Os meses de setembro depois de uma grande competição são sempre especiais de acompanhar pela renovação “obrigatória” das seleções nacionais. Entre revoluções no núcleo duro e ajustes ocasionais, a história de Portugal e de todos os países do globo foi sempre determinada pelas escolhas feitas numa altura em que, por muito longe que esteja, o Mundial 2026 já se começa a jogar. E Roberto Martínez sabe disso.
As mudanças de Roberto Martínez
Desde logo porque qualquer jogador convocado em setembro de 2024 tem reais aspirações a jogar a competição. De outra maneira, não fazia sentido fazer todo o percurso que, mesmo com a Liga das Nações, é guiado em torno da maior competição do mundo. Depois porque, findado o ciclo anterior, a renovação é feita. Roberto Martínez fê-la em modo q.b.
Tiago Santos, Renato Veiga e Geovany Quenda são apostas claras feitas a pensar num novo ciclo. Os regressos dos injustiçados Pedro Gonçalves e Francisco Trincão, que fizeram para merecer bem mais noutras alturas, e a integração de Rui Silva no seio do grupo são também eles evidências da necessidade de renovar. As próximas convocatórias ditarão se foi apenas necessidade ou se há vontade a balizar todas as escolhas do selecionador de Portugal. A lesão de Otávio e as chegadas tardias de Danilo Pereira e João Cancelo à Arábia Saudita varreram para debaixo do tapete um problema que as convocatórias inquestionáveis de Rúben Neves e Cristiano Ronaldo levam a crer que, para Roberto Martínez – e como o próprio admitiu – não existe.
Não seria expectável e muito menos recomendável uma revolução nos eleitos de Portugal. Ainda assim, há nomes que ficaram de fora e que, nos próximos tempos, poderão ser importantes para o núcleo de Roberto Martínez. Jogam todos na Primeira Liga, já vestiram a camisola das quinas nos escalões de formação e têm potencial para, mais convocatória, menos convocatória, serem chamados a representar a seleção principal. Podiam ser muito mais, mas, como a temporada acabou de começar, são só cinco.
Aos olhos de Roberto Martínez: Eduardo Quaresma (Sporting)
Não há carreiras iguais, muito menos percursos iguais. O de Eduardo Quaresma foi o seu. O central era, na formação do Sporting, um dos nomes mais entusiasmantes e badalados, merecendo a estreia na equipa principal dos leões em 2020, com apenas 18 anos.
A estreia foi precoce, mas os erros frequentes e a necessidade de crescer levaram a alguns altos e baixos nos anos seguintes. O empréstimo ao Tondela não foi convicente a 100% e a passagem sem relevo pela Alemanha (jogou mais pela equipa B do Hoffenheim que pela principal), fez temer o pior. De forma surpreendente Eduardo Quaresma foi aposta de Rúben Amorim na última época diante do FC Porto e tem-se consolidado desde então, garantindo a única coisa que precisava para se afirmar como sénior: consistência.
Esta temporada tem sido titular indiscutível no Sporting e mostrado uma subida no nível no seu jogo. Mantém intactos os principais atributos que já evidenciava na formação – capacidade de antecipar, velocidade para defender mais alto e condução – e vem desenvolvendo a agressividade nos duelos e o foco e concentração. Oferece conforto com e sem bola, do ponto de vista defensivo, está mais sólido e acutilante e está a tonar-se um construtor de excelência, aliando a capacidade de romper e queimar linhas com a variabilidade com que mete o passe.
Roberto Martínez tem tido dificuldades na constituição da linha defensiva e só com Pepe – já reformado – apostou numa dupla de centrais. Rúben Dias é nome certo seja numa defesa a 2 ou a 3, mas em nenhuma tem garantia de parceiro ou parceiros. Eduardo Quaresma já merecia ser testado nesta paragem de seleções e, mantendo o nível, merecerá ser chamado algures nos próximos meses.
Tomás Araújo (Benfica)
Não sendo igual, o caso de Tomás Araújo tem algumas parecenças ao de Eduardo Quaresma na medida em que ambos foram vítimas das expectativas desmesuradas e da transição, tantas e tantas vezes complicada, para o futebol sénior.
Parelha de António Silva na conquista da UEFA Youth League do Benfica, Tomás Araújo partia à frente do companheiro de posição na hierarquia de centrais da Luz. A chegada de Roger Schmidt e o amadurecimento precoce de António Silva, atiraram o central natural de Vila Nova de Famalicão para um lugar incerto. Em 2021/22 jogou por quatro equipas diferentes (sub-19, sub-23, B e principal) e beneficiou do empréstimo ao Gil Vicente na última temporada.
Obrigado a jogar mais tempo sem bola, Tomás Araújo recebeu estímulos que em todo o percurso de formação no Benfica, raramente teve. Renato Paiva, que orientou o central na formação, abordou recentemente este fator que explica a dificuldade de tantos e tantos centrais se afirmarem no futebol profissional: na formação, são raros os clubes que obriguem Benfica, Sporting e FC Porto a passar muito tempo em organização defensiva, privando os jogadores destes estímulos.
No Gil Vicente, Tomás Araújo pode errar e crescer principalmente na definição da linha defensiva – perfilhamento corporal, capacidade de jogar a lado, controlo do espaço nas costas – e na agressividade e impetuosidade nos duelos. Com bola é um dos centrais jovens com melhor passe no mundo, capacidade que, num Benfica nada entusiasmante, ainda é mais necessitada. O maior estatuto de António Silva justificou a chamada, mas se Tomás Araújo continuar a ganhar minutos no Benfica, Roberto Martínez terá de tomar uma decisão.
Tomás Handel (Vitória SC)
A Primeira Liga será tão melhor quanto maior a qualidade se dividir pelos vários clubes. Resistir à tendência natural de concentrar os melhores jogadores em três ou quatros clubes é a principal maneira de fazer o campeonato português crescer. E Tomás Handel é uma destas evidências.
A lesão gravíssima que Tomás Handel sofreu em fevereiro de 2022 e que se arrastou por quase um ano adiou a afirmação do médio que, desde cedo, se percebeu ter um potencial enorme. A forma como recuperou o nível depois de um problema tão grave ajuda a comprovar que todo este potencial já é, na realidade certeza, não fosse Tomás Handel um dos melhores jogadores desta edição da Primeira Liga. Por cá continuar depois do mercado de transferências é uma das melhores notícias que setembro podia trazer.
É um médio que se assume como primeiro construtor, aproximando-se dos defesas para trabalhar e distribuir a bola. Não se limita ao papel de quarterback, virando o jogo com passes longos. Antes trabalha-o, associando-se com os colegas mais criativos, encontrando saídas para facilitar a progressão e metendo passes verticais dentro do bloco adversário. O Vitória SC quer jogar e a valorização do corredor central – para construir e chegar à outra área – vai valorizando, por consequência os melhores jogadores vimaranenses.
A chamada de Jota Silva à seleção na convocatória de março não foi inocente. Roberto Martínez quer provar que está atento a todos os palcos do futebol português, mas olhar para lá dos nomes mais óbvios é um desafio. Por rendimento nesta época, são poucos os jogadores que mais mereciam uma convocatória. Continuando neste nível absurdo, Tomás Handel vai fazer-se ouvir cada vez mais. Até porque Ralf Rangnick pode aproveitar e provocar dissabores.
Daniel Bragança (Sporting)
Sensivelmente três meses e meio depois da lesão de Tomás Handel, Portugal perdeu mais um dos artistas que apaixonam meio-campos e aproximam relvados de telas de arte. Daniel Bragança também esteve um ano afastado da felicidade pelos piores motivos, mas recuperou a tempo de ser importante num Sporting que foi campeão.
Daniel Bragança nasceu em 1999, ano a emoldurar na história recente do futebol português. Franzino e com um grande recorte técnico, integrou a apaixonante seleção finalista do Euro Sub-21 em 2021. Era na altura um 6 colocado tão atrás no terreno para ver o jogo de frente e afastar-se dos duelos intensos no meio-campo.
Resistir aos estereótipos relacionados a palavras como intensidade ou agressividade, como se o tamanho dos músculos fosse revelador da qualidade dentro de campo era o principal desafio da carreira do médio. Foi superado graças à inteligência e estética nas ações com bola, mas também por uma maior consciência do que fazer sem bola permitiram a Daniel Bragança ganhar destaque. E a acutilância sem bola até se manifesta mais no momento ofensivo, ganhando impacto rompendo no espaço para receber. Enquanto o futebol se jogar com bola, jogadores como Daniel Bragança terão sempre espaço.
Não sendo um titular indiscutível no Sporting será complicado ver Daniel Bragança como um nome nas escolhas de Roberto Martínez. Ainda assim, e quando os jogos se forem acumulando, o português voltará a ganhar espaço nas opções de Rúben Amorim e, consequentemente, nas dúvidas do selecionador de Portugal.
Fábio Vieira (FC Porto)
Ponto prévio: ao contrário dos quatro jogadores mencionados anteriormente, seria impensável sequer cogitar Fábio Vieira para a convocatória de setembro. Situação que, seguindo a ordem natural das coisas, será diferente nas próximas paragens para a seleção.
Dar um passo atrás era fundamental para a carreira de Fábio Vieira. O médio tem um perfil muito específico que, no Arsenal, estava-lhe tapado pelo melhor jogador do plantel. Sabendo que os extremos do Arsenal jogam mais abertos e são jogadores de desequilíbrio no drible, na mudança de velocidade e no 1X1, o espaço para o português era a meia-direita para se poder associar por dentro e acionar o pé esquerdo. Ter Martin Odegaard como concorrente, travou a evolução do médio.
Não há nenhum jogador português – a este nível – com os atributos de Fábio Vieira. Mesmo Bruno Fernandes, também ele um ávido desequilibrador no passe e no remate, tem um perfil mais conservador que o novo jogador do FC Porto. Recebendo sobre a direita e tendo a possibilidade de acionar o pé esquerdo, as bolas de Fábio Vieira têm um perfume diferente. O médio de 24 anos tem a capacidade de resistir ao manual e de procurar uma solução fora da caixa. Ganha jogos por si.
Ainda está para ver o encaixe no FC Porto que, estando refém de Francisco Conceição, encontra um jogador totalmente perfeito para agitar o jogo a partir da meia direita. Mais certo parece que, quando estiver perfeitamente entrosado, Fábio Vieira se torne num dos principais destaques da Primeira Liga e que, de um dia para o outro, passe loucamente a bater à porta de Roberto Martínez. Os génios são diferentes.