A importância da era Gareth Southgate para Inglaterra e a necessidade do próximo passo

Gareth Southgate abandonou a seleção inglesa após a final do Euro 2024. O anúncio era expectável, depois do técnico ter apontado qualquer resultado que não o primeiro lugar, como justificação para dar por finalizado um trabalho de oito anos e nem as propostas de renovação da Federação Inglesa foram suficientes para mudar de decisão.

Dois fatores marcarão para sempre a era Gareth Southgate ao leme da seleção dos três leões: questionamentos constantes ao modelo de jogo, muitas vezes demasiado passivo face à qualidade dos intervenientes; e, mais importante, os bons resultados que Inglaterra somou nas grandes competições com duas finais consecutivas de Europeus e prestações consistentes nos Mundiais. Uma avaliação do trabalho do treinador terá, necessariamente, de colocar em cima da balança estes dois fatores. O certo é que, olhando para a Inglaterra que Gareth Southgate assumiu e para a que deixa ao sucessor, as diferenças são mais que identificáveis.

Gareth Southgate Euro 2024
Fonte: Filipe Oliveira/Bola na Rede

Os cacos que Gareth Southgate ajudou a unir

Gareth Southgate chega à seleção inglesa no mais delicado período dos Três Leões no século XXI. A geração emblemática do início do século estava na reta final e eram poucos os resistentes de uma das equipas que mais insucessos, frustrações e desilusões trouxe aos ingleses.

Frank Lampard, Paul Scholes, Steven Gerrard, John Terry, Ashley Cole, Wayne Rooney. Alguns dos nomes que marcaram o início do século XXI e protagonizaram uma seleção altamente marcada por disputas clubísticas, qualidade individual acima da média e encaixes coletivos incapazes de render estavam no final da carreira ou já tinham pendurado as botas. Em 2016, só o avançado do Manchester United integrou a convocatória de Roy Hodgson numa seleção em que a nova geração já se mostrava presente com Harry Kane, Raheem Sterling ou Marcus Rashford com papel relevante em Inglaterra.

Os maiores desastres de Inglaterra no século XXI antecedem Gareth Southgate. Em 2014 os ingleses caem com estrondo na fase de grupos do Mundial. Dois anos mais tarde a queda faz ainda mais barulho, apenas amparada pelas palmas ritmicamente sincronizadas dos islandeses que fizeram história e eliminaram Inglaterra do Euro 2016. Roy Hodgson caiu, Sam Allardyce, o mais inglês dos técnicos ingleses, assumiu a seleção inglesa, mas só aguentou 67 dias no comando.

Uma investigação levada a cabo pelo Daily Telegraph descortinou o envolvimento de Big Sam num esquema que permitia contornar regras de transferências de jogadores com o técnico envolvido num negócio de 400 mil libras, sensivelmente 463 mil euros. Em comunicado, a Federação Inglesa de Futebol salientou que a sua prioridade «é proteger largamente os interesses do jogo e manter altos padrões na conduta do futebol. O selecionador de Inglaterra está numa posição em que deve demostrar sempre forte liderança e respeito pela integridade do jogo», demitiu o treinador e socorreu-se aos sub-21 para escolher o nome do novo treinador. Gareth Southgate foi então promovido à seleção principal num não raro caso de treinador lançado às feras.

Inglaterra adeptos
Fonte: Filipe Oliveira / Bola na Rede

Gareth Southgate, o trauma das grandes penalidades e os bons resultados

Gareth Southgate não era um nome desconhecido em Inglaterra. A carreira de treinador era curta, acumulando trabalhos no Middlesbrough e nos sub-21, mas a ligação do antigo defesa central à seleção inglesa era longa e traumática.

57 internacionalizações marcaram o percurso do defesa central à seleção dos três leões. Uma caminhada altamente influenciada pelo fatídico 26 de junho de 1996 quando em Wembley, perante a seleção alemã, Gareth Southgate falhou uma grande penalidade que eliminou Inglaterra do Euro que organizou e sedeou. O culpado estava encontrado numa longa tradição que já tinha vitimado e continuou a vitimizar carrascos encarados pela imprensa mais populista e por parte da população como culpados por constantes eliminações inglesas.

O futebol regressou a casa em 1966 e desde então, nunca mais lá voltou. A cultura do It’s Coming Home – como se a maternidade fosse sinónimo da ternura e do carinho de um lar – cantado de dois em dois anos potenciou frustrações acumuladas com expectativas desmesuradas não resolvidas ou campanhas desastrosas. As grandes penalidades eram vividas na certeza do insucesso e na avidez de apontar mais um culpado para (mais uma desilusão) inglesa. A memória que Portugal exalta de 2004 e 2006 é a mesma vivida com uma pedra na mão por Inglaterra.

Em 2018, e já com Gareth Southgate no comando, Inglaterra defrontou a Colômbia nos oitavos de final do Mundial 2018. Um golo de Yerri Mina aos 90+3 atirou o jogo para um prolongamento penoso e para umas grandes penalidades assustadoras. Uma nova geração inglesa foi colocada à prova comandada por um dos rostos das desilusões acumuladas nos 11 metros. Inglaterra não tremeu, venceu a disputa dos 11 metros e voltou a sorrir. Viria a ser eliminada nas meias-finais, mas já sem o mesmo peso.

Em 2021, a Inglaterra voltou a sofrer do mesmo fado de sempre. Em casa, num Wembley à pinha com adeptos ingleses, Gareth Southgate voltou a estar no lado errado de uma decisão nas grandes penalidades cuja frustração atingiu níveis desproporcionais, vis e condenáveis. Numa sociedade inglesa onde as feridas do Brexit e da xenofobia continuam abertas, o técnico esteve do lado certo da luta e protegeu Marcus Rashford, Jadon Sancho e Bukayo Saka, de todos o mais visado, dos ataques cruéis e racistas e das palavras reflexo das mentalidades mais irracionais da sociedade. Nunca será a faceta mais valorizada de um treinador, mas a capacidade de aglomerar, unir e criar uma família é, porventura, o segundo maior feito de Gareth Southgate. Porque, para o futebol regressar a casa, é preciso ter à sua espera uma família capaz de abraçar o regresso.

Este é o segundo maior legado que o técnico deixa. O primeiro são os resultados. Meias-finais contra a Croácia vice-campeã, final perdida para a Itália campeã, quartos de final contra a França vice-campeã e final perdida para a Espanha campeã. Mesmo não tendo levantado qualquer troféu ou conhecido o êxtase das celebrações loucas, Gareth Southagte trouxe a Inglaterra resultados que abrem portas a um futuro mais risonho aos ingleses.

Gareth Southgate Harry Kane
Fonte: Filipe Oliveira / Bola na Rede

O Euro 2024 como espelho da Inglaterra de Gareth Southgate

Resultados que não devem camuflar um estilo de jogo de Inglaterra bastante contestado e, em vários momentos, questionável. A seleção despedaçada que Gareth Southgate assumiu em 2016 tinha jogadores diferentes ao leque de estrelas de 2024. E a evolução do trabalho do treinador sofreu com o aumento de qualidade, por muito estranha que esta sequência de palavras soe.

Gareth Southgate não é um treinador do mais alto nível do ponto de vista tático, muito menos o mais capaz de oferecer argumentos ao nível ofensivo. Pelo contrário, demonstrou sempre mais valências nos encaixes defensivos, na capacidade de oferecer segurança e ao atuar no arrastar dos jogos, garantindo resultados sofríveis por onde passava.

Por esta razão, a seleção que conjugava cinco defesas e Jordan Henderson em 2018 e que a quatro defesas e a Jordan Henderson juntava Kalvin Philips em 2021 será sempre mais Gareth Southgate do que aquela que, em 2024, procurava enquadrar Phil Foden e Jude Bellingham nas costas do avançado. O resultadismo raramente é amigo do espetáculo. Aliás, até o é, mas quando assim o é, nunca será apenas resultadismo. E Gareth Southgate sempre foi resultadista.

Por isso, Inglaterra chegou ao Euro 2024 como uma das duas favoritas, mas sempre envolvida numa desconfiança estranha ao olhar o plantel inglês. E a fase de grupos e os oitavos de final comprovaram essa mesma desconfiança. Não fosse o iluminado Jude Bellingham dar umas luzes de si com um pontapé de bicicleta nada convencional diante da Eslováquia e 2016 tinha-se repetido. Perdido à esquerda, Phil Foden era um fantasma do Phil Foden que Pep Guardiola enquadrou à direita para tocar mais vezes na bola em espaços centrais. Obrigado a pegar no jogo, Declan Rice foi-se embrulhando com a bola que no Arsenal tantas e tantas vezes carregou e transportou. Obrigado a usar o pé direito à esquerda, Kieran Trippier deixou tantas e tantas vezes o corredor esquerdo coxo e viu o cruzamento fonte de oportunidades dos magpies fugir entre o pé esquerdo limitado e a abordagem defensiva certeira de impedir um cruzamento fechado.

Entre nomes em sub-rendimento e um contexto coletivo incapaz de os favorecer a Inglaterra foi, provavelmente, a seleção grande menos grande das primeiras semanas. Fartou-se de empatar na fase de grupos, viu a Eslováquia a segundos de garantir o apuramento, só superou a Suíça nos penáltis (e esteve muito do tempo em inferioridade) e só apareceu verdadeiramente nas meias-finais para subordinar uma seleção dos Países Baixos que, até então, camuflava a pobreza exibicional. Apesar de tudo foi uma Inglaterra em crescendo bem superior aos Países Baixos e competitiva na final. Gareth Southgate trouxe Phil Foden para dentro e colocou-o perto de Bukayo Saka, a melhor das estrelas da frente. Foi capaz de entender o problema claro no meio-campo e lançou Kobbie Mainoo, um jogador mais associativo e capaz de oferecer critério. Antes disso, mostrou-se não estar amarrado a nomes e abdicou dos seus preferidos (Jordan Henderson e Kalvin Phillips de fora) e de nomes com temporadas irregulares (principalmente Marcus Rashford e Jack Grealish). A última imagem que fica de Inglaterra é mais positiva que negativa e os ajustes ao longo do torneio valorizaram o jogo inglês, um pouco menos pobre, e a capacidade de adaptação de Gareth Southgate.

Jude Bellingham
Fonte: Filipe Oliveira / Bola na Rede

A altura certa para saber sair

Ainda assim, e tendo em conta os perfis despontantes na nova geração inglesa, Gareth Southgate soube sair na altura certa. Sem a influência do fator sorte – que em competições como Europeus ou Mundiais tem impacto – a campanha de Inglaterra roçaria o ridículo numa das gerações com mais qualidade e profundidade da história.

Gareth Southgate sai num período entre a ascensão e a consolidação de novos nomes que marcarão a próxima década da seleção inglesa. Phil Foden, Jude Bellingham, Bukayo Saka, Declan Rice, Cole Palmer e Kobbie Mainoo são nomes capaz de marcar uma nova geração inglesa que tem demonstrado capacidade de produzir talentos. Nos últimos anos Inglaterra venceu o Euro Sub-21 (2023), o Euro Sub-19 (2017) e chegou a duas finais: uma em sub-19 (2022) e outra em sub-17 (2017). Os títulos não são o mais importante para avaliar a capacidade de formação (será sempre a capacidade de operacionalizar a transição do futebol de formação para o futebol profissional), mas são um indicador de um trabalho sustentado com talentos ingleses a serem cada vez mais capazes de se destacar na Premier League e também fora desta.

Este trabalho não se deveu a Gareth Southgate, mas coincidiu no tempo com o seu percurso e foi importante para complementar a pasta que o técnico entregará na mão do seu sucessor. Aos 53 anos, a seleção inglesa precisa de novos estímulos e de enquadrar de maneira diferente os maiores e mais diferenciadores talentos que tem. Porém, se por um lado está transição está alicerçada em mudanças estruturais importantes, por outro tem um peso enorme.

O legado de finais consecutivas e de boas participações nas grandes competições que Gareth Southgate deixa um enorme peso ao sucessor e, à partida não se vislumbra um nome claro. O mercado de treinadores ingleses está longe de ser o mais atrativo – vale a pena a lembrança de que nenhum treinador inglês venceu a Premier League na era moderna – e apenas Eddie Howie e Graham Potter se vislumbram como possíveis sucessores. A solução pode passar por uma ida ao estrangeiro, como foi feito já com Sven-Goran Eriksson e Fabio Capello, e nomes como Thomas Tuchel, Mauricio Pochettino ou Jurgen Klopp (a partir de 2025) estão disponíveis. Resta saber quão atrativo será o cargo para investir no futebol de seleções, a todos os níveis diferente do futebol de clubes. A terceira caixinha é liderada pelo irlandês Lee Carsley, atual treinador dos sub-21. E o sucesso da Espanha de Luis de La Fuente pode jogar a favor…

Diogo Ribeiro
Diogo Ribeirohttp://www.bolanarede.pt
O Diogo é licenciado em Ciências da Comunicação, está a terminar o mestrado em Jornalismo e tem o coração doutorado pelo futebol. Acredita que nem tudo gira à volta do futebol, mas que o mundo fica muito mais bonito quando a bola começa a girar.

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