MUNDIAL, 2006
A Inglaterra voltaria a intrometer-se entre mim e a seleção portuguesa de futebol. No mundial de 2006, Portugal entrava em campo para defrontar a equipa de Ferdinand, Lampard, Beckham, Rooney, no mesmo dia em que eu subia a palco para dar vida às palavras do mais conhecido e conceituado dramaturgo inglês: William Shakespeare. Uns quartos de final de um mundial cheio de suspense e eu a preparar-me para ver o meu Romeu morrer, para morrer depois também, tudo com a assinatura de um inglês. Sempre a sofrer de amor. Raios partam esta sina.
O tempo avançava, e eu continuava colada à pequena televisão do quarto. A bola teimava em não tocar a rede. Acabei por perder o comboio das 17h. “Só mais um bocadinho, só mais um bocadinho”. Portugal entrava em tempo de compensação com o jogo a zero. Eu percebia que íamos acabar em penáltis, outra vez, a fazer lembrar o euro 2004, esperava eu. Voltava a olhar para o relógio. Nada a fazer. Tinha de correr até à estação, os penáltis seriam ouvidos pelo rádio do telemóvel.
Acabei por apanhar um comboio regional que partia da Régua com destino a Porto – São Bento. O comboio apinhado de pessoas e bagagens. Eu a colar os fones aos ouvidos. Era agora. O comboio apitava assinalando a partida de Paredes e o início da marcação de penaltis. Simão Sabrosa convertia a primeira grande penalidade e eu tinha um espasmo, uma espécie de grito contido. Os meus “colegas de carruagem” aperceberam-se nesse momento que eu estava a ouvir o relato. Era a única naquela carruagem com acesso ao relato.
Rapidamente tive olhinhos desconhecidos colados em mim. O relator a transmitir-me a vibração de milhares no estádio, os viajantes a aguardar a minha reação, expectantes, primeiro tímidos, depois assumindo-se, voltando-se para mim, alguns aninhados no corredor do comboio. À medida que os penáltis avançavam, nós deixávamos de ser desconhecidos. Estávamos unidos naquele sofrimento. Comecei a relatar o que ouvia pela rádio:
– É o Lampard agora. Vai marcar o Lampard agora.
Fez-se silêncio na carruagem. Alguém se benzia. O Lampard a correr para a bola, o comboio cheio a deslizar pelos carris. Não se ouviam vozes, só o comboio e, na nossa imaginação, os pés do Lampard a bater na bola. Os olhos arregalados, colados em mim, o meu coração a disparar:
– Defendeu! O Ricardo defendeu!
Festejou-se, um festejo ainda tenso porque sabíamos que era só o início. Com efeito, era a vez de Hugo Almeida.
– Vamos Portugal, vamos Portugal! – suplicava alguém.
A minha voz foi seca, como quem não quer ser portadora de más notícias:
– Falhou.
Os corpos a fazerem aquela dança de desalento já habitual nos estádios. O pescoço deixa de suportar o peso da cabeça que primeiro tomba para trás e depois para a frente para se afundar nas mãos. O corpo escorrega na cadeira.
– Calma, calma. Ainda falta muito.
Eu tenho sempre esperança no futebol. Acredito sempre.