Euro 1984 | O primeiro Europeu de Portugal

    Vinte anos depois da espectacular campanha em Inglaterra, Portugal finalmente aproveitava o embalo da modernidade proporcionada pelo 25 de Abril e apanhava a vanguarda cosmopolita, pelo menos futebolisticamente, integrando pela primeira vez o cartaz da elite continental.

    Só em 1986 a adesão à União Europeia foi oficializada, mas o Europeu de 1984, jogado em França – quando Paris era considerada a terceira cidade portuguesa, pela força emigrante que por lá procurava uma vida melhor… – serviu como oportunidade para se lavar a cara do país, já desamarrado dos nós autoritários mas ainda tímido e cheio de traumas.

    A campanha desportiva mascarou a pesadíssima bagagem de problemas institucionais que explodiria definitivamente em Saltillo, dois anos depois, e os feitos no relvado foram seguimento dos sucessos de Benfica (final da Taça UEFA em 1982/83) e FC Porto (final da Taça dos Vencedores das Taças em 1983/84). E foi também  por aí que o caldo se começou a entornar.

    Porque o futebol português estava dividido por essas duas forças. Apesar do sucesso leonino em 1981/82, agora mandavam Eriksson e Pedroto, dois revolucionários que tinham dotado as suas equipas duma dimensão internacional e o país era demasiado pequeno para os dois – Benfica e FC Porto, mais que nunca, eram pólos opostos.

    O sucesso portista baseava-se num combate incessante ao suposto “centralismo” e à sua maior expressão, o Benfica. Em França, haviam oito benfiquistas e nove portistas. O ambiente foi sempre de cortar à faca: separação total entre as facções. Ao almoço, ao jantar, nos quartos. O grupo do Porto não falava ao grupo de Lisboa e vice-versa (aos benfiquistas juntavam-se Jordão, do Sporting, Damas, ex-Sporting mas vinculado ao Portimonense, e Jorge Martins, do Vitória setubalense).

    O único ponto em que havia concordância: os direitos de imagem e os prémios, preocupações novas duma classe profissional que acordava para a realidade do marketing e do potencial do seu próprio estatuto. A pedrada no charco de Saltillo começou em 1984 precisamente por essas questões financeiras e contratuais, quando os jogadores começam a impingir dividendos desses lucros que iam todos para os bolsos duma Federação ainda impregnada com o espírito ditatorial do regime, com as mais altas figuras ainda a evitar qualquer contacto com futebolistas, pelo básico preconceito de que futebolista era gente reles só com a quarta classe.

    Esta problemática é bem resumida pelo episódio do suposto «roubo dos livros»: a Federação lançara manual de promoção intitulado Portugal e o seu Futebol, livro moderno cheio de imagens a cores e com muita estatística do futebol nacional de selecções, pronto a ser vendido entre as multidões nacionais presentes em França. Era uma mina de ouro. Foi aí que os jogadores se aperceberam do que estavam a perder e começaram a reclamar dos seus direitos. Notícias seguintes: os livros tinham sido roubados. Verdade ou simulação, para permitir lucros avantajados sem interferências, ninguém tem ainda a certeza. Amândio de Carvalho, braço direito do presidente Silva Resende, dá conta da sua versão, que se tornou oficial…

    «Acredito nos funcionários da Federação que estavam responsáveis  e que foram para França com os livros , mas, também, com os bilhetes e o carro que foi assaltado. (…) Se foi simulado ou não, tenho muitas dúvidas porque continuo a ter a máxima confiança neles.»[1]

    FUTEBOLISTICAMENTE FALANDO…

    A qualificação começara com Otto Glória, o grande projectista da profissionalização do futebol português nos anos 50, que saíra após três jogos afirmando que, «em Portugal, o nível dos futebolistas aumentou, não o dos dirigentes», sendo talvez o primeiro grande denunciante dos problemas estruturais.

    Supostamente, não ficara satisfeito com a posição dos responsáveis no confronto contra Benfica e Sporting, que abriram luta à Selecção em Fevereiro de 1983, quando a equipa nacional achou precisar da força dos craques lisboetas para os particulares frente a França (dia 16) e Alemanha Ocidental (23). Os clubes, com aspirações a expressivas caminhadas europeias, acharam aquilo descabido e toca de fazer braço de ferro.

    O Senhor Otto, agastado ficou; quando viu os seus seleccionados a perderem por 5-0 em Moscovo frente à União Soviética, a 27 de Abril, desesperou e bateu com a porta. Deixaria o cargo para Fernando Cabrita, outro tradicional nome do nossos relvados, que cumpriria a qualificação com afinco, confirmando-a no jogo de volta contra os Russos, num 1-0 no Estádio da Luz em que o penalty da vitória é uma falta sacada fora de área por Chalana.

    Para o Euro, a solução encontrada foi cómica aos parâmetros actuais – é novamente Amândio de Carvalho quem explica:

    «Ficou o Fernando Cabrita, que era adjunto de Otto, e depois foi pedido ao Benfica, ao Sporting e ao FC Porto um elemento para acompanhar a selecção. O Porto indicou o António Morais, o Benfica indicou o Toni, e o Sporting não quis indicar ninguém. E eu decidi ir buscar o José Augusto, que era funcionário da Federação e tinha as camadas jovens, para ajudar o Cabrita. Foi confuso? Foi, sim senhora»[2]

    QUALIFICAÇÃO

    Conseguimo-la à conta da União Soviética, da Finlândia e sobretudo da Polónia de Mlynarczyk, redes do Porto, que tinha sido semifinalista no Espanha 82.

    Na primeira edição com meias-finais a seguir aos grupos, a reformulação envolveu também os nomes, substituindo-se os habituais por surpresas, a maior delas Portugal – a campeã do Mundo Itália falhara a qualificação em detrimento da… Roménia, integrante do grupo português e que tinha nas fileiras um imberbe Hagi; a Velha Albion não resistira à armada nórdica vinda da Dinamarca, novamente; e Espanha só tinha progredido calcando sobre a Holanda porque, a precisar de anular um goal average de … 11, aplicara, suspeitamente, um 12-1 a Malta na última jornada.

    O EUROPEU PROPRIAMENTE DITO

    E serão os vizinhos na Ibéria a cair no grupo de Portugal, que com a Roménia ficariam todos em família, pelas ligações do latim; circunstâncias da qual só destoava a República Federal da Alemanha, a Alemanha capitalista, grande papão futebolísitico.

    Na primeira jornada, porém, não consegue superiorizar-se perante Portugal (0-0). Confiantes por conseguirem manter inviolável a baliza de Bento, os portugueses prosseguem para disputar descomplexadamente o jogo com Espanha (1-1). Tudo em aberto para a última jornada: qualquer um podia ir às Meias, bastando para isso ganhar.

    Portugal, inexperiente e ansioso, deixou o jogo com a Roménia andar até aos 81 minutos, quando Néné, com idade para ter juízo (nascido a 1949, tinha 35 anos), acabou com a parva tremeliqueira, transmitida do relvado para cada casa portuguesa através da televisão – a meio da segunda parte, a RTP deixa de conseguir projectar imagens e os problemas técnicos seguem até final: milhões de portugueses foram obrigados a trocar o ecrã pela confiável telefonia e foi pelos ouvidos que souberam do gesto responsável do avançado benfiquista.

    É antes desse jogo que se passa um outro episódio curioso, este que serve para contextualizar em relação ao ambiente vivido no seio das Quinas. Passou-se assim: Carlos Manuel fora anunciado como suplente para Jaime Pacheco saltar para o onze; só que à última da hora, Fernando Cabrita lançou os dados outra vez e calhou ao contrário. Quando o jogo acabou, em vez de aliviado e alegre, Carlos Manuel estava piurso:

    «António Morais não queria que eu jogasse para beneficiar um jogador que ele treinava. Pessoalmente, até admito que Jaime Pacheco tivesse merecido jogar, mas grave foi que António nem sequer tivesse comparecido à palestra, pelo que, no final do encontro, outros jogadores e eu próprio sentimos que ele não era português!»

    A FRANÇA

    Em 1970, eram aproximadamente 700 mil; Vinte anos depois, eram à volta de 800 mil os portugueses emigrados em França e a força dos números explicará a importância do jogo, já de si importante por representar estreia em cheio do futebol nacional em Europeus.

    Por França evidenciava-se o fantástico quarteto – o icónico carré magique – protagonizado por Luis Fernandéz, Giresse, Tigana e o fabuloso Platini, que fizera sete golos na fase de grupos (acabaria com nove, ainda hoje um recorde) e seria novamente Bola de Ouro em 1984, depois de já ter sido em 1983 – e seria-o também em 1985, depois de levar a Juventus às cavalitas para a conquista da Liga dos Campeões, na vitória almadiçoada do Heysel.

    Num Velódrome cheio como um ovo, com o maior público do torneio (55 mil), os portugueses tentaram contrabalançar com seis portistas e quatro benfiquistas. A estrela mais cintilante foi, porém, Jordão, o verde felino que bisou e deu esperança numa deslumbrante ida à final, com golo a condizer.

    Chalana, que passou o torneio a desbaratar dentro de campo e a deixar isso para a sua fervorosa Anabela fora dele, ganhou aí fama pela Gália pela carismática associação entre técnica primorosa, um truque para todos os problemas, e a figura amigável com ares de banda desenhada. Chalanix assinaria pelo Bordéus, onde jogaria até 1987, sem grande sucesso.

    Longos anos teve aquela etapa complementar. Portugal foi abaixo com o golo de Domergue aos 114’ e a 90 segundos do fim, numa carambola desesperante, Platini empurra para dentro. Atiram-se ao chão os suados portugueses, perdida ingloriamente a esperança. Pelo menos vergados de consciência tranquila, já muito tinham feito os valentes Patrícios pelo orgulho do povo, enchendo de dignidade os lutadores das bidonville.

    Missão mais que cumprida por todos os problemas que envolveram a equipa, que além do despertar em relação às desigualdades financeiras, tinha que desconfiar, sobretudo, dos próprios irmãos com quem derrotavam adversários. Se a origem desses desaguizados eram a própria moral dos jogadores ou normas comportamentais impostas por alguém, Amândio de Carvalho vem novamente dar uma luz, falando de certas circunstâncias no estágio de preparação em Palmela.

    «Quem estava sempre lá a vigiar era o Octávio Machado, que na altura estava no FC Porto. Uma vez o Fernando Gomes veio ter comigo e disse-me: o senhor tem de proibir a entrada do lacrau aqui. Do lacrau? Não está aqui ninguém do Sporting. Não, o Octávio. O Octávio? Mas qual é o problema? É vosso adjunto no Porto. E ele responde-me: sim, mas anda sempre aqui a espiar-nos, faz relatórios para cima e depois a malta é que sofre…»[3]


    [1]p. 50, DEIXEM-NOS SONHAR – CASO SALTILLO PORTUGAL E O MEXICO 86, Joao Tomaz e Pedro Adão e Silva, 2017, Tinta da China

    [2] Idem

    [3] DEIXEM-NOS SONHAR – CASO SALTILLO PORTUGAL E O MEXICO 86, Joao Tomaz e Pedro Adão e Silva, 2017, Tinta da China

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    Pedro Cantoneiro
    Pedro Cantoneirohttp://www.bolanarede.pt
    Adepto da discussão futebolística pós-refeição e da cultura de esplanada, o Benfica como pano de fundo e a opinião de que o futebol é a arte suprema.