O estrebuchar do super Dépor – A Liga dos Campeões 03-04

    Já não era o Super Dépor de Arsenio Iglesias, apesar de ser ainda o do grande arquitecto do projectão, Augusto César Lendoiro.

    Arsenio, treinador que começou a epopeia no princípio dos 90, conseguindo dois segundos lugares e uma Copa del Rey (1995), na ressaca da tragédia do penalty de Djukic, dera lugar primeiramente a Toshack (o ex-Sporting, que em Espanha ganhara a Copa pela Real Sociedad e o campeonato pelo Real Madrid) e este, pelo retumbante fracasso, foi obrigado pela afición a chegar-se para o lado porque vinha aí Carlos Alberto Silva.

    Com a esperança que a nacionalidade fosse factor preponderante no aproveitamento dos talentos de Rivaldo, Flávio Conceição e Djalminha, os craques que tinham chegado do Palmeiras a troco de muito dinheiro (conseguido por Lendoiro ao negociar os direitos televisivos de forma independente com o Canal Plús por um equivalente a 135 milhões de euros; Rivaldo custaria 7,5 e o Barça bateria a cláusula um ano depois: 25). Nada feito, em 1997-98 há um 12.º lugar final na La Liga.

    Chega a oportunidade de Javier Irureta, o criador da segunda vida do Super Dépor, aquele que lhe dará projecção internacional via Liga dos Campeões. Quartos da Taça UEFA em 1999/00 (com direito a boa vitória caseira frente ao Arsenal de Wenger), Quartos da Liga dos Campeões em 2000/01 (com dois primeiros lugares nas duas fases de grupos e uma panenkada de Djalminha em pleno San Siro a dar a segunda qualificação), novamente Quartos milionários em 2001/02 (caindo perante os diabos de Sir Alex Ferguson) e segunda fase de grupos no ano a seguir, conseguida à conta de grandes vitórias como o 2-3 em Munique, com o hattrick de Makaay, ou o 2-0 de vingança a Ferguson.

    O último grande Deportivo já não tinha Bebeto, Donato, Djukic, Rivaldo, Flávio Conceição, Turu Flores ou Pauleta, mas no Riazor não se ouviam lamentações de nostalgia. Assentando a equipa no tradicionalmente espanhol 4-2-3-1, Irureta reverenciava os craques do passado com outros craques, tão bons ou melhores: Naybet, Fran (pai de Nico González), Mauro Silva ou Djalminha, lendas da primeira vaga de sucessos, assumiam agora ascendente moral e disciplinar sobre Scaloni (o tal que fez da Argentina campeã do Mundo), Capdevilla, Duscher, Luque, Valerón, Diego Tristán, Pandiani ou Jorge Andrade, o centralão português resgatado ao Porto em 2002.

    A última grande demonstração de fúria galega para toda a Europa começou sem sobressalto, porque à terceira jornada da fase de grupos já o Dépor contava sete pontos e estava tudo encaminhado. Naturalmente, poderemos dizer agora e diziam todos na altura, olhando o nível dos adversários – AEK, PSV e Mónaco. Mas eis que à 4.ª jornada acontece isto.   

    Era o recorde de golos num jogo da Liga dos Campeões e manteve-se até ao 8-4 do Borussia de Tuchel ao Legia Varsóvia, algures em 2016-17. O Mónaco era o de Didier Deschamps, tinha Evra, Rothen, Prso ou Giuly mas ninguém os considerava como favoritos a nada, nem mesmo na Ligue 1, onde reinava o Lyon de Juninho. Jorge Andrade ainda hoje refuta aqueles que argumentam que sim, a caminhada até à final foi merecida e aquele jogo já dava a entender uma equipa especial. Aos microfones do Jogo de Palavra, podcast de Rui Miguel Tovar para a Rádio Renascença, deu contexto à portentosa vitória monegasca:

    «O Manuel Pablo, logo no primeiro lance, oferece ao Giuly (foi ao Rothen) de cabeça e é golo; eu jogava no lado dele, o direito, e nessa semana nasceram-me os meus filhos e o treinador dizia ‘este nem dorme!’; O Naybet ‘tava de Ramadão, só podia comer à hora do jogo;  e o Romero estava com uns problemas, tinha tido um acidente de bicicleta e estava um bocado alterado. Ou seja: defesa p’ó galheiro! (…)  O treinador ia falar, 5-2 ao intervalo, e o Molina interrompe: ‘peço desculpa a todos, vou-me ausentar que me dói a barriga’.

    O único motivado depois do intervalo era o guarda-redes suplente, o Múnua, porque se ia estrear na Liga dos Campeões. ‘Dale! Vamos! Dale!’ – e ainda levou mais três bombocas!»

    Foi mesmo só uma má noite. A coisa resolveu-se, segundo lugar no grupo em igualdade pontual com o PSV, terceiro classificado, mas vantagem no goal average. Objectivo cumprido, a ver o que se dizia o sorteio: ups, calhou Juventus. Mas o susto inicial não atemorizou aquele Depor, habituado já àquele nível. A Juve tinha sido finalista no ano anterior, tinha Buffon, Thuram, Nedved (Bola de Ouro 2003), Camoranesi, Del Piero e Trezeguet –  e constelação tão grande não conseguiu iluminar nem o Riazor, onde para se evidenciarem perante os frios e os nevoeiros da Galiza os adeptos eram (e são) especialmente barulhentos, nem o Delle Alpi, o sombrio colosso de betão que mais sombrio ficou quando Pandiani, o bruto e impertinente uruguaio que servia primariamente como joker, assinou no livro de presenças e fez o mesmo resultado que no jogo de ida: 1-0. Dois a zero no agregado e viagem marcada para Milão, para defrontar o outro finalista (e campeão) da última Champions.

    Era Carlo Ancellotti o treinador, Rui Costa ia dando o lugar a Káká, Pirlo surgia junto a Gattuso e Seedorf, Cafu e Maldini escudavam Dida, Shevchenko como homem golo. Ninguém precisa que lhe relembrem os nomes daquele Milan, mas repetimos para agigantar o feito dos da Corunha. Depois dum 4-1 sofrido em San Siro, conseguiram mesmo esta proeza:

    A reviravolta extraordinária pode estar envolvida em rumores de doping e histórias estranhas, mas a performance daquele Depor deu a entender à Europa que a temporada era de quem mais queria e não de quem mais podia, aconselhando os habitués a descansarem.

    Noutra eliminatória, o Mónaco virava um 4-2 sofrido no Bernabéu com um afirmativo 3-1 no Luís II, com show de Morientes sobre os Galáticos; e o Chelsea, já com Abramovich, mas ainda sem Mourinho, fazia tropeçar os Invencíveis de Wenger, primeira e única equipa até hoje a ser campeã inglesa sem derrotas.

    Mourinho eliminara Manchester United e Lyon e o sorteio ditava-lhe então o Super Dépor em sorte. Ao contrário das outras eliminatórias, ninguém no Dragão sabia como seria a abordagem adversária – estreante naquela fase, não era tão óbvio que existissem pretensões de domínio da posse como se identificavam em ingleses ou franceses, equipas que dominavam internamente e de clara propensão ofensiva.

    Irureta, como Mourinho, adorava quando lhe davam espaço para transições e nunca se importou em não ter a bola. Não tinha problema em tornar a equipa expectante do erro adversário. Tanto cálculo táctico deu o aborrecido empate a zero no Dragão na primeira parte, com o único grande acontecimento de registo a expulsão de Jorge Andrade. O senhor do apito não era obrigado a saber que entre o central português e Deco, a vítima no lance casual, havia amizade imensa. O luso-brasileiro foi ao chão, Jorge Andrade mandou-o levantar com a cumplicidade de maiores amigos – ao pontapé, sem força ou maldade. O caricato vermelho entrou para a História como anedota.

    Mas nessa mesma noite, José Mourinho desvendava o trunfo que desataria o nó na segunda mão, puxando das suas notórias e clarividentes qualidades de premonição futebolística. Aos microfones da Italia 1, da rede transalpina Mediaset, o treinador portista concluía um leque de declarações da seguinte forma:  «Para além do mais, na Corunha, teremos uma outra arma, que se chama Derlei.» Dias depois, reforçava. «O Derlei é, de facto, um argumento de peso. Se calhar não vai poder alinhar nos 90 minutos da partida, mas desde que o possa ter disponível para jogar, ainda que seja no banco, mas para poder entrar mais tarde, acho que é também um argumento do ponto de vista psicológico.[1]»

    O Super Dépor não perdia no Riazor há 10 jogos para a Liga dos Campeões, e ainda não tinha sofrido golos nessa época. Nem os dois gigantes do Calcio tinham conseguido superar a muralha. Pedia-se ao Porto quase o impossível – segurar um ataque que conseguira 19 golos nos 10 jogos milionários e quebrar a impenetrável barreira defensiva. O jogo foi fechadinho, durinho, e só de penalty Derlei conseguiria fazer cumprir a profecia de Mourinho.

    Ingloriamente, perante o seu público, acabava ali o grande Deportivo da Corunha. No ano seguinte, ainda com Irureta, a fase de grupos europeia já seria cinzenta (com quatro derrotas e dois empates) e o oitavo lugar na La Liga tirava os importantíssimos milhões dos cofres de Lendoiro.

    Perdera-se já o avanço ganho pela negociação pelo Canal Plús, o futebol espanhol avançara no tempo e o Depor não saberia acompanhar, nem muito menos renovar-se. Luque ainda renderia 14 milhões de euros, dados pelo Newcastle em 2005, venda provocada pelos graves problemas de tesouraria. A equipa foi-se estabelecendo gradualmente na metade inferior da tabela doméstica e a queda para a Segundona aconteceria em 2011.

    Apesar do regresso logo no ano seguinte, com recorde de pontos e vitórias, o golpe final surgiria em 2013, com a Agencia Tributária a embargar todos os rendimentos galegos, desde receitas de bilhética a patrocínios. Don Augusto Lendoiro, depois de tanto sucesso ao longo de 25 anos, era vergado ingloriamente pelo peso do futuro, assumindo uma dívida de 34 milhões de euros.


    [1] https://www.record.pt/futebol/futebol-nacional/liga-betclic/fc-porto/detalhe/derlei-sera-arma-no-riazor

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    Pedro Cantoneiro
    Pedro Cantoneirohttp://www.bolanarede.pt
    Adepto da discussão futebolística pós-refeição e da cultura de esplanada, o Benfica como pano de fundo e a opinião de que o futebol é a arte suprema.