
Não fosse o calendário e o Estoril Praia x Santa Clara, ganho pelos açorianos por 1-0, poderia ser apenas mais um jogo normal do futebol português com todos os clichês das duas partes distintas, da equipa que se fecha depois do golo e da outra que perde força com as substituições. Mas o calendário de um jogo realizado no Equador da pausa para seleções, um dos poucos momentos do ano de pausa e férias para muitos jogadores, precisamente no dia em que joga Portugal (ainda que mais cedo) obriga a reflexões que vão muito para além do futebol jogado.
É certo que a premissa que justificou o adiamento do jogo não só é válida como é altamente necessária embora, no final de contas, não tenha levado a nada. Garantir o máximo de competitividade portuguesa nas competições europeias tem de ser encarado como prioridade para a Liga Portugal e restantes entidades envolvidas na promoção do futebol português. Ainda assim, é preciso ter noção de que, para resolver um problema, não basta varrer outros para debaixo do tapete.
Enquanto todos os jogadores da Primeira Liga se juntavam para as seleções ou podiam aproveitar uns dias de pausa e descanso com a família, Santa Clara e Estoril Praia trabalharam de forma isolada a preparar um jogo que obrigou a abdicar de uma das pausas competitivas. Mais do que encontrar a equipa que mais beneficiou ou foi prejudicada, há que ter em conta que, na realidade, ninguém foi ajudado por esta situação.

Depois, mesmo na segunda prateleira do futebol português, há jogadores envolvidos nas seleções nacionais, principais e sub-21. Obrigá-los a abdicar disto para um jogo do campeonato ou, em sentido contrário, ver treinadores a ficar sem alguns dos seus jogadores para a preparação de um jogo, também não respeita as normas mais elementares do desportivismo.
Não há soluções fáceis ou uma fórmula mágica para resolver o problema, mas há que ter em conta que há soluções que não são nada viáveis à partida e que menos o são quando chegam. Ian Cathro não pôde levar a filha à Disneyland, João Carvalho alertou para o tempo com a família que os jogadores não tiveram e o jogo, que tinha potencial para ser particularmente interessante, ficou embrenhado numa névoa que lhe tirou brilho.
Quanto a este, quando a bola falou, apresentou equipas com objetivos semelhantes e maneiras diferentes de o fazer. Nem Estoril Praia nem Santa Clara arrancara a época de forma fulgurante, mas ambas as equipas têm muito espaço para crescer.

O Santa Clara chegou à primeira vitória na Primeira Liga e, sem competições europeias, poderá recuperar com alguma facilidade a consistência que foi marca de água em 2024/25. O plantel estabilizou e é o mesmo, salvo ligeiros ajustes, há três anos, quando o clube venceu de forma destacada a Segunda Liga.
Há muita fiabilidade nos jogadores que constituem a linha defensiva e coerência nas opções de Vasco Matos. Na frente, o Santa Clara tem jogadores capazes de aproveitar espaços para brilhar. Nas útimas jornadas, tem sido Gabriel Silva o principal destaque dos açorianos.
Extremo esquerdo de origem, o brasileiro foi o maior destaque da última época para o conjunto dos Açores e esta temporada pode manter o protagonismo. Cheirou um salto no mercado, mas continua a vestir o vermelho do Santa Clara e tem sido utilizado como referência central. Ataca espaços de forma constante e mantém a verticalidade que o caracteriza e o faz destacar.
No Estoril Praia, as mudanças foram maiores de uma época para a outra e Ian Cathro ainda procura o melhor encaixe para a equipa. Diante do Santa Clara, uma equipa de largura e capaz de controlar o jogo sem bola, o escocês lançou quatro criativos para ocupar o meio-campo e as duas posições de apoio ao ponta de lança e procurou mobilidade no terreno interior.

Sem bola, o Estoril Praia defendia em 5-3-2 para ter superioridade no meio-campo e com bola, procurava aproximar Jordan Holsgrove – um tratado de bom futebol – Patrick de Paula, Pizzi e João Carvalho. Tudo nomes com relação próxima com a bola para combinar, arrastar marcações e abrir espaços. André Lacximicant tem um perfil óbvio para marcar diferenças no ataque ao espaço, mas faltou poder de fogo aos canarinhos.
Lá atrás, também há um excesso de maleabilidade nos defesas. Para lá das claras competências com bola de nomes como Ferro, Felix Bacher e Pedro Amaral, faltam atributos defensivos e capacidade de vencer duelos de forma constante ao Estoril Praia. Fez-se sentir a ausência de Kévin Boma, um central mais atlético, rápido e seguro nos duelos, numa linha defensiva com muitos jogadores de perfil semelhante.
Apesar do predomínio do corredor central, Ricard Sánchez também se destacou. Quem olha para o espanhol de repetente vê Ricardo Mangas, pelo perfil físico, posicionamento e estilo inconfundível. Dentro de campo, jogou a pé trocado e deu mostras de poder assumir protagonismo no Estoril Praia. Faz o corredor com dinamismo, consegue chegar à linha de fundo e joga com os colegas. Ian Cathro pode fazer um percurso semelhante ao da época, que arrancou de forma ainda mais difícil, mas há expectativas para ver o que pode fazer a equipa quando estiver toda oleada.
BnR na Conferência de Imprensa
Bola na Rede: Aposta numa frente de ataque mais móvel com o Gabriel Silva como referência central. O que pretendia com esta frente de ataque e que avaliação faz ao jogo do Gabriel Silva?
Vasco Matos: Foi a mesma da semana passada, só trocámos o Vinícius Lopes pelo Brenner. Olhamos para a equipa, para as nossas semanas de treino e para os jogadores e em função das suas características e dos sinais que vão dando nos treinos tentamos escolher os melhores jogadores para cada jogo. Já o ano passado o fizemos. Preparamos muito os jogos e os jogadores para a nossa exigência. Os jogadores têm de dar resposta. É para isso que trabalhamos e, nesse sentido, optamos sempre pelos melhores jogadores e pelos que nos dão mais sinais e indicadores que estão prontos para o plano de jogo e para a nossa ideia e identidade. Não abdicamos dela. Já estamos aqui há três anos e não abdicamos dos nossos valores enquanto equipa e da nossa identidade. Os jogadores têm de dar respostas. Em função disso tomamos decisões.
Bola na Rede: Já mencionou as dinâmicas dos médios, com dois jogadores no corredor central, dois jogadores de fora para dentro e muito preenchimento do corredor central. O que pretendia com esta dinâmica contra um Santa Clara que defende muito bem a largura e o que faltou para dar o passo em frente, chegar dos médios ao ataque e criar mais situações de finalização de forma constante?
Ian Cathro: Acho que tivemos várias situações com as combinações entre eles na primeira parte. O futebol tem uma coisa: o resultado vai sempre mandar a cabeça mais para um lado que para o outro, mas respeito a pergunta. Sabíamos que íamos jogar contra uma equipa que é muito forte quando consegue criar situações de pressão alta e no momento de transição. Procurámos ter dinâmicas reforçadas na zona central com aqueles quatro para tirar as oportunidades para o adversário ser mais pressionante. Se estamos a analisar o jogo nesse sentido podemos dizer que correu mais ou menos bem. Depois podemos falar do jogo com muito, muito, muito detalhe, mas ao fim do dia a bola tem de entrar na baliza. Quando não entra e o jogo continua e acontecem outras coisas, muda.