Dos graffitis para o Guiness – Entrevista a MrDheo

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    MrDheo, portuense e portista, é um dos mais reputados graffiti writers portugueses. Já trabalhou em dezenas de países, entrou no Guiness World Records e o seu percurso tem uma ligação forte ao futebol. Ganhou protagonismo internacional quando foi à Colômbia retratar El Tigre Falcao ou quando personalizou umas chuteiras para o controverso Super Mario Balotelli. Participou, esta época, na festa de apresentação aos sócios do Futebol Clube do Porto e foi o responsável pelo “fresco” na entrada do Museu do clube recentemente inaugurado. O Bola na Rede foi tentar saber mais sobre o trabalho deste enorme talento.

    Bola na Rede: Há quanto tempo fazes graffiti? De onde surgiu o “bichinho”?

    MrDheo: Faço graffiti há 13 anos. Desde pequeno que mantenho o gosto pelo desenho. Aos 13/14 anos comecei a ouvir hip-hop, onde o graffiti é uma das quatro vertentes, e quando tive acesso a esta forma de expressão pela primeira vez senti uma identificação imediata, o que me levou a pesquisar informação para perceber o que era e como era. Daí à prática foi um instante. E mantive-me activo até aos dias de hoje.

    BnR: Recentemente foste a Abu Dhabi para participar num gigante graffiti colectivo que vai entrar no Guiness World of Records. Conta-nos mais sobre essa experiência.

    MD: O “O1NE” é um espaço de diversão nocturna construído este ano em duas cidades: Beirute (Líbano) e Abu Dhabi (Emirados Árabes Unidos). O proprietário quis arrancar com um projecto megalómano a todos os níveis e a parte da decoração das fachadas foi adjudicada a um artista holandês, que subcontratou uma equipa de 18 artistas para a executar, onde eu estava incluído. Em Maio, a equipa arrancou para Beirute e eu, infelizmente, não passei do aeroporto por problemas no passaporte. Como estava em Malta quando os restantes artistas lá chegaram e já ia com 3 dias de atraso, o projecto arrancou sem mim. Em Setembro foi a vez de Abu Dhabi. Para que se perceba o processo, posso dizer-te que o planeamento destas duas fachadas demorou cerca de 3 anos, o que significa que, assim que chegamos lá, todos sabíamos o que fazer e onde fazer. Em 15 dias terminámos a pintura, sendo que trabalhámos apenas durante a noite, devido ao calor (tivemos inclusive de assinar um contrato que nos “obrigava” a beber 1L de água por hora), e utilizámos 5500 latas. Comparativamente com o “O1NE” do Líbano, este tinha maior área decorada – 270m de comprimento por 18m de altura – e o Guiness considerou-o o maior graffiti de propriedade privada do mundo. Foi uma experiência diferente, claro, não só pelo projecto em si como pela sua localização. Foi duro, deu muitas dores de cabeça e muito trabalho – inclusivamente, estava a mancar e acabei por ir ao hospital com um problema no pé – mas valeu muito a pena.

    BnR: Quando e como é que decidiste juntar a paixão pelo graffiti com a paixão pelo futebol pela primeira vez?

    MD: A arte e o futebol estiveram lado a lado em toda a minha vida. O meu grande objectivo quando era novo era, claro, ser jogador profissional. Joguei 11 anos como federado e deixei de o fazer, primeiro porque me detectaram um problema de saúde que podia fazer com que caísse para o lado a qualquer momento, depois porque apanhei um treinador nos júniores que bebia mais do que eu jogava à bola e que por algum motivo me fez a vida negra a época toda. Nessa altura já fazia graffiti e também já começava a ser difícil conciliar as duas coisas, por isso abandonei uma e abracei a outra por completo. Mas quis sempre voltar a juntar essas duas paixões de alguma forma e isso surgiu pela primeira vez a sério em 2010, com a personalização das chuteiras para o FC Porto-Arsenal.

    BnR: Como é que surgiu a ideia de personalizar chuteiras?

    MD: Nessa altura, em 2010, já estava em contacto com o FC Porto e com alguns projectos em cima da mesa. O FC Porto ia receber o Arsenal em casa para a Champions e, como eu já personalizava sapatilhas da Reebok, lembrámo-nos de que seria interessante fazer o mesmo numas chuteiras que seriam oferecidas aos Gunners. O Porto entregou-me umas chuteiras brancas e uma caixa feita à medida e deixou o resto à minha criatividade. Felizmente correu bem e uns meses mais tarde fizemos o mesmo para oferecer a um dos patrocinadores do clube.

    BnR: Para que jogadores já personalizaste chuteiras?

    MD: Há trabalhos que não podem ser tornados públicos. Não só pela questão dos contratos dos jogadores com as marcas, mas também porque há clubes que gerem a imagem dos jogadores e que não permitem que nada que não seja elaborado por eles seja publicado. Portanto, apesar de ter feito já várias coisas nesta área, o que é público são as chuteiras para FC Porto, Emmanuel Frimpong, Mario Balotelli, Gokhan Inler e Paulo Machado.

    BnR: As chuteiras que personalizaste para o Mario Balotelli (AC Milan) ou para o Gokhan Inler (Nápoles), por exemplo, não podem ser usadas em campo – são um mero elemento decorativo. No entanto, as que personalizaste mais recentemente para o Paulo Machado (Olympiacos) já podem ser utilizadas durante os treinos e os jogos. O que mudou na tua técnica de personalização?

    MD: A ideia inicial sempre foi mantê-las como um elemento decorativo – os jogadores terem as chuteiras e a caixa personalizada para guardarem como recordação, assim como guardam camisolas, taças e medalhas. O material que utilizo normalmente era suficiente para esse efeito e não precisava de explorar outros materiais e outras técnicas. O que aconteceu foi que alguns jogadores entraram em contacto comigo, dizendo-me queriam jogar com elas, mas eu sabia que as personalizações que fazia não garantiam a resistência e durabilidade suficientes para jogos de alta competição. Tive de “suspender” de alguma forma o projecto até conseguir dar resposta a esses pedidos e estive cerca de 4 meses a fazer pesquisa e a testar novas tintas e novas técnicas que me dessem uma garantia total de que as chuteiras pudessem ser utilizadas em campo. Acho que essa fórmula está encontrada.

    Chuteiras personalizadas para Paulo Machado
    Chuteiras personalizadas para Paulo Machado

    BnR: Quanto tempo demoras a personalizar umas chuteiras?

    MD: Depende sempre do nível de detalhe de cada personalização. Em cada projecto há pesquisa, preparação, isolamento, várias camadas de tinta, acabamento, etc. Diria que, em média, uma personalização completa leva uma a duas semanas.

    BnR: Tens tido muita procura? Achas que dentro de uns anos poderemos ter dezenas de jogadores a disputar a Liga dos Campeões com chuteiras personalizadas por ti?

    MD: Acho que tenho tido a procura suficiente e possível, sem englobar jogadores não profissionais ou pessoas que nem jogam mas que querem ter umas chuteiras personalizadas. São pedidos que recebo com alguma regularidade de todo o mundo mas que neste momento descarto por querer focar-me no mercado de jogadores profissionais. E essa é uma decisão arriscada, que torna as coisas um pouco mais difíceis. Não só porque é um projecto inovador – e isso é sempre um factor de risco -, mas também porque, como deves imaginar, não é fácil chegar ao contacto com os jogadores. Principalmente para mim, que durante toda a minha vida achei que, se trabalhasse, as oportunidades haveriam de chegar. Ou seja, não sou apologista de andar a bater às portas e a dizer que faço isto e aquilo, mas sim de trabalhar no duro e de procurar evoluir até baterem à minha porta. E sinto-me bem por hoje ter contacto com vários jogadores e terem sido eles a procurar-me pelo trabalho que tenho vindo a fazer. Mas as coisas vão acontecendo, não acontecem todas de uma vez. Agora, em relação à segunda pergunta, obviamente que gostava mas devo dizer-te que talvez seja algo irrealista. Não só porque tenho de manter os pés assentes na terra e dar um passo de cada vez, mas também porque há contratos com as marcas que impossibilitam que muitos jogadores possam utilizar umas chuteiras personalizadas em campo. As marcas pagam-lhes para eles usarem um modelo que seja vendável. Um jogador de topo usa as Mercurial porque milhares de pessoas em todo o Mundo vão comprá-las para ser como ele. Se esse jogador usar um modelo exclusivo meu e a marca não as tiver para venda, como é? O meu trabalho cai bem aos jogadores mas nem sempre cai bem às marcas. Não é nada que me preocupe, mas é algo que me leva a encarar este projecto como um jogo de possibilidades: há coisas possíveis e há outras que nunca serão uma hipótese 100% viável.

    Chuteiras personalizadas para Gokhan Inler
    Chuteiras personalizadas para Gokhan Inler

    BnR: O que representaria para ti ver, por exemplo, Cristiano Ronaldo com umas chuteiras personalizadas por ti no Mundial 2014?

    MD: Neste momento é algo impensável, diria até impossível. Ainda para mais numa competição desse tipo. Mas estamos a falar do melhor jogador do Mundo, de uma máquina autêntica e de um símbolo do nosso país, portanto seria obviamente muito bom a todos os níveis.

    BnR: Há algum jogador em particular que gostarias de ver com umas chuteiras personalizadas por ti?

    MD: Não gosto de pensar muito nisso, porque inconscientemente posso estar a colocar metas intangíveis e quero concentrar-me no presente, naquilo que é possível fazer. O que tiver de acontecer acontece.

    BnR: Já estudaste a possibilidade de personalizar calçado para outros desportos? É absurdo imaginar, por hipótese, um jogador da NBA com calçado personalizado por ti?

    MD: Já pensei, apesar de o futebol ser o “meu” desporto e de me dar muito prazer trabalhar neste meio. A NBA seria uma montra incrível e obviamente que seria muito interessante. Mas sim, parece-me um pouco absurdo neste momento e acho sinceramente que a questão dos contratos dos jogadores ainda deve ser mais limitativa do que no futebol.

    BnR: Já tiveste algum trabalho relacionado com outra modalidade que não o futebol? Pensas nisso?

    MD: A nível de personalização não, tirando uma ou outra prancha de surf que fiz para não-profissionais. Não penso nisso mas pode acontecer. Aliás, tudo pode acontecer.

    BnR: No ano passado foste à Colômbia pintar um enorme mural dedicado a Radamel Falcao e o próprio jogador partilhou o teu trabalho nas redes sociais. Como surgiu o convite? Estavas à espera de tamanho impacto?

    MD: Fui convidado para participar na primeira Bienal de Arte Pública em Cali. O meu mural era no Estádio Pascual Guerrero, estádio do América de Cali, e lembrei-me de o homenagear. Felizmente, saí nos jornais todos, fui capa do El País, apareci nas televisões, o presidente do Alcadia quis conhecer-me pessoalmente… Enfim, correu bem, mas claro que não esperava que tivesse esse impacto todo!

    Mural com Radamel Falcao, em Cali (Colômbia)
    Mural com Radamel Falcao, em Cali (Colômbia)

    BnR: Já este ano, pintaste o tecto da entrada do Museu do Futebol Clube do Porto. O que sentiste ao olhar para o teu trabalho depois de o museu estar aberto?

    MD: Eu sou muito auto-crítico, demasiado até. Por um lado é bom porque me obriga a querer ser melhor, a aprender e a trabalhar cada vez mais; por outro leva-me a pensar no cliché “se não te valorizares, quem é que te vai valorizar?”, o que não deixa de fazer sentido. Isto para explicar que não consigo parar à entrada do Museu, olhar para cima e pensar “Grande trabalho, pá!”. Não consigo. O que sinto verdadeiramente é orgulho por ter chegado ali, por ter tido a honra de ser convidado pelo meu clube para fazer parte da sua história, por todas as dificuldades que enfrentei sozinho durante anos e anos e pelos riscos que corri ao assumir que era do meu trabalho que queria viver, numa altura em que qualquer pessoa se iria rir com isso. Quando olho para cima, penso na pessoa, não no artista. Penso no percurso e não propriamente na obra final. O melhor exemplo disso é que só fui ver essa obra uma vez mas penso nela várias vezes. Vejo este e outros trabalhos que tenho a oportunidade e a honra de fazer como uma recompensa por tudo o que passei para chegar até aqui, de forma a perceber que valeu e continua a valer a pena.

    BnR: Tiveste dificuldades em escolher o desenho? Havia outras hipóteses? A decisão foi exclusivamente tua?

    MD: Tenho a sorte de o FC Porto ser um cliente fantástico porque me valoriza como ser humano e como artista. Isso faz com que me dê total liberdade criativa em tudo aquilo que faço para o clube. Quando se pensa numa obra desta envergadura e desta importância, há sempre mil e uma dificuldades e mil e uma hipóteses, portanto é sempre um processo longo e de trabalho exaustivo. Gosto de partilhar as minhas ideias com aqueles que me estão mais próximos, de saber a opinião deles, de ouvir os seus conselhos, e isso também é extremamente importante nesse processo. Com as cartas todas na mesa, achei que faria todo o sentido, por todos os motivos e mais algum, pintar um Dragão. Desenvolvi o projecto e, assim que o terminei, apresentei-o ao FC Porto. O feedback foi rápido e 100% positivo e passados uns dias estava a começar a obra.

    BnR: Antes do jogo de apresentação do FCP, este ano, pintaste um grande mural com um pedaço da história do clube. O que sentiste ao estar ali? Qual foi a reacção das pessoas?

    MD: Pintar em pleno relvado, com o Dragão completamente cheio, é uma experiência única. Acabas por te sentir parte da festa. Mesmo sabendo que nem de perto és uma figura central, sentes uma responsabilidade muito grande de fazer o melhor trabalho possível, porque tens a consciência de que tudo é preparado ao milímetro por profissionais dedicados que fazem parte de uma estrutura impressionante. Eternizei três símbolos do FC Porto [n.d.r.: Aloísio, Vítor Baía e João Pinto], três jogadores que vi jogar e que fizeram parte da minha infância e adolescência, e foi um prazer enorme poder representá-los ali e vê-los a ser homenageados em frente ao meu trabalho. Na minha perspectiva, pelo que me apercebi, tanto eles como o público em geral gostaram e isso é a maior recompensa que poderia ter.

    BnR: Estás, neste momento, a trabalhar em mais algum projecto ligado ao futebol?

    MD: Neste momento não estou a trabalhar em nada ligado ao futebol mas tenho algumas encomendas de chuteiras que espero que se concretizem em breve.

    BnR: Tens algum sonho profissional ligado ao futebol que ainda não tenhas cumprido?

    MD: Como já referi, não sou muito de sonhos. Acho que devo estar grato por aquilo que já fiz e não pensar naquilo que gostaria de fazer.

    BnR: Alguma vez foste convidado por uma claque do Futebol Clube do Porto para pintar uma tarja gigante de apoio à equipa?

    MD: Já falaram comigo duas ou três vezes, mas foram coisas pontuais que não se concretizaram.

    BnR: O que é que te dá mais gozo – imaginar/planear, executar ou apreciar o trabalho concluído?

    MD: Acho que o que dá mais gozo é o processo em si, mas há coisas difíceis de explicar: quando estou a executá-lo, sinto-me ansioso para ver como vai resultar no final. Quando vejo o resultado final, penso em como estava a ser fixe fazê-lo.

    BnR: Cada obra que fazes é única e especial. No entanto, se tivesses de escolher duas ou três que representassem a tua carreira até agora, quais escolherias e porquê?

    MD: É difícil e acho que não consigo catalogá-las por importância, porque há obras que me dizem mais pelo que representam em termos de conceito e pelo momento em que as fiz e há outras que se calhar não me dizem tanto mas que me trouxeram uma projecção e um retorno maiores. Gosto de olhar para a minha carreira como um todo, agradecer por ter conquistado aquilo que já conquistei e por ter tido as oportunidades que já tive. Quero continuar a olhar para o meu trabalho e nunca sentir que sou especial por ter feito isto ou aquilo, mas sentir que todos os dias dou o meu melhor no que faço, com a consciência de que há sempre muito para aprender, muito por onde evoluir e muito por fazer.

    BnR: Quais são os próximos trabalhos que tens em agenda? MD: Tenho coisas em cima da mesa que ainda não estão confirmadas, todas no estrangeiro e para os próximos meses. Quero “fechá-las” para me poder concentrar em outras coisas e descansar um pouco porque este foi um ano em que praticamente não parei. Houve um momento em que dei por mim a pensar que nos últimos 3 meses tinha pintado todos os dias, excepto naqueles em que estava a andar de avião de um lado para o outro, a fazer escalas e em “modo zombie”. Percebi que precisava de descansar a cabeça, as pernas e principalmente os pulmões, que, com tanta tinta, começavam a implorar por umas férias.

    Se quiser saber mais sobre o vasto trabalho de MrDheo, aceda à sua página oficial ou à sua página de Facebook.

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    Francisco Manuel Reis
    Francisco Manuel Reishttp://www.bolanarede.pt
    Apaixonado pela escrita, o Francisco é um verdadeiro viciado em desporto. O seu passatempo favorito é ver e discutir futebol e adora vestir a pele de treinador de bancada.                                                                                                                                                 O Francisco não escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.