
Individualmente, a França é a melhor seleção do mundo. O solo francês é um verdadeiro viveiro de talentos que confere qualidade e uma profundidade fora do normal a uma seleção gaulesa que, joga muito menos do que os nomes no onze e fora deste poderiam fazer prever.
Há, ainda assim, uma grande diferença entre jogar mal ou assim aparentar. A França está longe de proporcionar entretenimento puro, de apaixonar pelo futebol jogado ou de questionamentos se, com as peças que tem à disposição, não poderia apresentar um futebol diferente. Mas a França não joga mal, na medida em que o plano pensado é bem executado e tem dado resultado dentro de campo.
É preciso recuar 10 anos para encontrar a última derrota em 90 minutos da França em grandes torneios. No Brasil, a seleção francesa caiu perante a campeã Alemanha nos quartos de final pela tangencial margem de 1-0. Desde então perdeu com Portugal na final do Euro 2016 no prolongamento, venceu o Mundial 2018, perdeu com a Suíça nos oitavos de final do Euro 2020 após grandes penalidades e, também da marca dos 11 metros, perdeu a final do Mundial 2022 num jogo em que encarnou a fénix e, depois de 80 minutos sem vida, ressuscitou e esteve muito perto de revalidar o título.
No Euro 2024, a França volta a não apaixonar. Marcou apenas três golos em quatro jogos e nenhum destes entrará na compilação de melhores do torneio. Um foi de grande penalidade e os outros dois autogolos fortuitos. Por outro lado, sofreu apenas um, naquela que é a principal força que Didier Deschamps imprimiu na seleção francesa.
A solidez defensiva praticamente impenetrável
A França não vai criar muito, mas sabe que também não vai permitir quase nada aos adversários. Sente-se confortável em defender mais recuada, não se lançando em pressões em todo o campo e sabendo viver sem bola. Sem afundar muito o bloco, a França consegue variar alturas da linha defensiva e define os timings para subir a pressão, encaixando marcações mais agressivas em duelos identificados previamente (geralmente em jogadores menos confortáveis com bola no pé), ou juntar linhas no bloco médio ou médio/baixo que normalmente apresenta em campo.
O conforto sempre se sobrepôs ao risco para Didier Deschamps e, os novos nomes da seleção francesa, aumentam o peso da segurança nos dois pratos da balança já por natureza desequilibrados. Mike Maignan é um upgrade significativo a Hugo Lloris na baliza. Além do conforto que oferece com bola nos pés e no controlo da profundidade e da área em situações de cruzamento, a capacidade de se agigantar na baliza e de defender quase tudo dá à França condições para sonhar muito alto. Depois de ultrapassar uma organização defensiva coesa, forte e consolidada, ainda há uma última barreira pela frente.
A França tem também repelentes muito fortes à procura de um jogo direto por parte dos adversários. A Bélgica, com Lukaku e Openda à frente e com Kevin De Bruyne como lançador, não conseguiu criar perigo por uma vez através de uma bola longa a procurar uma desmarcação na profundidade ou um trabalho mais físico. Tanto Dayot Upamecano (mais instável) como William Saliba, um dos melhores do Euro 2024, têm força física para se superiorizar nos duelos e capacidade atlética para defender mais alto e recuperar metros para defender as costas. Jules Koundé, lateral direito improvisado, também apresenta condições físicas e técnicas para dar solidez à seleção francesa.
Diante da Bélgica, Didier Deschamps também lançou mais uma alteração com o objetivo de oferecer mais robustez ao processo defensivo da França. Aurélien Tchouaméni ganha preponderância na seleção francesa como um médio mais posicional capaz de oferecer soluções com bola, mas também, e principalmente, para reduzir o espaço entrelinhas para os adversários e tapar transições. Com bola, esta opção levanta dúvidas (que serão levantadas mais à frente), mas sem bola é mais um elemento com sentido posicional, força física e ocupação de espaço que a França tem.
Coletivamente, a dinâmica mais importante da França funciona à esquerda e reflete a interligação necessária e fundamental entre o processo defensivo e o processo ofensivo. O lado esquerdo da França com Théo Hernández e Kylian Mbappé/Marcus Thuram ou Kolo Muani, dependendo da escolha de Didier Deschamps é o mais perigoso e o técnico da França criou condições para não perder esta ameaça. Kylian Mbappé tem liberdade para descansar mais à frente, evitando as corridas desenfreadas para acompanhar o lateral adversário. Em 2018, Blaise Matuidi destacou-se nesta função que, pela eficácia no seu cumprimento, ainda é apelidada com o seu nome em terreno francês.
Já não há Blaise Matuidi, mas Didier Deschamps encontrou em Adrien Rabiot o novo Blaise Matuidi. Não é o jogador mais criativo com bola (embora já tenha mostrado bons pormenores neste torneio), mas não precisa de o ser. A sua titularidade é pensada para libertar Kylian Mbappé do trabalho defensivo e manter a mais-valia com bola. O médio francês está suspenso e é Eduardo Camavinga, que já jogou como defesa lateral, o jogador mais forte para assumir esta função de fechar à esquerda a segunda linha do 4-4-2 assumido pela seleção francesa no momento defensivo.

O conforto a defender e a vertigem a atacar
A solidez defensiva da França traz consequências à forma como ataca. Seria irrisório pedir a uma equipa tão confortável a defender mais atrás que apresentasse um futebol envolvente e se cimentasse no meio-campo ofensivo com todos os homens, deixando imenso espaço para cobrir.
A seleção de Didier Deschamps é, assim, uma seleção com mais-valias muito claras e que, de forma quase sempre vertical e algo vertiginosa, procura chegar perto da área. E o técnico francês voltou a escolher perfis muito específicos para estas funções.
Foi com alguma surpresa que N’Golo Kanté, depois de longos meses sem ter espaço nas convocatórias e depois de uma temporada no quinto lugar da Arábia Saudita marcada por alguns problemas físicos, regressou à seleção francesa. Está a ser um dos destaques do Euro 2024 e, novamente, as qualidades do pequeno médio com bola vão sendo esquecidas por muitos que, boquiabertos com a capacidade que Kanté tem no vai e vem e nas coberturas defensivas. Não que N’Golo Kanté não seja esse médio engolidor de espaço e fundamental nas transições defensivas (que o é). Mas é, também, o principal dos médios na transição ofensiva, pela condução e transporte de bola. A mesma energia que leva Kanté a recuperar metros atrás da bola, é a mesma que o torna no médio com maior capacidade de, depois da França ter bola, aproveitar os espaços livros. A provável titularidade de Eduardo Camavinga, também ele lançado a conduções desenfreadas (e tecnicamente mais espetaculares) pode reduzir o peso nas costas do médio do sorriso vibrante.
Ofensivamente, a França ataca mais pela esquerda. A presença de Theo Hernández, agressivo em condução e na chegada à frente e a capacidade de se meter também meter por dentro e as trocas posicionais de Kylian Mbappé com o avançado mais centralizado criam perigo antes sequer de o criar, na maneira como obrigam o adversário a pensar estrategicamente na melhor maneira de travar o volume ofensivo deste corredor. As permutas de Kylian Mbappé – limitado pela máscara de que, notoriamente, se quer ver livre – com o avançado que pode ser Marcus Thuram ou Randal Kolo Muani – que contra a Bélgica encontrou uma pequena redenção depois do lance na final do Mundial 2022 que ainda o atormenta – são ponto forte da França que acelera, ataca espaços e tem neste lado capacidade física aliada à técnica para fazer diferenças.
A maior dúvida de Didier Deschamps será o posicionamento de Antoine Griezmann. Quanto maior for a liberdade para o vagabundo Antoine se movimentar no espaço ofensivo, mais perigosa é a seleção francesa. No entanto, a entrada do terceiro médio contra a Bélgica levou o avançado do Atlético Madrid a ser encostado à direita. Além da posição de partida mais lateral, estar tão longe do centro de jogo, retirou toda a influência de Antoine Griezmann, habituado a ser um elemento omnipresente em campo e a jogar ao ritmo que a bola pedia. O plano original de Didier Deschamps tinha Ousmane Dembelé aberto à direita e é impossível pedir a Griezmann que seja o extremo aberto e forte no 1X1. A imprensa francesa vai variando as especulações entre o 4-3-3 que, com um terceiro médio, levaria Antoine Griezmann a ocupar esta função periférica, e o 4-4-2 com um losango no meio-campo que voltaria a trazer o francês para as zonas onde se sente mais confortáveis. É a primeira dúvida que Didier Deschamps terá para o encaixe com Portugal.

O França x Portugal: encaixes e dúvidas
Há um cenário que Portugal tem de evitar ao máximo: sofrer primeiro. É este o contexto onde a França se sente mais confortável e onde o jogo se tornará traiçoeiro para a equipa de Roberto Martínez.
Não será surpreendente quando Portugal acabar o jogo com mais posse de bola e um maior domínio posicional. O maior desafio de Portugal não será ter bola, mas sim saber usá-la perante uma equipa que, mesmo não se fechando tanto como a Chéquia, a Geórgia ou a Eslovénia, apresentará um desafio semelhante numa escala imensamente superior. Tal como todas as seleções com quem Portugal sentiu dificuldades, a França também está confortável a não ter bola e a esperar por Portugal. A diferença, absolutamente superlativa, está na capacidade que, quando recuperar a bola, a seleção francesa terá de ferir uma transição defensiva portuguesa que mostrou problemas em todos os jogos.
Por esta razão, não ser a primeira equipa a sofrer é absolutamente fundamental para Portugal não ficar desconfortável em jogo. Sofrendo primeiro, a França terá a faca e o queijo na mão para não ser obrigada a descurar defensivamente e as condições perfeitas para, aproveitando o balanceamento de Portugal, matar o jogo em transição. Didier Deschamps ainda não teve de assumir riscos no Euro 2024 nem de dar a volta a um resultado.
Apesar da importância do trabalho de João Palhinha sem bola – e das exigências que a França apresentará neste sentido – o primeiro médio de Portugal na saída poderá não ser necessariamente o português. Tendencialmente, a França não vai pressionar muito alto, focando-se mais no condicionamento e na ocupação de espaços, fazendo a bola desaguar para zonas mais laterais ou afastadas da baliza e procurando impedir os médios de jogarem de frente para o jogo dentro do bloco.
São também expectáveis duelos interessantes pelos lados do campo. À esquerda, e dependendo da posição de Griezmann e da liberdade que o francês terá, Portugal pode aproveitar. Jules Koundé pode funcionar como lateral baixo ou ser o elemento surpresa, projetando-se para receber nas costas do extremo (deverá ser Rafael Leão), mas ambos os cenários podem permitir a Portugal criar perigo. Não se projetando o lateral e Rafael Leão terá espaço para receber e acelerar com bola no pé, ganhando vantagem sobre o lateral. Se Jules Koundé se projetar, procurando ganhar a frente do extremo na fase ofensiva, haverá espaço para Portugal aproveitar.
À direita os desafios serão diferentes, e não será novidade se Roberto Martínez lançar um lateral como Diogo Dalot com um perfil mais conservador e sólido defensivamente para os duelos com Kylian Mbappé. Proteger este corredor, onde a França concentra maior talento, definirá muita da estabilidade defensiva que Portugal terá (ou não). Por outro lado, ter Diogo Dalot e Bernardo Silva no mesmo lado não é casamento perfeito e a posse de bola demasiado estéril limitará Portugal ofensivamente.
Por fim, Cristiano Ronaldo terá uma noite particularmente complicada. A forma como William Saliba, geralmente o central da marcação e dos embates físicos, se tem superiorizado nos duelos explica muito da solidez defensiva da França e, aos 39 anos, o capitão de Portugal não tem, naturalmente, os mesmos argumentos para funcionar como referência. Até onde baixará Cristiano Ronaldo para jogar com bola no pé e quem fará os movimentos compensatórios que tantas vezes têm faltado será chave no jogo de Portugal. De outra maneira, será muito difícil não ver Cristiano Ronaldo engolido nos possantes centrais franceses. É também aqui que, apesar de tudo, pode estar uma das soluções para Portugal desbloquear o jogo.
Se William Saliba é um central muito regular e a um nível muito alto, Dayot Upamecano tem variações nas suas exibições, capazes de passar do 8 ao 80 muito facilmente. A qualidade do defesa é inegável, mas a inconsistência (entre jogos e até dentro do mesmo jogo) pode ser explorada por Portugal, aproveitando os deslizes comprometedores que, ocasionalmente, o central deixa.
A menos que uma ausência de preparação ou de reação dentro do jogo deixe a nu fragilidades por demais evidentes, o jogo vai decidir-se em detalhes. E, são estes detalhes, que podem mudar toda a história. Éder já o fez uma vez.
