«A arbitragem tem de se mostrar mais aos adeptos para matar os fantasmas» – Entrevista BnR com Duarte Gomes

    – Kickoff, um projeto pedagógico no futebol –

    Bola na Rede: Como te surgiu a ideia de criar o Kickoff?

    Duarte Gomes: Quando acabei a carreira, pensei no que ia fazer em termos desportivos. Tenho um negócio pessoal, uma pequena empresa, e tenho a minha vida orientada de outra forma mas queria ficar ligado ao futebol, onde estava desde os 18. Quando recebi convites para estar ligado à comunicação social, percebi logo que seria muito difícil na própria comunicação social eu conseguir saciar esta vontade, que sempre tive até quando estava no ativo, de humanizar o árbitro, de explicar às pessoas o erro. Chamem-me incompetente, digam que eu não tenho jeito nenhum, digam que eu não sou nada bom para isto mas não me chamem desonesto.

    Bola na Rede: O objetivo foi, desde início, ajudar a melhorar a cultura desportiva?

    Duarte Gomes: Sim, é esta pequena grande diferença, a tal questão cultural, de tentar pôr no adepto, na imprensa e até nos agentes desportivos o chip de que erramos, sim, somos uns melhores e outros piores, mas não somos más pessoas nem somos desonestos. Eu sabia que muito dificilmente ia consegui-lo na imprensa porque esta está formatada para vender a análise da decisão. Embora esteja na SIC Notícias, no Expresso e n’A Bola, que são três espaços muito bons para ainda conseguir fazer alguma pedagogia porque tenho tempo de antena e espaço para escrever nesse sentido, não chegava. E o Kickoff vem suprimir tudo isso.

    Fonte: Kickoff – Duarte Gomes

    Bola na Rede: Tens, por assim dizer, total liberdade editorial?

    Duarte Gomes: Exato. Eu faço o que quero, eu digo o que quero, eu estou como quero e faço a pedagogia que quero. Eu mostro os lances, eu analiso os lances, dou a cara, tudo de frente e sem esconder rigorosamente nada. Vamos falar do erro, não vamos escamotear, mas vamos falar com elevação. Claro que quando abordas os lances mais polémicos, levas com toda a gente. Levas com aqueles “doentes” todos nos primeiros dias que só querem ouvir a explicação como arma de arremesso. Não querem a explicação para aprender. No fundo, o projeto quer mudar um bocado a forma de estar das pessoas e a mentalidade. Se me disseres assim “Vais conseguir?”, não, isso é lírico, como é óbvio, mas o que me interessa a mim é fazer a minha quota-parte e eu durmo descansado quando sei que tentei.

    Bola na Rede: Tens algum tipo de apoio ao Kickoff?

    Duarte Gomes: O Kickoff é um projeto profundamente amador, unicamente gerido por mim, sem um único cêntimo associado exterior, sem nenhum patrocínio e já tenho mais de 5.000 artigos escritos e centenas de vídeos. Dá-me muito gozo nestes quatro anos ter construído isto sozinho e hoje perceber que o Kickoff tem cerca de 230.000 seguidores nas redes sociais todas.

    Bola na Rede: Este projeto aumenta a tua exposição. Que desafios é que isso te traz?

    Duarte Gomes: Neste momento sou profissional “de comunicação”, no sentido dos meios de comunicação social onde colaboro e onde tenho um espaço grande. Eu tenho uma obrigação muito grande de ser muito exigente comigo próprio em relação à informação que dou. Isto obriga-me a ser um estudioso atento das leis de jogo, das recomendações que os árbitros recebem e por isso mantenho-me muito ligado a ex-colegas meus porque quero ter sempre a visão muito próxima do relvado.

    Bola na Rede: Essa visão vai-se perdendo com o passar da idade e o afastamento dos relvados?

    Duarte Gomes: Sim, é muito normal nós perdermos alguns feelings e tornarmo-nos muito automatizados em relação às leis de jogo. E eu não quero perder este contacto com a realidade terrena. Muitas vezes o que eu vejo na televisão não é o que de facto aconteceu em campo, não tem aquela dimensão, é muito mais aceitável em campo. E eu não quero perder essa capacidade de análise e por isso falo com muitas pessoas, leio muito as leis de jogo, sou um estudioso profundo para nunca errar.

    Bola na Rede: Recebes muitas solicitações para esclarecer lances específicos?

    Duarte Gomes: Sim e é algo que me deixa muito feliz e muito honrado. Tanto de jogadores, como treinadores, presidentes de clubes, de estruturas associativas, de adeptos, comentadores, jornalistas de outros canais. E eu nunca neguei um esclarecimento a quem quer que fosse, porque o Kickoff é um projeto de inclusão. Esta é precisamente a minha ideia, que todas as pessoas conheçam e percebam as regras.

    Bola na Rede: Os casos recentes da colisão de Kritciuk com Nanu e a jogada entre Luís Diaz e David Carmo são a prova das dores de crescimento do VAR? Mostram que este ainda não resolve tudo no futebol?

    Duarte Gomes: São. Nos dois casos, tecnicamente, não há infração e num dos casos houve uma intervenção com base num pressuposto de uma recomendação que foi mal aplicado. Eu sei que isto parece muito feio dizer assim porque isto teve tanto mediatismo e passou tanta raiva e ódio para o exterior que quase não se consegue perceber a decisão. Eu sou dos que claramente defendi, assumi na altura isso e teve um preço caro porque fartei-me de ser chateado por mensagens por causa disso, que para os dois lances não havia falta. Mas, se olhares bem para o lance do Luís Diaz, na verdade não choca muito que exista uma interpretação perante uma entrada completamente fortuita de um jogador sobre outro, com uma perna partida, que origine um vermelho.

    Bola na Rede: Porque na verdade houve uma ação, houve uma consequência e uma perna partida.

    Duarte Gomes: Sim. Nós não estamos a falar de uma situação em que não se passou rigorosamente nada e de repente sai um vermelho. Nós não estamos a falar de um erro completamente insano. É um erro, sim, porque aquele lance não tinha que ser penalizado. É um remate à baliza com um desfecho infeliz, como no outro é uma colisão entre dois jogadores num movimento contrário com desfecho infeliz. Agora, a loucura que se gerou por causa disto, a raiva que foi exponenciada nas redes sociais. Houve um aproveitamento muito grande para capitalizar num erro algumas coisas e hiperdimensionar, pressionar e condicionar e é mais do mesmo na arbitragem. Não é nada de novo, é transversal, não é apenas um protagonista. Hoje são uns, amanhã são outros, depende da classificação, do resultado, da insatisfação dos adeptos e é isso que tem que parar no futebol. É uma forma de estar muito pequenina.

    Bola na Rede: Estes casos geraram ameaças e ofensas aos árbitros em questão e aos seus familiares. Como é que se protege estas pessoas?

    Duarte Gomes: Os árbitros foram uma perfeita desilusão nesta matéria toda porque mostraram que não têm espírito de classe. Ser árbitro é também estar na arbitragem e eu tenho a sensação que o meu quadro de colegas atuais, que têm todo o meu respeito individualmente enquanto pessoas e na sua competência técnica, falharam muito no aspecto do associativismo, da sua capacidade de se reunir para darem um murro na mesa, defenderem publicamente o colega que foi exposto a um conjunto de ameaças muito feias e a sua família, e de marcarem uma posição. Não o fizeram. E também não percebi que houvesse da parte da estrutura uma defesa férrea nesse sentido. Houve muita gente a falhar na forma como não soube dizer “Nós não admitimos isto”.

    Bola na Rede: Quais são as consequências dessa inércia?

    Duarte Gomes: O problema de nada se ter feito é que estão a convidar a que estas coisas voltem a acontecer. Quando há uma tomada de posição e uma chamada de atenção para que as coisas não se repitam, quando se repetem pode haver uma consequência maior. O que aconteceu foi feio. Não foi só o número do árbitro que foi para a rua, o meu número de telefone também foi partilhado, o de vários comentadores, jornalistas. Foi um massacre por mensagens no Whatsapp, telefonemas, ameaças. Já nem digo que os culpados são os acéfalos que fazem tudo isto, esse são os manietados, mas quem de facto permitiu que isto acontecesse. Acho que a arbitragem não soube reagir bem a este episódio. Garanto-te que a geração anterior de árbitros, com Olegário Benquerença, Pedro Proença, João Ferreira, Paulo Baptista e tantos outros nomes, isto nunca teria acontecido mais. Nós tínhamos feito logo uma reunião em Leiria, tínhamos juntado as tropas, tínhamos defendido publicamente o nosso colega, dávamos um murro na mesa e à próxima que houvesse era greve geral.

    Bola na Rede: Este mês escreveste numa crónica que “Há, no atual quadro de árbitros, incompetência a mais.” Como é que isto acontece?

    Duarte Gomes: É geracional. Acontece também com os clubes, há gerações em que são promovidos jovens para seniores que não estão muito preparados para alta competição. Temos que aceitar isto com naturalidade. Esta crítica, na altura, deixou os meus colegas muito apreensivos mas é verdadeira. Quando digo incompetência a mais não é de muitos mas é a mais para o que é suposto numa prova profissional onde cada resultado desportivo tem um impacto tremendo a todos os níveis.

    Bola na Rede: Há potencial nos árbitros mais jovens?

    DG: Acho que há uma geração de árbitros neste grupo com talento, com competência, com experiência, que têm que passar pelo processo normal de formação, de aprendizagem e de habituação a esta realidade. Mas há também demasiada incompetência. Lamento imenso, é a minha opinião. Nunca levaria isto para a questão da premeditação, nunca levarei e não permito sequer que se leve. Agora, em termos de incompetência e competência técnica o quadro é misto e nem todos os árbitros são altamente competentes.

    Bola na Rede: Qual a melhor lição que o futebol te ensinou?

    Duarte Gomes: Dentro do futebol, a arbitragem ensinou-me mais. É a grande lição de vida da minha vida, porque estive lá dos 18 aos 43 anos. Ser resiliente, não baixar os braços, nunca deixar de acreditar, ser muito forte ao impacto exterior negativo, ser resistente em relação a tudo o que é feio, trabalhar em equipa. A partilha de conhecimento com os mais novos, saber sorrir quando apetece bater, saber aguentar o insulto e saber virar as costas no momento certo. Saber reagir da forma certa, nem sempre fiz isso mas é uma aprendizagem.

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    Frederico Seruya
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    "It's not who I am underneath, but what I do, that defines me" - Bruce Wayne/Batman.                                                                                                                                                O O Frederico escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.