O fenómeno romântico De Zerbi é relativamente recente, sem grandes resultados práticos – ainda que a qualificação europeia do Brighton seja um confiante fixe de pulso bem esticado – mas a força da estética estendeu ramificações por essa Europa fora, inspirando um sem número de outros contempladores do futebol como expressão artística da organização colectiva.
Francesco Farioli partilha a antroponímia de artista da Renascença – porque a intuição diz-nos que há nomes com mais hipótese de sucesso que outros – , carimbo de craque das ideias. O italiano de 34 anos foi adjunto de De Zerbi em Benevento e Sassuolo e bebeu dessa metodologia para deixar de ser treinador de guarda-redes e assumir a liderança do balneário e banco de suplentes.
Karagmuruk primeiro, Antalyaspor depois na recôndita Liga Turca como laboratório de experiências, o salto para o Nice em 2023-24 para se tornar a coqueluche dos hipsters tácticos dessa Europa fora após início arrebatador: zero derrotas até à 14.ª jornada, segundo lugar a um mísero ponto do PSG e uma defesa de betão, com apenas quatro golos sofridos nesses treze jogos, resultado dumas impressionantes 10 clean sheets no período.
Ganhou o reconhecimento que o talento merecia. Acabaria a Ligue 1 em quinto lugar, falhando o objectivo Champions, mas não devido à capacidade defensiva, que se manteve impecável, porque acabar com 29 golos sofridos na Liga Francesa significou a quarta melhor defesa do Continente, só atrás de Inter (22), Bayer Leverkusen (24) e Real Madrid (26), todos eles campeões.
Ingloriamente guarda-redes de pouca expressão, a injustiça das capacidades técnicas não se equivalerem à capacidade de ler o jogo e organizar a sua primeira linha.
Farioli viu depressa que não dava para aquilo – gesto decisivo na carreira de outros grandes como Eriksson e Mourinho – e foi para a Faculdade dar vazão ao seu raciocínio obsessivo das possibilidades do jogo, tirando primeiro Filosofia e Ciências do Desporto depois em Florença, para acabar a dissertar sobre as metafísicas do relvado: Filosofia del Gioco. L’estetica del calcio e il ruolo del portiere, ou a Filosofia do Jogo. A estética do futebol e o papel do guarda-redes. As horas de solidão passadas encostado a um poste passavam para o papel e provocavam espanto pela desenvoltura.
Depois do papel, o documento Word e publicações online sempre abordando as mesmas preocupações e perspectivas como pensador do jogo valeram um telefonema inesperado em 2017, quando já trabalhava no Qatar para a Academia Aspire. ‘Tá lá? E do outro lado responderam-lhe que eram da equipa técnica de De Zerbi, e que sim senhor, és cá dos nossos. Vem trabalhar connosco.
Por isso não é de estranhar as parecenças no tipo de futebol instruído. A construção em 2-3-2, com o médio defensivo sempre nas costas da linha de pressão e os 8’s a variar entre o apoio frontal para proporcionar a dinâmica de terceiro homem ou a explorar a zona entre central e lateral contrário; os laterais vêm dentro, activam em zona central como a gíria impôs no nome lateral invertido e os extremos ficam na largura, esperando a mudança de jogo repentino e terem espaço para o duelo individual.
Só que Farioli seja talvez mais conservador, no sentido da sua identidade italiana, que De Zerbi na forma como pressiona. O homem a homem em zona alta é feito na mesma, mas todos recuam assim que o adversário ultrapassa a primeira linha de pressão, organizando depois num bloco baixo e o mais estreito possível, fechando as pernas para não passar bola na zona central.
Para Amesterdão o jovem técnico tentou juntar a equipa técnica dos seus sonhos. Italiano só um e é mesmo o seu braço-direito: Daniel Cavaletto, que anda com ele desde os tempos de Karagmuruk, mas que já o tinha conhecido em Lucchese, em 2014.
É o homem das pessoas, do carisma, que trata dos principais aspectos organizacionais dentro e fora do relvado. «Temos uma grande ligação. Quando iniciei o meu trajecto independente em 2021, pedi-lhe que me acompanhasse como parte do staff técnico.Taticamente, o seu papel específico são os esquemas táticos defensivos, as bolas paradas ‘contra’. Além disso, traz-me capacidades humanas, liga pessoas, conecta-as, tem muita empatia.»[1]
Depois, amigos de cada proveniência – dois companheiros nas aventuras do Catar, como Felipe Sanchez Mateos, espanhol, analista do ponto de vista da perfomance individual, e Callum Walsh, galês, que se concentra na periodização física impondo a sua experiência de Premier League e selecção Turca; Um finlandês chamado Jarkko Tuomisto, que é seu treinador de guarda-redes desde a época passada no Nice, e o vídeoanalista é Osman Kul, que ajudou Farioli em Karagmuruk e colabora recorrentemente também com a Selecção Turca: «O seu trabalho é crucial, porque fazemos analisamos tanta coisa em vídeo: o nosso adversário, as nossas sessões de treino, os nossos jogos, todas as situações, quer ofensivas quer defensivas, e por aí fora.» Tudo gente jovem, nenhum passa dos cinquenta, o mais próximo é Tuomisto com 49. Três deles nem aos quarenta chegam. Ideias novas requerem ambiente respirável, sem mofo.
O caminho para o sucesso faz-se melhor se caminharmos ao lado dos que são parecidos connosco, parece óbvio. Só a troca de ideias entre indivíduos com o mesmo código de valores e convicções permite bases sólidas de projectos duradouros. E quem os segue convém ser da mesma laia: talvez por isso, e pela urgência de reformulação dum clube abananado desde a saída de ten Hag e os escândalos que levaram à demissão de Overmars e outros membros da direcção, o plantel construído por Farioli se baseie sobretudo na juventude.
Do onze que vai parecendo o preferido do treinador italiano (Pasveer; Rensch, Sutalo, Baas e Hato; Henderson, Taylor e Fitz-Jim; Traoré, Brobbey e Godts) só três cotas, três elementos acima dos 25. Talvez por isso a manutenção do quarentão Pasveer a ordenar uma defesa onde Sutalo, de 24 anos, é o mais velho, ou o ascendente imediato de Jordan Henderson, que se tornou capitão em tempo recorde.
Para suprimir a saída do outro líder, Bergwijn, aquele que impediu a transferência de Galeno para o Al-Ittihad, chegaram à Cruyff Arena o gigante Weghorst, que finalmente mete no currículo um gigante do seu país, ou Davy Klaasen, que se cansou rápido de ser reserva em Milão, dois trunfos na liderança dum grupo onde a média das idades ronda os 23 anos.
Farioli tem feito de tudo para pôr novamente o Ajax na rota da glória e sabe que para domar a rebeldia dos mais novos é preciso a total identificação com a instituição, primeiro, e grandes doses de disciplina depois.
Por isso desde o início da pré-época que os imberbes da equipa estagiam no centro de treinos, em camaratas de beliches e têm hora certa para o descanso, com as luzes a apagar em determinado horário. No passado domingo, além do regimento sério, houve visita de estudo ao Museu do Ajax, para ver na glória europeia do passado a vergonha do actual momento.
E mesmo apesar de certos problemas, como a sucessiva greve dos polícias em jogos do clube, que já levou ao adiamento do clássico com o Feyenoord e ao confronto com o Utrecht, a coisa tem saído bem, sobretudo na Liga Europa, onde foram ultrapassadas três eliminatórias (Vojvodina, um confronto épico em penáltis com o Panathinaikos e Jagiellonia) para chegar à Fase de Liga para lhe calhar em sorte um calendário terrível, com Lazio, Galatasaray, Besiktas e Real Sociedad pelo caminho.
Teste de fogo para Farioli, que experimenta agora impor as suas ideias no limiar da elite europeia e pôr à prova as suas próprias convicções num patamar inédito. Muita pressão, mas tem tudo para correr bem – e assim acredita um dos gémeos De Boer, o Ronald, campeão europeu pelos ajacied e com digna carreira internacional, que foi a quem Farioli pediu para fazer de mediador cultural.
Foi a Ronald que pediram para dirigir a visita orientada pelo museu, gesto e iniciativa que valeram palavras de grande admiração a Farioli – que parece já ser consensual entre os directores. «Pessoas que muito estimo, que tenho em grande consideração e que normalmente são muito críticas e exigentes, estão neste momento muito optimistas com o treinador. A forma como se apresenta, o quão empático é, a maneira como tenta organizar toda a estrutura. Ou seja: está agora a começar, mas é incrível a forma como ele, enquanto jovem treinador, conseguiu introduzir dinâmicas tão positivas no grupo e uma boa ‘vibe’ em todo o clube»…[2]
[1] https://www.ajaxshowtime.com/hoofdnieuws/farioli-stelt-technische-staf-voor-geprobeerd-een-staf-samen-te-stellen-die-mij-een-betere-coach-maakt?twit=934
[2] https://www.voetbalprimeur.nl/nieuws/1226962/de-boer-als-gids-bij-ajax-uitje-mensen-zijn-ongelooflijk-positief-over-farioli.html
