O papel social do Futebol

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“Como é que podes gostar de futebol sabendo o dinheiro que os clubes gastam?”. Já me fizeram esta pergunta, de forma mais ou menos directa, mais do que uma vez. E há aqui uma verdade indesmentível: de facto, os valores com que o futebol lida são absurdos. É quase esquizofrénico – e, no entanto, muito comum – ouvir em conversas entre adeptos coisas como “sim, o Real só pagou 20 milhões por ele” ou “10 milhões? Então foi barato, ele valia no mínimo 15!”. Deveria ser inconcebível imaginar um mundo em que é aceitável gastar 30 milhões de euros num ser humano, qual mercadoria transaccionada no mercado, mas consagrar uma pequena parcela desse valor à saúde, educação ou cultura já é visto como inaceitável. Mas a verdade é que esse mundo existe.

No entanto, é aqui que os críticos do futebol falham. E falham porque se enganam redondamente no alvo. P. Duarte, autor deste texto, pinta a realidade de forma exemplar: Pelo menos desde a Grécia Antiga que é um lugar-comum para qualquer intelectual construir a sua reputação (de ‘intelectual’) por oposição aos vícios mais triviais da vida – com o futebol, nas últimas décadas, à cabeça de todos eles. Quem nunca ouviu o intelectual cagão do café, do trabalho ou da universidade afirmar que não consegue perceber como é que tanta gente se entrega tão visceralmente aos prazeres da bola (e a outros prazeres que a razão não sabe explicar)?”.

futebol massas
Futebol, desde cedo um desporto de massas e um complexo fenómeno social
Fonte: thefa.com

Se se louva a preocupação de uma certa camada intelectual pelas questões económico-sociais que envolvem o futebol, já se percebe menos o desprezo por este desporto ou os ataques ad hominem aos que gostam dele e o seguem. Quem faz do futebol um meio artificial, ganancioso, mercantilista e completamente desfasado do mundo real não são os adeptos – estes vibram com grandes golos, grandes jogadas e grandes defesas desde o séc. XIX. O futebol tem todos esses vícios por causa do sistema económico em que se insere, e do qual não pode fugir – o capitalismo, sistema que, de resto, deixa a sua marca em muitas outras áreas: para não ir mais longe basta lembrar a indústria farmacêutica, que subordina as pesquisas para determinados medicamentos e curas à possibilidade ou não de lucro.

Não adianta estarmos com meias palavras, tanto porque as designações existem para serem usadas, como porque a História não chegou ao fim. Citando o mesmo texto, o futebol está, “em grande parte, colonizado pelo capitalismo”. Noutro artigo igualmente interessante, o autor Bruno Carvalho faz um relato fiel à realidade quando diz que o mundo do futebol moderno destrói aquilo que devem ser os princípios desportivos e não vê mais do que o negócio. Os principais clubes são enormes pólos de lavagem de dinheiro e vivem nos tentáculos do poder económico e político. A corrupção transborda por todas as partes. Grande parte dos árbitros profissionais manipulam a realidade a troco de dinheiro e boa parte dos jogadores vive para os patrocínios. É um mundo que serve muitas vezes como ferramenta de alienação”.

Penso que todos nós, quer sejamos ou não adeptos de futebol, temos um pouco esta percepção. No entanto, o autor das linhas que citei não cai no erro de dizer que essa alienação é inerente ao futebol. Que ela existe e é estimulada, é um facto. Mas isso não acontece só com o futebol: com Hollywood, com a moda ou com a indústria musical, por exemplo, passa-se o mesmo. É a tal colonização das várias áreas da vida, subordinando-as ao lucro e a uma lógica mercantilista.

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Protesto dos Bukaneros, claque do Rayo Vallecano, contra os despejos em Espanha
Fonte: cuestionatelotodo.blogspot.com

O futebol está repleto de exemplos que contrariam a tese de que o seu único destino é reforçar a alienação. Darei apenas alguns: em 1942, uma equipa de prisioneiros políticos ucranianos, ex-jogadores de futebol, derrotou uma elite da Wehrmacht nazi mesmo conhecendo as possíveis consequências de uma eventual vitória – e que se vieram a verificar – naquela que ficou conhecida como “a partida da morte”; Matthias Sindelar, considerado o melhor jogador austríaco de sempre, marcou um golo e festejou à frente dos oficiais nazis no jogo que celebrava a anexação do seu país ao Reich, tendo também recusado participar no mundial de 1938 pela Alemanha nazi (morreria misteriosamente no ano seguinte); nomes de jogadores-activistas como Cristiano Lucarelli, Javier Zanetti, Paolo Sollier, Oleguer, Lilian Thuram ou o génio brasileiro Sócrates são familiares para quem segue o futebol para lá das quatro linhas; por último, clubes como o Livorno, o St. Pauli, o Celtic, o Marselha, o Athletic Bilbao ou o Rayo Vallecano são conhecidos por a maioria dos seus adeptos partilhar convicções anti-fascistas e anti-racistas. E, se a existência de casos de ódio no futebol acaba também por ser o reflexo da realidade, os (bons) exemplos contrários são mais do que excepções à regra e não devem ser ignorados.

Posto isto, por que razão o futebol usufrui de um estatuto tão especial e privilegiado junto das massas? João Garcia, colunista do Expresso, ajuda a responder a isto num artigo de 24 de Maio: “também sou daqueles que não entendiam por que é que se criticam os banqueiros e gestores que ganham milhões e se veneram os Ronaldos e os Mourinhos, que são igualmente actores, brilhantes, mas de um negócio diferente. Afinal é simples, as estrelas do futebol trazem felicidade às pessoas. Acrescento apenas que, para além da felicidade, este desporto é dos únicos elementos que confere emoção e imprevisibilidade à rotina de milhares de vidas monótonas, onde não há espaço para a criatividade. No futebol, ao contrário do que acontece na vida, não se sabe à partida quem vai ganhar o jogo. É difícil um Moreirense vencer um Sporting ou um Benfica. Mas, em todo o caso, é mais frequente isso acontecer do que uma pessoa nascer pobre e tornar-se milionária, ou mesmo conseguir penetrar na classe média.

De novo P. Duarte: “enquanto recurso mobilizável pelo capitalismo, o espectáculo futebolístico serve também para a recuperação da ‘força de trabalho’ dos assalariados-espectadores (…). No interior do estádio ou diante da televisão, o fã sabe que poderá subitamente fazer tudo aquilo que a gestão capitalista erradicou de grande parte do seu quotidiano – pintar-se, gritar, chorar, emocionar-se, zangar-se, vociferar, abraçar, saltar, cantar…”. Está assim explicado, parece-me, o papel social do futebol: por um lado, colonizado, explorado e subvertido pelo capitalismo em nome do lucro; por outro, “porto de abrigo” de uma classe trabalhadora refém da monotonia e das contrariedades do quotidiano. A segunda parte desta caracterização está bem patente neste vídeo:

[ot-video type=”youtube” url=”https://www.youtube.com/watch?v=M5i655HD8Wk”]

É ponto assente que o futebol desempenha uma função alienadora. Só isso explica que haja tribos urbanas que se confrontem e que cheguem literalmente a matar por questões ligadas a este desporto. Mas também aqui o futebol é reflexo da sociedade: durante 99,9% do tempo, as pessoas estão ocupadas por assuntos mundanos, e apenas nos restantes 0,1%, tomam consciência real da sua força.

A Turquia é conhecida por ter dos adeptos mais fanáticos e problemáticos do mundo. No entanto, aquando dos tumultos na Praça Taksim, foram muitos os casos de solidariedade entre adeptos rivais. Serve este exemplo apenas para mostrar que, reunidas as condições objectivas para o despertar da consciencialização politico-social seja em que contexto for, não é o futebol que vai impedir que isso se processe. E, sendo este o desporto mais seguido a nível mundial, não é difícil adivinhar que há muitos adeptos desta modalidade entre aqueles que, em Portugal ou noutro sítio, saem à rua para defender os seus direitos. Caso se justifique e a realidade o exija, o futebol será até posto de lado. A História mostra-nos que sempre foi assim.

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Na Praça Taksim, adeptos rivais posicionaram-se lado a lado: quando se acende o rastilho da consciência social, acabam-se as “guerras” artificiais entre clubes
Fonte: 101greatgoals.com/

Todos têm o direito de gostar ou não gostar do que quer que seja, e o futebol não é excepção. Mas algumas críticas – as que deram azo a este texto – parecem-me precipitadas porque abordam a realidade de uma forma simplista. Sobre esta temática, não resta muito mais a dizer a não ser voltar de novo a um texto já aqui citado: “Eu não deixo de ler só porque o mercado livreiro está dominado por editoras que privilegiam certo de tipo de literatura. Eu não deixo de ouvir música só porque a música de que gosto não passa na rádio. Há milhões de adeptos de futebol que lutam pelo fim do desporto enquanto negócio e arma de alienação. E um dia, no mundo melhor por que lutam também os que gostam de futebol, haverá espaço para desfrutar enquanto praticantes e enquanto adeptos. Sem mochilas a fazer de baliza e com o acesso ao desporto como direito conquistado e acessível a toda a população”.

É precisamente isto que, enquanto adepto de futebol, pretendo ver consumado: que um dia a justa organização do trabalho permita libertar tempo para a criação cultural e para a prática desportiva, possibilitando a qualquer cidadão expressar-se através do seu corpo e do seu intelecto e, dessa forma, não só atingir a sua realização pessoal como contribuir para o progresso da humanidade.

Parecendo que não, tudo aquilo que as pessoas mais gostam no futebol, desde o amor à camisola até ao desenvolvimento do futebol-arte por gosto e não pelo dinheiro, passando pelos bilhetes a preços racionais por forma a encher os estádios, está em vias de desaparecer devido à lógica capitalista. A especulação, as lavagens de dinheiro, a transacção de seres humanos como se fossem mercadoria, a promiscuidade com o poder político e económico, tudo isso são tentáculos lançados pelo sistema económico em que vivemos. E é vital que nos desembaracemos deles, para cada um de nós possa desfrutar – não só enquanto adepto, mas também enquanto praticante –  de um desporto-rei verdadeiramente enriquecedor e democrático.

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João V. Sousa
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O João Sousa anseia pelo dia em que os sportinguistas materializem o orgulho que têm no ecletismo do clube numa afluência massiva às modalidades. Porque, segundo ele, elas são uma parte importantíssima da identidade do clube. Deseja ardentemente a construção de um pavilhão e defende a aposta nos futebolistas da casa, enquadrados por 2 ou 3 jogadores de nível internacional que permitam lutar por títulos. Bate-se por um Sporting sério, organizado e vencedor.                                                                                                                                                 O João não escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.

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