No meio do caos há que manter a calma. A frase aplica-se à vida e, como a vida se aplica ao futebol, é o retrato ideal da temporada do Estrela da Amadora. Poucos clubes terão tido uma época tão atribulada como a equipa de Sérgio Vieira que, mesmo assim, garantiu a manutenção na última jornada da Primeira Liga.
Lesões, uma remodelação total do plantel em janeiro, situações familiares, a CAN pelo meio. Sérgio Vieira não deixou nada por dizer depois do grito de alívio e de satisfação quando o apito final se ouviu e as milhares de pessoas num Estádio José Gomes com mais pernas que cadeiras celebraram de forma efusiva. A época foi longa e o princípio do fim de um processo que se arrastou durante cerca de 15 anos e que atirou o mítico emblema da Reboleira para as divisões distritais onde a formação continua a jogar. Quando todos os ingredientes adivinhavam uma mistura explosiva com tudo para dar mal, sobressaiu uma estranha calma no meio da tempestade.
A época do Estrela da Amadora não deixa de ser irregular. Mas dentro de todos os altos e baixos, há uma estranha regularidade que se tratou de assinar os papéis para a manutenção no topo da montanha do futebol português. Uma regularidade que permitiu ao clube conquistar pontos e contrariar todos os sobressaltos e percalços de uma temporada que, dentro de todas as atribulações, terminou com um barco a bolinar.
A exibição diante do Gil Vicente foi o expoente da época do tricolor. Não há muitas equipas em Portugal com uma identidade tão própria e tão vincada quanto o Estrela da Amadora. Foi o que permitiu, por diversas alturas, fazer face às vicissitudes e às circunstâncias e respirar.
Estádio José Gomes, minuto 24’ ⚽️🌟 pic.twitter.com/OwVIkxXnlI
— CF Estrela da Amadora (@cfestrelamadora) May 19, 2024
Defensivamente o Estrela da Amadora consegue gerir a altura da pressão. Varia entre uma pressão com duelos individuais e encaixes precisos ao longo do campo e um bloco médio-baixo capaz de bascular e focado em proteger a área. Há noção de quando adotar cada um destes comportamentos e capacidade para tomar precauções. Os primeiros minutos diante do Gil Vicente foram de superioridade clara pela capacidade de impedir os galos de ultrapassar a linha do meio-campo. O Estrela da Amadora instalava-se, forçava erros e recuperava bolas. Mesmo sem criar grandes oportunidades, ter a superioridade territorial deu conforto ao Estrela da Amadora e retirou a influência de vários jogadores do Gil Vicente do jogo. Kanya Fujimoto só aparecia quando procurava jogar mais perto da linha, fugindo dos duelos individuais com os médios do Estrela da Amadora e tendo capacidade para lançar ou para atacar o espaço com movimentos de rotura para receber/arrastar. Ali Alipour foi um corpo estranho obrigado a corridas com falência previsível ou a duelos aéreos sem acerto. E, nesta gestão, o Estrela da Amadora soube crescer e aproveitar o que o jogo deu.
A verticalidade e a capacidade de criar situações de finalização de forma rápida são as maiores virtudes de um Estrela da Amadora que, não sendo exuberante, foi em vários momentos eficaz. O Gil Vicente procurou fechar o corredor central num 4-5-1 que retirou muita influência aos médios tricolores. Para a manta se exceder de um lado, fica a faltar no outro e o Estrela da Amadora percebeu que podia entrar pelos corredores. O extremo do Gil Vicente era obrigado a acompanhar os alas da equipa da casa, reduzindo as chances de uma transição e obrigando o jogador a uma permanente concentração. Quando a bola chegava rápido ao espaço ou quando a marcação falhava por um segundo, havia capacidade para gerar vantagens numéricas ou do lado da bola ou no segundo poste, zona procurada em cruzamentos. Mesmo com este acompanhamento, colocando o central exterior na base da jogada, o Estrela da Amadora conseguiu criar inúmeras superioridades numéricas por fora e criar. Alas por fora, extremos muitas vezes a ser acionados por dentro em apoio e estavam criados desequilíbrios. Há comportamentos que, sendo identificáveis neste jogo, são representativos de uma temporada.
Mesmo sofrendo na segunda parte, com Kialonda Gaspar a emergir como bombeiro de serviço a cortar bolas possíveis e impossíveis, o Estrela da Amadora foi resistindo. O sistema defensivo foi permitindo entradas aqui e ali, abrindo brechas principalmente para movimentos de fora para dentro, mas o jogo estava no bolso. A agressividade no ataque a zonas de finalização é outro dos méritos que Sérgio Vieira tem. O Estrela da Amadora sabe ser competitivo e compete com as armas que tem. A identidade vale mais do que tiros cegos no ar.
BnR na CONFERÊNCIA DE IMPRENSA
BnR: O Gil Vicente preencheu o corredor central num 4-5-1 no momento defensivo que retirou protagonismo aos médios do Estrela da Amadora. Por outro lado, foram várias as superioridades no corredor com o extremo e o ala em igualdade numérica e uma possibilidade de superioridade com a participação do central exterior na base da jogada. Saber onde sobrecarregar o adversário e por onde entrar foi determinante na exibição da equipa?
Sérgio Vieira: Obrigado, muito pertinente porque às vezes nos esquecemos de muitas coisas. O Gil Vicente queria ganhar este jogo a todo o custo e meteu um central, o Filipe [Silva] que nós quisemos comprar, não tínhamos hipótese e o Gil comprou. É outra coisa que nos falta neste momento, capacidade para comprar. O Filipe veio do Avaí, eu trabalhei no Brasil, conheço bem o mercado e o Gil comprou esse jogador. Não foi muito aposta este ano, mas comprou. Neste jogo o Filipe jogou a fechar o corredor, numa estratégia muito bem montada pelo Tozé [Marreco] e com o Félix [Correia] a baixar mais e a fechar os espaços, mas nós estivemos muito bem. Variámos muito bem o espaço onde a bola estava, ia à largura, ia atrás, quando vinham pressionar jogávamos nos espaços interiores. Faltou-nos na primeira parte alguns momentos em que o Léo Cordeiro e o Bucca podiam variar mais no corredor e acelerar mais no Nanú e no Nilton [Varela]. Perdemos o Nilton na primeira parte, houve alguns fatores como os golos… Essas regras que não são fáceis de estimular numa equipa que veio da Segunda Liga onde os jogadores não estão juntos há várias épocas. Ter uma equipa de posse e não permitir transições de grande perigo não é fácil. Contra o Farense, por exemplo, não conseguimos. Fomos uma equipa muito completa. O [Kialonda] Gaspar fez um grande jogo, muito concentrado. Este é o Gaspar para outros níveis e esta época ele precisava de uma estabilidade maior, que não se falasse que ia para ali, acolá. Essas notícias que saíram mexeram com a estabilidade dele, ter ido à CAN com a seleção mexeu com a estabilidade dele porque quebrou a regularidade do dia-a-dia. Mesmo assim ele superou-se muito e este jogo prova o valor do Gaspar. É um jogador para equipas que possam lutar por títulos. Tem um grande carácter, grandes capacidades e tendo um contexto à sua volta que o ajude a focar-se todos os dias vai ter desempenhos como este. Teve momentos que quebrava a pressão, rodava sobre ele próprio, ia pelo lado contrário. Aspetos que víamos no Puyol, no Piqué naquele Barça do Guardiola. Fez um grande jogo como fizeram todos. Foi um grande jogo de toda a equipa. Foi pena não termos feito um segundo golo. O 2-0 ajustava-se pelas oportunidades que tivemos. O Gil Vicente teve um ou outro lance de perigo também, com um 2-1, por exemplo, acho que tinha sido um jogo emocionante. Felizmente conseguimos a vitória com todo o mérito.
BnR: Foram várias as vezes, nomeadamente em situações de cruzamento, em que a última linha do Gil Vicente esteve em inferioridade numérica na última linha. Foram algumas vezes com um 5×4 com os alas do Estrela da Amadora a entrar sem o acompanhamento do extremo do Gil Vicente, gerando bolas ao segundo poste. Foi esta a principal falha neste momento e se foi um dos motivos que levou a substituição dos laterais antes do intervalo?
Tozé Marreco: Não consigo confirmar se havia vantagem numérica ou não na área. No golo do Estrela da Amadora sei que há um 2X1, superioridade defensiva, e acontece o golo. Portanto a relação numérica nem sempre é sinónimo de ganhar o duelo ou ganhar a jogada. O melhor exemplo é mesmo o golo, estávamos perfeitamente posicionados e alinhados, um 2X1 defensivo e sofremos o golo. Não sei se terá razão nessa análise ou não, tenho de confirmar. Sei que efetivamente na primeira parte não conseguimos ter bola porque estávamos a tentar entrar demasiado por dentro, os nossos laterais estavam demasiado baixos e pouco abertos como deveriam estar. Se quer ir pela parte mais tática, não conseguimos chegar ao terceiro médio, o médio que está mais longe do lado da bola, não o conseguimos encontrar. Troquei porque precisávamos de mais dinâmica nos corredores. Mas foi o que disse ao intervalo, se pudesse tinha deixado o Andrew e trocava os outros dez.