonte: Wolverhampton Wanderers FC

Lage fez-se à vida. As experiências em Wolverhampton, permitindo-lhe testar-se semanalmente contra os melhores do mundo, e no Rio, que puseram à prova a sua capacidade de liderança e gestão de expectativas, meio que exterminaram o Lage original. A sucessão de situações difíceis em tão curto espaço de tempo quase que parecem equílibrio kármico como forma de pagamento daquele primeiro ano na Luz. Se na altura o fantasma de Jorge Jesus lhe dinamitou por completo o que poderia restar da esperança de resolver os problemas, agora surge, lá ao fundo e ainda quase imperceptível, Mourinho. Se o projecto inicial foi abandonado para dar entrada a Jorge Jesus e a um sem número de teóricas estrelas, as eleições em Outubro confrontam Bruno Lage com mais uma inevitabilidade cósmica: depois da desilusão do último final de época, os créditos tornaram-se escassos. Número crescente de vozes fez-se ouvir, falando em demissão. O treinador, ainda grato pela aposta inesperada, fez sempre questão de escudar o presidente – e, a fatalidade das declarações depois do triunfo sobre o Bayern em Charlotte apertaram-lhe ainda mais o cerco para o futuro. Lage fez all-in, foi pragmático à sua maneira: talvez tenha percebido que só Rui Costa teria sensatez tamanha para lhe dar a oportunidade duma vida, novamente. Viu nele o único caminho e apostou tudo.

A sua mudança de comportamento no regresso, no ano passado, mais agressivo e contundente, pareceu em primeiro momento a tentativa dum acting de método. De se insinuar como outro frontal e colérico. Quanto mais o tempo passa, mais parecerá algo do foro do ressentimento, da tentativa de reescrever um passado ou mostrar como foi a verdade revelada nunca justificada. O futebol, como expressão artística, tornou-se então, naturalmente, mais cínico – como o nosso íntimo que se deixa ver nas nossas acções. Se em alguns momentos era ainda assassino, com transição desenfreada e de levantar o estádio, o 4-4-2 foi-se mutando numa amálgama de coisas, uns dizendo que era a sua evolução como treinador e outros vendo nisso a perda da identidade. Os dois podem estar certos, em certa maneira: até porque foram as variantes táticas que permitiram ao Benfica 2024-25 sair glorioso de tantos jogos de nível máximo.

Richard Ríos Benfica
Fonte: SL Benfica

O mercado de transferências parece querer esclarecer a situação. Com Barrenechea e Ríos, volta Lage ao duplo-pivot híbrido, de grande raio de acção, do cão-de-caça junto do construtor, ainda que os dois com futebol suficiente para não se restringirem a papel único; e a aliança com João Félix, em situação urgente para os dois, servirá para derrotar um fantasma ainda maior do que fora Jesus, até porque Mourinho, além de convidado de honra este sábado, chega a uma fase da carreira em que qualquer dos Três Grandes seria sempre mais competitivamente estimulante que o actual desafio. Lage volta, portanto, a cair nos braços de fiel Teodora, ao contrário de Calisto que abraçou definitivamente a sua nova vida, focada na Ifigénia de sonhos. Percebendo colocar-se em beco sem saída, parece querer resgatar a sua essência, os valores primordiais que lhe permitiram chegar ao mesmo banco em Janeiro de 2019.

«Deixá-lo ser feliz: deixá-lo. Calisto Éloi, aquele santo homem lá das serras, o anjo do fragmento paradisíaco do Portugal velho, caiu.
Caiu o anjo, e ficou simplesmente o homem, homem como quase todos os outros, e com mais algumas vantagens que o comum dos homens.
Na qualidade de anjo, Calisto sem dúvida seria mais feliz; mas, na qualidade de homem a que o reduziram a paixões, lá se vai concertando menos mal com a sua vida
».

Resta perceber então como se concertará Lage. De homem do sistema, em voga com as tendências circundantes, parece querer voltar a ser anjo. Pelo menos tecnicamente, os indícios para isso apontam. E da mesma maneira que o nosso íntimo influencia a nossa expressão, artística e comportamental, podemos rezar para que seja a arte, o seu futebol, a puxar nele um regresso ao Lage puro, de índole mais tranquila e sem subterfúgios.

Pedro Cantoneiro
Pedro Cantoneirohttp://www.bolanarede.pt
Adepto da discussão futebolística pós-refeição e da cultura de esplanada, de opinião que o futebol é a arte suprema.

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