
Se colocarmos Alfonso Murube em qualquer motor de pesquisa verificamos que se trata de um estádio situado no continente africano, não muito longe das portas do mar Mediterrâneo. Neste recinto serão disputados pelo menos 21 encontros da La Liga 2 na próxima temporada. Apesar de não ficar na Europa, Ceuta e Melilla são Cidades Autónimas que pertencem ao território espanhol, mesmo estando integradas em outro continente. Foi na primeira destas que ocorreu um pequeno milagre na temporada que se encontra perto do fim.
Ao olharmos para as equipas que compõem a Primera RFEF, tanto no Grupo 1 como no Grupo 2, saltam-nos à vista nomes de equipas histórias como o Nàstic, a Cultural Leonesa, o Real Murcia ou até mesmo o Recreativo de Huelva (que desceu de divisão), o decano do futebol espanhol. O Ceuta esteve integrado nesta divisão e apresentava-se como um candidato a obter um bom resultado, depois de conseguir atingir os playoffs de promoção em 2023/24.

A equipa chamou a atenção dos críticos na sua primeira época no escalão, quando conseguiu uma reviravolta pouco antes vista na história. O conjunto terminou a primeira volta com somente oito pontos, mas a chegada de José Juan Romero trouxe estabilidade e o técnico transformou-se acima de tudo num pilar de um projeto.
Poucos esperavam a temporada espetacular que ocorreu em 2024/25. O Ceuta conseguiu na Primera RFEF um total de 67 pontos, fruto de 17 vitórias, 16 empates e somente cinco derrotas, fechando o Grupo B na liderança e conseguindo a promoção para a La Liga 2. A cidade já não tinha representatividade neste escalão desde 1980/81. O futebol profissional está assim oficialmente de regresso a esse pedacinho de África que faz parte de um país europeu.
Porém, a época estava longe a correr de feição até ao dia 17 de novembro, dia em que o presidente do clube desceu aos balneários e perdeu a cabeça, ouvindo-se gritos, depois de apenas duas vitórias em 10 encontros, abrindo a porta de saída a todos os jogadores no mercado de inverno. Tal ação contou com resultados positivos, já que a equipa conseguiu 24 encontros sem perder, sendo apenas derrotada na última ronda da Primera RFEF, numa altura em que a promoção já estava garantida.

O Ceuta logrou inclusivamente a conquista do título da divisão, levando a melhor sobre a Cultural Leonesa por 4-3 (depois de um 2-2 na primeira mão), com um golo de Rodri Ríos (um dos grandes heróis do plantel e da história recente do clube), aos 90+2’.
O plantel do Ceuta era dos mais apetrechados do escalão. Tal como foi referido antes, embora não fosse um candidato óbvio a vencer o campeonato, pedia-se uma boa classificação. O elenco estava composto por nomes conhecidos como Cristian Rodríguez, Rubén Diéz, Aisar (natural da cidade e visto como um dos jogadores com mais potencial na divisão), Kuki Zalazar e Dani Aquino e tinha que almejar resultados positivos. Um plantel que contou com um líder claro, Pedro López, que não conseguiu ser um titular indiscutível, devido à forte concorrência de Guillermo Vallejo na posição de guarda-redes. Recordar que Chrisatus Uche representou o clube até ao último verão, acabando por ser um dos destaques da La Liga em 2024/25, depois de ter custado 500 mil euros.
Possivelmente o grande herói desta história é Luhay Hamido, presidente do Ceuta. O dirigente ficou conhecido no panorama nacional pela sua participação na versão espanhola do Big Brother, mas acabou por chegar à glória na área desportiva. Contudo, o mesmo já admitiu que o caminho não foi fácil e tratou-se de um processo demoroso, com toda a dedicação à mistura (foi inclusivamente fisioterapeuta do clube durante um dia, no quinto escalão, quando a pessoa responsável não conseguiu viajar). Luhay Hamido não teve medo de colocar as mãos à obra e trabalhar, sempre de braço dado com os adeptos, com quem mantém uma relação estupenda, sem qualquer tipo de preconceito em misturar-se com todos. Afinal, o grupo encontrava-se a remar para o mesmo lado, pelo regresso ao futebol profissional.

Abaixo de Luhay Hamido surgem duas figuras de relevo. Edu Villegas, diretor desportivo, e José Juan Romero, treinador. Ambos contam com um contrato válido para a próxima temporada e terão que montar uma equipa competitiva para disputar a La Liga 2, pautada pelo seu equilíbrio e surpresas.
José Juan Romero é um dos segredos mais bem guardados do futebol espanhol. O técnico de 50 anos cresceu na equipa B do Real Bétis, depois de ter realizado parte da sua carreira no Gerena, onde foi considerado o Pep Guardiola local. Responsável por lançar vários talentos nos andaluzes, regressou ao Ceuta em 2022, para salvar a entidade de uma descida praticamente certa (eram 14 pontos para a linha de água). A partir de aí, foi sempre a crescer, atingindo finalmente as competições profissionais. O treinador já admitiu que tem vários jogadores da zona de Sevilha debaixo de olho e não será de estranhar que alguns elementos que orientou no passado rumem a África na próxima janela de transferências.

O verão vai ser de mexidas em Ceuta. Além do plantel, que terá que sofrer algumas alterações, o Alfonso Murube vai contar com uma remodelação. O estádio não tem as melhores condições e terão que existir de mudanças na estrutura, para que a tecnologia do VAR possa ser implementada (a possibilidade de começarem a época no Nuevo Mirandilla, em Cádiz, é bem real), por exemplo. Luhay Hamido contará com meses atarefados, já que a missão que se segue não é simples. Afinal, o Ceuta vai participar numa competição de 42 jornadas (como mínimo), além da presença na Taça do Rei. A equipa terá que receber formações profissionais que nunca viajaram até África em 21 ocasiões, o que promete ser uma semana marcante para os oponentes.
Já o plantel está mais do que habituado a viajar por Espanha regularmente. Para chegar ao norte do país, em alguns casos, terão que usar barco, comboio, avião e autocarro. Trata-se de uma questão de adaptação para os novos jogadores, mas o sonho do futebol profissional leva a que tudo isto pareça algo banal.

Os adeptos não podem pedir um feito parecido com o atingido em 2024/25. A instituição não tem as condições necessárias para lutar por uma promoção e não fará seguramente um all-in completamente desnecessário. A opção pela estabilização é a via mais óbvia e a que faz mais sentido, tendo em vista os passos que foram dados até ao momento.
Ceuta é uma cidade especial. Trata-se de um local com várias culturas, sendo que em vários aspetos as mesmas entram em conflito. Contudo, o futebol consegue mover paixões e criar laços onde parece ser impossível que os mesmos existam. No Alfonso Murube há várias religiões e diferentes nacionalidades. Contudo, há apenas um clube e todos cantam a uma só voz.
