«Já vivi grandes coisas, mas nada comparado com isto. Tenho um sentimento diferente com este clube, cresci aqui, serei adepto do Oviedo toda a minha vida e isto é muito especial», disse o internacional espanhol Santi Cazorla à DAZN Espanha no fim do jogo contra o Mirandés, e que assinalou o regresso do Real Oviedo à primeira liga espanhola.
Esta declaração do talentoso médio espanhol, é bem reveladora do amor que sente pelo seu clube do coração, clube esse a que quis sempre regressar, tendo contribuído de forma decisiva para a tão ansiada subida de divisão ao patamar principal do futebol espanhol.
Uma espera de quase 24 anos, e cujo desfecho final, emocionou todos os adeptos presentes no Estádio Carlos Tartiere, em Oviedo. O Real Oviedo tinha perdido a primeira mão do play-off contra o Mirandés, a equipa sensação desta época da segunda liga espanhola (competição extenuante, com 42 jogos na fase regular e mais quatro jogos de play-off de promoção entre os terceiros e os sextos lugares), que praticou um futebol de elevadíssima qualidade, e que merecia ter tido o prémio de uma inédita promoção à divisão principal.
Na segunda mão do play-off, o Oviedo teve de recuperar de uma desvantagem de 1-0 (o que representava um resultado de 2-0 a favor do Mirandés no cômputo geral da eliminatória), mas embalados pelo seu líder Santi Cazorla (que regresso incrível do seu filho pródigo!), conseguiu empatar ainda antes do intervalo na marcação de uma grande penalidade, marcar um segundo golo no início da segunda parte por intermédio de Ilyas Chaira e aguentar a pressão exercida pela equipa do Mirandés durante mais de 40 minutos.
O jogo ia-se decidir num prolongamento impróprio para cardíacos. Já sem um esgotado Cazorla em campo, a equipa teria de se transcender futebolisticamente para poder levar de vencida a entusiasmante equipa do Mirandés.
Um estádio Tartiere com um ambiente absolutamente arrebatador, foi o tónico necessário para que a equipa asturiana, conseguisse encontrar o golo que lhes permitiu ser novamente equipa de primeira divisão.
Um golo de belo efeito do veterano avançado espanhol Francisco Portillo (que tem um impressionante registo de cinco subidas de divisão com cinco equipas diferentes) desatou a loucura entre todos os adeptos presentes.
Com o apito final do árbitro, assistiu-se a um momento de emoções desenfreadas, sendo que o auge foi mesmo o momento no qual o seu timoneiro Santi Cazorla pegou no microfone (admiráveis dotes vocais do médio espanhol, diga-se de passagem), e entoou acapella a música “Volveremos” do cantor Melendi, que já é um hino entre todos os adeptos do emblema asturiano.
«Não podemos viver assim, a ver a nossa equipa sofrer. Levamos-te nos nossos corações. E é tão difícil ver-te assim. Voltaremos à Primeira Divisão, porque o merecemos, a equipa e os seus adeptos. Voltaremos, voltaremos! Voltarei a cantar o teu nome. Hala Oviedo! Real Oviedo! A tua gente nunca se esconde», é um dos excertos desta icónica canção, e que muito bem representa a travessia no deserto de um clube que esteve perto de desaparecer, e que tal só não aconteceu, porque os seus adeptos foram inexcedíveis, nunca deixando de apoiar a sua equipa, mesmo quando o clube desceu ao que podemos assemelhar a uma quarta divisão nacional.
Durante estes 24 anos, o Real Oviedo viveu uma autêntica descida aos infernos, e que em muito se pode explicar pela catastrófica gestão financeira do clube durante várias décadas.
Depois de ser despromovido duas vezes consecutivas, a equipa asturiana sofreu graves problemas económicos, que, juntamente com uma profunda falta de apoio institucional da autarquia da cidade, redundou na incapacidade da equipa de pagar salários aos seus jogadores.
O clube chegou a descer à quarta divisão do futebol espanhol, na época 2003-04. As dificuldades financeiras foram-se sucedendo, até que na temporada 2012-13, o Real Oviedo apelou aos adeptos para comprarem acções do clube. Naquele momento, Santi Cazorla foi um dos jogadores que ofereceu o seu apoio financeiro e ajudou a salvar o clube da falência.
A 12 de Julho de 2022, o mexicano Grupo Pachuca tornou-se o acionista maioritário do Real Oviedo, e as finanças do clube começaram a estabilizar e a conseguir ter plantéis mais competitivos.
E a chegada de Paunovic ao comando técnico do Real Oviedo em fins de Março, está diretamente associada a esta nova liderança do clube asturiano. Paunovic vinha de treinar os mexicanos do Chivas Guadalajara e do Tigres, e a direção do Grupo Pachuca encabeçada pelo seu presidente Jesús Martínez, decidiu nomear o técnico sérvio, que teria assim a possibilidade de uma redenção (explicarei mais adiante) tão inesperada quanto merecida.
Poderá ter sido apenas uma coincidência, mas a descida de divisão do Real Oviedo na época 2000/2001 poderá explicar-se igualmente pela perda inesperada da estrela maior do seu plantel: o talentoso médio-ofensivo eslovaco Peter Dubovsky (que morreu tragicamente quando se encontrava de férias após uma queda fatal durante uma visita a umas cataratas na Tailândia).
Para o seu lugar foi contratado o médio sérvio Veljko Paunovic (cedido pelo Mallorca), e quis o destino que fosse o mesmo Paunovic o responsável por reconduzir o Real Oviedo à primeira divisão. Muitos recordarão aquela foto de um Paunovic desolado no ano de 2001, sentado sozinho no banco de suplentes e de olhar perdido quando se consumou a descida de divisão do emblema espanhol.
24 anos depois e com um percurso quase imaculado (apenas uma derrota em 14 jogos no comando técnico do Real Oviedo), o futebol trouxe-nos mais uma daquelas histórias fascinantes, demonstrativas daquela máxima de que “o futebol dá-te sempre uma segunda oportunidade”. Um momento de absoluta justiça poética, e bastante merecido para o técnico sérvio.
Se Paunovic foi um dos grandes obreiros desta subida de divisão, a mesma jamais poderá ser entendida sem o contributo de Santi Cazorla.
O menino a quem tinham roubado o sonho de se estrear pela equipa principal do “seu” Real Oviedo. O menino que pouco antes de completar 17 anos, via a sua trajetória abruptamente terminada no clube da sua vida, fruto da extinção dos escalões jovens da equipa, pelos motivos anteriormente mencionados.
Aquele menino teve de deixar as suas raízes para lutar pelo seu sonho e encontrar um novo clube para completar a sua formação e para poder continuar a desenvolver-se como jogador, sendo que voltou a encontrar a felicidade e o seu grande propósito nos espanhóis do Villarreal.
Um jogador de grande capacidade técnica, exímio em lances de bola parada, com um grande remate de meia distância e assinalável visão de jogo, foi um dos grandes jogadores da geração de ouro do futebol espanhol, que ganhou dois Europeus seguidos em 2008 e 2012 e um Mundial em 2010, competição que não consta do currículo de Cazorla devido a uma desafortunada hérnia que o impediu de disputar esse Mundial da África do Sul.
Por todo o excelente futebol que praticou entre os anos de 2007 e 2011 ao serviço do Villarreal, culminando numa época fantástica pelo Málaga no ano 2011/12 (a quem ajudou a conseguir um incrível quarto lugar na classificação e a respetiva qualificação histórica para a Champions League), Cazorla merecia ter sido campeão do mundo.
Diria até que Cazorla teria sido titularíssimo em qualquer outra seleção durante esse período, se não tivesse nascido em Espanha. Da sua geração figuravam nomes como David Silva, Cesc Fàbregas, Xavi, Iniesta, Busquets, Xabi Alonso (entre outros).
A qualidade de todos os médios anteriormente mencionados, foi o que impediu Cazorla de ter ainda mais protagonismo, mas nem por isso deixou de ser um jogador extremamente útil e importante para Luis Aragonés e Vicente Del Bosque.
E tem um mérito descomunal o que Cazorla conseguiu não jogando em nenhum dos colossos espanhóis ou europeus, o que é bem demonstrativo da qualidade absurda do jogador espanhol.
Esse grande desempenho no Málaga e no Euro 2012, valeu-lhe uma transferência para os ingleses do Arsenal, onde brilhou a grande altura nas três primeiras épocas, tendo ajudado o clube inglês a conquistar duas Taças de Inglaterra.
Pode parecer curto ter conseguido apenas esses dois títulos de grande expressão ao serviço dos londrinos, mas foi por volta dessa altura que começaram-se a registar os investimentos milionários de clubes comprados por magnatas russos e árabes, como foram o caso do Chelsea e do Manchester City.
Na época 2015/2016, tudo mudou na carreira do pequeno Santi, devido a um autêntico calvário de lesões que Cazorla começou a acumular no seu pé direito. Para termos uma noção do histórico clínico do pequeno mago asturiano, Cazorla esteve praticamente dois anos sem jogar entre os anos de 2016 e 2018, devido a uma lesão gravíssima.
Uma operação que não foi bem sucedida, tendo apanhado uma infeção no hospital e uma bactéria que “comeu” quase 10 (!) centímetros do seu tendão de Aquiles. Foi operado uma e outra vez (num total de oito operações) e, depois de seis épocas ao serviço dos “gunners”, regressou ao Villarreal, o clube onde se formou.
«Ao princípio jogava com dor, estive assim um ano e meio, mas chegou a um ponto em que a dor era insuportável. Num jogo da Liga dos Campeões, nunca me vou esquecer, chorei em campo, não dava para aguentar e pedi a alteração», disse Cazorla nessa altura, recordando o momento em que esta lesão gravíssima colocou em risco a sua carreira de futebolista profissional, e onde a tal bactéria poderia ter tido repercussões devastadoras para a sua vida pessoal, tendo estado na iminência de ter a sua perna direita amputada.
Mas Cazorla não se rendeu, assumiu os riscos e não desistiu de continuar a jogar futebol e já nessa altura, diria que queria acabar a sua carreira jogando no seu clube do coração, Real Oviedo, pois não queria pendurar as botas sem haver jogado uma única vez pelo seu clube de infância.
Quando foi anunciado no Real Oviedo no Verão de 2023, Cazorla vinha de uma experiência no futebol qatari (ao serviço do Al Saad), e apesar de ter propostas mais suculentas vindas do futebol árabe, aceitou o salário mínimo exigido (foi anunciado que receberia apenas 91.000 euros por época) pela Liga Espanhola de Futebol Profissional, para poder ingressar no seu clube de infância.
Esta é sem dúvida uma das histórias mais bonitas que o futebol mundial nos trouxe nos últimos anos. Se havia jogador que merecia tamanha alegria, era Santi Cazorla. Por tudo o que teve de ultrapassar, pelo exemplo que sempre foi dentro e fora dos relvados, por demonstrar que ainda há amor pela camisola, e porque o futebol teria de ser novamente justo com ele.
Estou em crer que até os adeptos do Sporting Gijón (grande rival da região), deixaram de parte essa máxima rivalidade por uns breves instantes e conseguiram alegrar-se por Cazorla, seguramente um dos jogadores mais consensuais a nível mundial.
Sim, Cazorla teve uma carreira muito boa e foi bicampeão europeu de seleções, mas como o próprio disse, «Não há nada que se compare com subir de divisão com o Oviedo. O amor que sinto por este clube está acima de qualquer coisa».
E o melhor é que aos seus 40 anos (completa 41 em Dezembro), o médio espanhol ainda se mostra disponível e com vontade de continuar a jogar neste tão desejado regressado do seu Real Oviedo aos grandes palcos do futebol espanhol.
«Enquanto tiver vontade, o clube pode contar comigo. Não quero ser um fardo, sempre o disse. Agora é altura de desfrutar, depois falamos sobre isso».
Independentemente do que venha a acontecer, Cazorla já é um herói em Oviedo, tendo agora uma das praças mais emblemáticas da cidade com o seu nome “Plaza de América Santi Cazorla”, num gesto bastante nobre por parte do alcalde de Oviedo.
Como confesso admirador do seu futebol, quero muito continuar a vê-lo espalhar a sua classe pelos relvados do futebol espanhol, mas caso isso não venha a acontecer, Santi Cazorla já cumpriu a missão de levar o clube dos seus amores de volta à Primeira Liga e já nos podemos congratular de ter assistido ao seu melhor truque.