Gay Games 2023: A história de um evento marcado por orgulho, inclusão e controvérsia

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Os Gay Games são, à semelhança dos Jogos Olímpicos, uma série de eventos desportivos, com uma particularidade: são direcionados à comunidade LGBTQI+, abertos à participação de qualquer pessoa, independentemente da orientação sexual e/ou da sua identidade de género. Os Gay Games decorrem de quatro em quatro anos, desde 1982, tendo as primeiras duas edições decorrido em São Francisco e a mais recente, em 2018, teve lugar na cidade de Paris.

A edição de 2023 é a primeira a decorrer em dois locais: Hong Kong, na China e Guadalajara, no México e decorre entre os dias 3 e 11 de novembro

A HISTÓRIA

Tudo começou em 1968, nos Jogos Olímpicos da Cidade do México, quando Thomas F. Waddell, membro da equipa americana de decatlo, ficou com a impressão de que a maior honra associada aos Jogos Olímpicos não estava relacionada com o resultado, mas sim com a participação no evento.

Em 1981, Waddell propôs a ideia dos “Jogos Olímpicos Gay” numa cerimónia de entrega de prémios. Contudo, a utilização do termo “Olímpicos” não foi bem recebida pelo Comité Olímpico dos Estados Unidos que processou Tom Wadell e o grupo de pessoas que o ajudavam a organizar o evento. Como tal, viram-se obrigados a riscar a palavra “Olímpicos” de todo o material, nomeadamente promocional, que fora criado para o evento.

“Eu nunca os vi como donos da palavra ‘Olímpicos’. Então, eles estavam a processar-nos, mas encontrámos os Jogos Olímpicos de Ratos, Jogos Olímpicos de Bombeiros, Jogos Olímpicos de Polícias. Eu não os vi a processar Las Vegas por causa dos Jogos Olímpicos de Poker. Tivemos de tirar a palavra ‘Olímpico’ de tudo o que tínhamos feito” Sara Wadell Lewinstein, esposa de Tom Wadell (até ao seu falecimento, em 1987), em declarações à BBC

A ideia materializou-se um ano depois, com a edição inaugural dos Gay Games a ter lugar em São Francisco.

O objetivo do evento repercutia o sentimento de Thomas Waddell em 1968. De acordo com o site oficial da edição dos Gay Games em Guadalajara, o objetivo passava por criar um espaço inclusivo onde vários atletas competissem, valorizando mais o esforço pessoal do que os resultados.

Em 1982, 1350 atletas rumaram a São Francisco para competir em 17 modalidades. Em 1986, a cidade americana já acolhia 3500 atletas e artistas que participariam em 21 modalidades. Na primeira iteração dos Gay Games, 12 nações alinharam, número que subiria para 17. O maior número de atletas em competição foi no ano de 1998, quando os Gay Games chegaram à Europa pela primeira vez, organizados por Amesterdão, com mais de 13 mil pessoas.

O recorde atual de nações presentes foi estabelecido em Paris 2018, quando 91 países enviaram uma comitiva para competir em 36 modalidades. Foi nesse ano que Portugal fez a sua estreia, arrecadando 11 medalhas, quase todas na natação, incluindo duas medalhas de ouro, com Mariane Venâncio (nos 100 livres) e Pedro Ferraz (na prova de estafetas). Jonas Grancha, Álvaro Cardoso, João Boavida, Miguel Patrício (todos na natação) e Nathan Metz (este último no ténis).

Desta forma, a atração principal do evento é a inclusão, assim como o desporto. Ainda assim, o evento não se fica pelas celebrações e pelas modalidades. Alberga também conferências académicas e eventos culturais. Contudo, a presente edição esteve envolta em controvérsia e problemas logísticos que levaram a uma adesão substancialmente inferior à que se esperava.

A CONTROVÉRSIA EM TORNO DOS GAY GAMES 2022 2023

Na cerimónia de encerramento da 10ª edição dos Gay Games, em Paris, foi hasteada a bandeira do anfitrião para a edição de 2022, na qual se assinalariam os 40 anos do evento: a bandeira de Hong Kong, Região Administrativa Especial na China, que se esperava ser anfitrião único dos Gay Games.

Contudo, a pandemia da COVID-19 aconteceu e causou uma situação de calamidade, com protocolos de restrição que impediram Hong Kong de receber o evento em 2022. Como tal, a organização optou por adiar os Gay Games para novembro de 2023, com a cidade de Guadalajara no México, a assumir o papel de coanfitriã, uma situação que nunca tinha ocorrido na história do evento. Guadalajara tinha sido a segunda cidade mais votada para receber o evento, por isso é que foi escolhida para ser uma das sedes da edição quadragenária.

De acordo com a Reuters, originalmente, esperavam-se 12 mil participantes, 75 mil espetadores e 3 mil voluntários de 100 países diferentes. A agência de notícias indica que uma semana antes do início dos jogos, Guadalajara contava com 2 458 participantes; Hong Kong com 2 381, o que equivale a um total de 4 839 atletas, levando a que, pela primeira vez em 40 anos, os Gay Games tenham menos de 8 mil inscritos.

Eventos de pista, hóquei em campo e rugby de sevens foram três das modalidades canceladas em Hong Kong, devido ao número reduzido de inscrições.

A decisão de dividir o evento por duas cidades não foi bem recebida, por questões logísticas e de segurança. A Federação dos Gay Games admitiu à Reuters que esta divisão pode ter afetado o número de atletas registados, mas ressalvou a confiança de que isso era um convite a pessoas de uma maior diversidade de locais “a celebrarem o desporto LGBTQI + connosco”.

Em relação à segurança, o mesmo porta-voz assegurou que tinham sido tomadas as medidas adequadas para garantirem a segurança das pessoas LGBTQI + nas cidades anfitriãs.

 Hong Kong é o primeiro território asiático a receber os Gay Games, mas não tem propriamente legislação favorável à comunidade LGBTQI +. Em Hong Kong, o casamento entre casais do mesmo sexo é ilegal e a discriminação de indivíduos em função da orientação sexual e/ou da orientação de género não é considerada ilegal pela legislação da nação.

Como tal, a oposição local fez-se sentir logo nesta sexta-feira durante a cerimónia de abertura, com membros de um grupo religioso a protestar junto ao Queen Elizabeth Stadium e na semana que agora finda, o DAB, o maior partido político pró-Pequim de Hong Kong condenou a realização dos Gay Games por incorrer contra os “valores familiares tradicionais”.

Esta discriminação não passa despercebida aos intervenientes dos Jogos, com Helene Germain, Vice-Presidente da Federação de Desportos LGBTQI + de França, a admitir em declarações à France 24 que existiam atletas da comitiva gaulesa que “não queriam ir a Hong Kong devido à situação política”. É importante referir que Hong Kong se encontra sob vigilância elevada por parte das autoridades centrais chinesas, no âmbito de uma Lei de Segurança Nacional aprovada em 2020 e motivada pelos protestos pró-democracia de 2019.

Wayne Morgan, atleta australiano é uma das vozes que aponta a baixa afluência de atletas, derivada da divisão dos Jogos em duas cidades, como algo que pode afetar a afluência ao evento no futuro, uma ideia rebatida pelo porta-voz dos Gay Games.

“Do fundo do meu coração, quem me dera que o evento fosse totalmente cancelado e pudéssemos saltar para Valência 2026” Wayne Roberts, em declarações à Reuters.

Em 2022, Roberts esteve em Guadalajara para uma conferência de promoção dos Gay Games. Acabou por ser drogado e assaltado. Quando se dirigiu a um posto da polícia para apresentar queixa, o que lhe disseram foi: “isto acontece muito”.

A própria Secretaria dos Estados Unidos coloca o Estado de Jalisco, do qual Guadalajara é capital, como um destino de viagem a reconsiderar, devido ao risco de rapto.

A Federação dos Gay Games incentivou os visitantes dos dois territórios a serem si próprios durante a sua estadia, mas pediu para que respeitassem as leis e tradições locais, sendo que as comitivas do Canadá, Reino Unido e Austrália, admitiram ter em consideração o contexto sociopolítico vigente nas cidades.

Hong Kong é uma Região Administrativa Especial, logo, com maior independência em relação à China, à semelhança do que acontece com Macau. Ainda assim, pertence efetivamente ao Estado chinês, uma situação que levou o Taiwan a retirar-se dos Jogos, uma vez que a sua comitiva temia pela segurança caso exibisse a bandeira do Taiwan, território cuja independência não é reconhecida pela China, em pleno território chinês.

Cinco ativistas pela defesa dos direitos humanos publicaram um editorial no qual apelaram ao cancelamento desta edição dos Gay Games e alertaram para a violação pela Gay Games Hong Kong (GGHK) que coorganiza o evento “valores e princípios dos Gay Games, que se propõem a celebrar a inclusão e a promover os Direitos Humanos”. Os ativistas acusaram mesmo os organizadores de se “alinharem com figuras pro-autoritárias responsáveis pela perseguição generalizada do povo de Hong Kong”.

O movimento classificou o caráter da Lei Nacional de Segurança como vago pelo que, segundos os ativistas, existe a possibilidade de governo de Pequim ordenar a detenção de todos os participantes por subversão. A GGHK não deixou a carta sem resposta e classificou, num comunicado oficial, a mensagem como “insinuação sem fundamento” e destacou que o propósito dos Gay Games em Hong Kong passa por “criar um impacto positivo e duradouro na forma como a sociedade encara a inclusão das pessoas LGBTQ+ em Hong Kong, na Ásia e noutros locais”.

O comunicado frisa também que apesar do casamento gay não ser legal no território, os turistas LGBTQI + podem andar livremente e ser quem são.

Esta mensagem do alargamento do poder dos Gay Games é repercutida por Wayne Roberts: “Temos de deixar de ser apenas anfitriões em cidades do ‘Primeiro Mundo’ ou ocidentais” (…) “Este é um evento tão importante para a saúde, ligação e influência global da nossa comunidade”.

Desta forma e apesar das controvérsias, os Gay Games estão em Hong Kong e em Guadalajara até dia 11 de novembro para garantir que a força da comunidade LGBTQI + se continua a fazer sentir por todo o Mundo. Em 2026, o destino será Valência, sendo que Lisboa foi uma das cidades candidatas a receber o evento nessa data.

Uma das pessoas que alinha na edição número 11 dos Gay Games é Jinsun Yang. Em declarações à AFP, admitiu que a inexistência da segregação de atletas por género foi o aspeto mais apelativo:

“A cultura desportiva é muito centrada nos homens… por isso, embora gostasse de atividades físicas, não podia realmente pertencer à cultura desportiva dominante na Coreia do Sul (…) Para pessoas como eu, que não se identificam como homem ou mulher, é um espaço mesmo agradável” disse Jinsun.

À data da escrita deste artigo, vários órgãos da comunicação social mexicana noticiam a morte de Jon Joseph. De acordo com o El Diario NTR de Guadalajara, a causa da morte terá sido um enfarte do miocárdio, “ao que parece causado por uma overdose de diversas substâncias a determinar”.

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Filipe Pereira
Filipe Pereira
Licenciado em Ciências da Comunicação na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o Filipe é apaixonado por política e desporto. Completamente cativado por ciclismo e wrestling, não perde a hipótese de acompanhar outras modalidades e de conhecer as histórias menos convencionais. Escreve com acordo ortográfico.

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