«O jogador não passa pelas mãos do Jorge Jesus e continua o mesmo, é impossível» – Entrevista BnR com Filipe Oliveira

    “Eu tinha acabado de ter uma carreira de 24 anos, em que acho que joguei em bons e clubes e comecei a lavar carros.”

    Bola na Rede: Quando acabas a carreira a oportunidade do scouting aparece logo, ou pensaste noutros caminhos?

    Filipe Oliveira: Eu fiz um período de cerca de três meses que parei mesmo. Depois o meu pai abordou-me e disse “não achas que já chega?”, eu disse “tens razão, já chega de férias, também já estou saturado”. Ele perguntou-me o que ia fazer, e eu disse-lhe que naquele momento não sabia, no sentido, sei o que quero, mas vou-me preparar-me para isso. Ele disse “pronto, vais começar a trabalhar comigo”. O meu pai tem uma empresa de automóveis e foi a minha primeira experiência pós-futebol, foi na empresa dele. A empresa tem vários sectores: administração, chaparia, pintura, eletricista, mecânica, etc. e quando eu comecei, é curioso, e eu não tenho vergonha, nem tão pouco complexo, que as minhas raízes são de raízes humildes e crescimento pelo trabalho, a primeira coisa que fiz pós-futebol foi lavar carros. Isto foi na altura um choque para mim, porque o meu pai meteu-me na empresa dele, dentro destes todos setores, pôs-me a lavar carros. Eu tenho um respeito enorme pelo meu pai, que é o meu melhor amigo, eu perguntei-lhe “porque é que me vai pôr a lavar carros”. Ele disse-me, se um dia queres fazer parte da administração, tens de perceber e entender o que é passar por todos os setores, então vais começar pela lavandaria. Ou seja, eu tinha acabado de ter uma carreira de 24 anos, em que acho que joguei em bons e clubes e comecei a lavar carros. Eu aceitei aquilo como um desafio. Primeiro porque não havia uma área que eu não sabia trabalhar, não sabia ser mecânico, chapeiro, pintor, num escritório poder-me-ia movimentar melhor, mas o meu pai entendeu que não tinha ainda o traquejo para lá trabalhar, e eu vi aquilo como um paralelismo com o futebol. Eu tenho de dar uma oportunidade a vir para aqui, isto é um negócio de família, então eu para ter chegado a alta competição, eu tive de começar nos infantis, eu tive que começar com os exercícios de passar com a parte dentro do pé, com esta força. Eu juro-te, foi o mesmo pensamento, eu tenho de aprender isto do zero, se eu quero dar uma chance tenho de começar do zero. Basicamente passado outros três meses, que não deve ter sido mais, eu estava bastante desgastado, porque a empresa do meu pai tem um ritmo que é o ritmo do trabalho, não é nenhuma queixa, era o constatar uma realidade. Não me estava a identificar com o que estava a fazer, e não tem nada a ver com os lavar carros, porque eu ia percorrendo, gerindo, ia para a receção, ia fazendo outras coisas, mas eu não me estava a identificar com o que estava a fazer, sentia falta de sentir o futebol. Os meus próprios fins de semana e tudo, eram totalmente atípicos. Sábado e domingo eu tinha tempo para a minha família, o que é ótimo, mas para quem tinha feito o que fiz durante 24 anos era muito estranho. Aos fins de semana não tinha nada para fazer, faltava qualquer coisa, e então comecei-me a mover e a preparar neste período de três meses. Inclusive tinha-me inscrito no curso de treinador, tinha começado a fazer umas formações a nível futebolístico que me pareciam importantes para me dar outra bagagem. Aí surge o convite do Videoton para poder integrar, porque na altura em que saí para o Chipre, o Diretor Desportivo já na altura ele queria que eu terminasse a carreira e começasse a trabalhar na estrutura. Na altura tinha dito que não estava preparado para acabar a carreira. Acabou por se proporcionar, entrei no mundo scouting dessa forma, foi mais uma aprendizagem, tudo bem que eu tinha a base técnico-tática do jogo em virtude de ter já lá estado durante vários anos, mas faltava-me tudo o resto. Um conselho que eu dou a um ex-atleta, é exatamente essa, nós atletas, ex-atletas, temos bastante experiência a nível de campo, estar dentro de campo, mas não temos o mínimo de noção, ou temos pouca noção de como funcionar tudo fora de campo, tudo o que envolve um clube de futebol desde a estrutura, administração, de departamentos específicos, dos processos, um jogador de futebol está completamente out. E então foi para mim muito interessante de crescer e ter a oportunidade e dar os primeiros passos no scouting num clube que me identificava tanto. Para mim não era um trabalho, nunca senti que trabalhei para o Videoton, sempre senti que era uma missão minha, era um projeto com o qual me identifico, por isso eu vou fazer de tudo para ajudá-los. Acabou por se proporcionar no departamento scouting, tive a oportunidade de trabalhar com gente capaz, com um departamento muito bem organizado, um departamento mais bem organizado que a grande maioria dos clubes nacionais, com metodologia, estrutura, base, recursos humanos, isso para mim foi muito positivo. No período de dois anos mais ou menos que eu lá estive posso dizer que cresci imenso, eu entrei também com essa perspetiva, de dizer, “eu começo no 0, tudo o que poder absorver e evoluir vou abraçar”. Nunca parei, esta é outra das mensagens que deixo a ex-atletas, é nunca parar de aprender, de se formar. Nós infelizmente, a grande maioria dos atletas, em virtude de começar muito jovem como profissional, não tem base académica, e a base académica é importante, para adquirir conhecimento e estar a par do que está feito. Não posso evoluir se não souber o que os outros estão a fazer, para ter grau de comparação e arranjar soluções dentro daquilo que já existe. Como tal, fiz uma pós-graduação com a Liga, gestão e organização profissional, em parceria com a universidade católica. A Liga está a fazer um trabalho pioneiro, apesar de haver todo este ruido em relação à Liga, eu acho que eles têm feito um trabalho de excelência e pioneiro, porque têm dado a possibilidade de formar gente, dar a possibilidade de formar pessoas de qualquer tipo de background, seja académico, não académico, desportivo, financeiro, qualquer.

    Bola na Rede: Estás agora na Arábia Saudita, a trabalhar na área do scouting, como é que tem sido a experiência?

    Filipe Oliveira Eu neste momento estou a coordenar dois departamentos, o de observação e o de scouting. O de scouting é algo que não existe no mundo árabe, é um departamento onde o qual o clube não tem investido, e este clube, o Al-Wehda achou por bem ter alguém que pudesse explorar, dar feedback, criar base de dados, criar perfis de atletas, identificar o que há internamente. A experiência tem sido muito desafiadora, e as pessoas que cá estiveram têm muita facilidade de entender o que eu digo. O mundo árabe é muito diferente do nosso mundo europeu. Não digo melhor ou pior, é diferente. Esta realidade faz-nos sair constantemente sair da nossa zona de conforto, faz-nos ter de arranjar constantemente soluções, faz-nos constantemente questionar-nos sobre nós próprios, sobre a própria força mental que temos. Nesse aspeto esta experiência tem sido fenomenal e, recentemente, conheci um senhor francês que já trabalhou cá cinco e que me disse e tem sido a ideia geral: ” quem consegue trabalhar aqui, trabalha em qualquer parte do mundo”. Cada vez mais tenho consciência que isso é verdade.

    Bola na Rede: O Scouting veio para ficar, ou abres a porta a outros cargos, como treinador? 

    Filipe Oliveira: Não tenciono ficar pelo scouting, não é o objetivo principal, eu gostaria, não sei dizer quando, também não tenho pressa, nem tão pouco estabeleci uma lata limite, gostaria de ter a oportunidade talvez ser um diretor desportivo, no futuro. Acho que ainda tenho passos para percorrer, ainda há alguns pontos que tenho de adquirir, estou cada vez mais preparado para isso. O scouting foi a minha porta entrada pós futebol, estar fora de campo, progressivamente tenho acrescentado responsabilidade, cargo, funções, tenho diminuído a proximidade com a equipa, diminuído a proximidade com a estrutura, diminuído a proximidade com o diretor, com o presidente, com o topo da pirâmide do clube. Eu acho que isso é importante dentro do processo, é o tal entrar na empresa para lavar e depois poder vir a ser o dono da empresa, penso exatamente, e volto a dizer, foi uma aprendizagem enorme que tive por parte do meu pai e vou levar para o resto da vida. Não acredito, e cada vez mais tenho assistido a pessoas que tem partilhado publicamente essa ideia, eu não sou da opinião que eu bom ex-atleta será um bom treinador, será um bom diretor, um bom presidente, não acredito nisso, logico que há exceções. Devemos dar passos curtos num processo de crescimento, essa é a minha visão, e eu estou a tentar percorrer esses passos dentro do que me é permitido e possível, com as minhas dificuldades e condicionalismos, na vontade de poder evoluir e crescer. O futebol é um desporto dinâmico e tudo o que está à volta também, seja o scouting, o departamento jurídico, marketing, fisioterapia, o que quiserem, são departamentos dinâmicos e nós temos de nos adaptar constantemente e não parar. Adaptar, evoluir e crescer.

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    João Pedro Gonçalves
    João Pedro Gonçalveshttp://www.bolanarede.pt
    Quem conhece o João sabe que a bola já faz parte dele. A paixão pelo desporto levou-o até à Universidade do Minho para estudar Ciências da Comunicação. Tem o sonho de fazer jornalismo desportivo e viver todos os estádios.