
O que se viveu no último domingo no court Philippe Chatrier, é impossível de descrever em palavras. É daqueles jogos memoráveis e que irão perdurar na história do desporto mundial, não só do ténis.
5h29 (!) minutos de um jogo eletrizante (a segunda final de Grand Slam mais longa da história) com os parciais de 4-6, 6-7 (), 6-4, 7-6 (3) e 7-6 (2). Constantes mudanças de ascendente, numa partida absolutamente imprópria para cardíacos, e acredito que para quem teve o privilégio de estar presente em Paris, será um daqueles momentos inolvidáveis.
Foi um verdadeiro hino ao ténis, um contraste de estilos, no qual o tenista espanhol Carlos Alcaraz voltou a levar de vencida o seu grande rival Jannik Sinner (já são cinco vitórias consecutivas sobre o tenista italiano).
Para percebermos o seu ascendente atual (apesar de jogos decididos em ínfimos detalhes) sobre Sinner, o tenista italiano ganhou 47 (!) dos seus últimos 50 jogos. As únicas três derrotas são contra Alcaraz, a sua besta negra.
Desta vez, Alcaraz teve de ir buscar forças onde provavelmente já não as tinha, teve de fazer uso do seu lema “Cabeça, coração e coragem”, que lhe foi transmitido pelo seu avô, figura de referência do tenista ibérico.
Frente a frente tínhamos o número um e o número dois mundial para a discussão de mais um título de Grand Slam, naquela que foi certamente a primeira de muitas finais em torneios desta categoria entre estes dois extraordinários tenistas.
Ambos estavam invictos em finais de Grand Slam. Sinner tem atualmente três Grand Slam (dois no Open da Austrália e um no Open dos Estados Unidos), vinha de uma série impressionante de 20 (!) vitórias consecutivas em jogos de torneios de Grand Slam, e ambicionava conquistar o seu primeiro grande título fora do piso rápido,a sua melhor superfície.
Depois de uma meia-final de altíssima qualidade e elevada intensidade competitiva contra o campeoníssimo sérvio Novak Djokovic decidida em três sets mas após mais de três horas de jogo, o tenista italiano chegava a esta final sem um único set perdido.
Já Carlos Alcaraz, o seu adversário nesta final, havia perdido alguns sets na sua caminhada rumo a esta final, e teve jogos de elevado grau de dificuldade, nomeadamente o seu jogo de terceira ronda contra o bósnio Damir Dzumhur em sessão noturna, que esteve muito próximo de o forçar a jogar um sempre incómodo e traiçoeiro quinto set.
Teve igualmente que derrotar na ronda anterior um tenista que o havia derrotado em terra batida na única vez que se defrontaram nessa superfície (o húngaro Fabián Marozsan), deixando um set pelo caminho nesse jogo.
Depois de bater Dzumhur, protagonizou um dos melhores jogos do torneio contra o igualmente carismático e entusiasmante Ben Shelton. Um primeiro set em que Carlitos teve de salvar três pontos de set e que teve a duração de mais de uma hora. Acabou por ganhar com os parciais de 7-6, 6-3, 4-6 e 6-3 ao cabo de mais de três horas de jogo.
Superando um desgastadíssimo Tommy Paul num jogo de quartos-de-final resolvido facilmente em pouco mais de hora e meia de jogocom os parciais expressivos de 6-0,6-1 e 6-4, beneficiou da lesão e consequente desistência de Lorenzo Musetti (no seu terceiro confronto do ano em terra batida, depois de já se terem defrontado na final do ATP 1000 de Montecarlo e nas meias-finais no ATP 1000 de Roma), no quarto set que até ao momento da lesão, estava a ser provavelmente o melhor dos dois jogadores em campo.
Alcaraz chegava com muitas mais horas nas pernas do que Sinner (fator que poderia ser decisivo), que à exceção das já citadas meias-finais contra Djokovic, foi arrasando todos os seus adversários até essa fase da competição.
Convém recordar que o italiano não competiu durante três meses por estar suspenso devido a um caso de doping (no qual foi posteriormente absolvido e viu dessa forma a sua provável pena de 13 meses ser reduzida), e que só regressou à competição no Masters 1000 de Roma, tendo alcançado a final desse torneio e só sendo derrotado por Carlos Alcaraz.
Quando Sinner ganhou o segundo set num disputadíssimo tie-break, estavam jogadas “apenas” duas horas e vinte minutos de jogo. A média de tempo de jogo dos jogos do Sinner no torneio inteiro, não ultrapassava sequer as duas horas.
Quando o segundo set foi concluído, muitos pensavam que já seria impossível que Alcaraz desse a volta ao resultado (alguns terão mesmo deixado de ver a final), ainda para mais porque não estava a conseguir fazer uso do tipo de jogo que mais problemas causa a Sinner.
Algo que foi realçado pelo antigo tenista argentino Juan Martin del Potro, que chegou a comentar na sua página do X, o seguinte: “Se o Jannik não baixar um pouco o seu nível e intensidade, não vejo qualquer hipótese para o Carlitos, o que quer que ele faça, não vai funcionar, sem slice, sem amorties, ele não vai conseguir cortar o ritmo. Vou beber uns mates. Adeus”.
E certamente que esse era o sentimento e o pensamento de todos os que estavam a assistir a uma exibição estratosférica de Sinner, e a um Alcaraz amorfo, parecendo por vezes sem energia e sem soluções para o vendaval ofensivo de Sinner e a constante pressão que o mesmo lhe colocava a cada segundo serviço ou serviço menos veloz que Alcaraz lhe apresentava.
No início do terceiro set, o destino de Alcaraz parecia traçado. Sofreu uma nova quebra de serviço, e Sinner beneficiava de dois sets ganhos e do seu potente serviço para assegurar o seu primeiro título em Roland Garros e quarto Grand Slam da sua carreira, igualando dessa forma o tenista espanhol.
Mas o que se viu a partir desse momento, tem de ser contado, e mesmo assim, creio que muitos ficariam incrédulos. No jogo seguinte a quebrar o serviço de Alcaraz, Sinner (a habitual máquina perfeita de ténis até àquele momento), começou a não ser tão eficaz, a sua bola perdeu profundidade e o cansaço físico, gradualmente foi surgindo aqui e ali.
E se há jogador que sente quando o seu adversário já não está na plenitude das suas faculdades físicas, é Alcaraz. Começou a jogar de forma mais inteligente, apostando em longas trocas de bola, mas insistindo muito sobre a direita de Sinner em posição defensiva, e foi mudando paulatinamente o ascendente do encontro.
Conseguiu quebrar novamente o serviço do italiano e ficar com 3-1 no marcador, não soçobrou quando viu o seu serviço ser quebrado quando servia para ganhar o terceiro com 5-3 no marcador, quebrando o serviço do italiano em branco no jogo seguinte, demonstrando que estava ali para fazer história, e que iria “morrer em campo” se assim fosse necessário. Teria de ser Sinner a derrotá-lo, Alcaraz não iria permitir derrotar-se a si mesmo.
No quarto set, ambos os jogadores em clara gestão de esforço e energia, foram assegurando o seu jogo de serviço sem grandes problemas, até que no sétimo jogo desse set, Carlitos viu o seu serviço ser quebrado em branco num jogo nefasto, e mais uma vez o pensamento geral dos adeptos presentes e dos espectadores que assistiram a esta “jogatana”, era de que Sinner não iria desperdiçar uma nova oportunidade e acabaria por ganhar o jogo, com maior ou menor dificuldade.
Confirmou facilmente a quebra de serviço, colocou-se com 5-3 no marcador, e aí chegou o momento que mudou o curso desta partida memorável. Alcaraz viu-se com 0-40 no seu serviço, teria de salvar 3 match points de forma consecutiva no seu serviço, uma pancada que não estava de todo bem afinada até então.
O primeiro e o terceiro match points foram salvos com duas bolas em cima da linha, que descolocaram um surpreendentemente conservador Sinner durante essas trocas de bola, momento a que a sua mãe assistia de lágrimas nos olhos, talvez já pensando que este Roland Garros não escapava ao seu filho.
Alcaraz saíria dessa situação com um ás e um winner explosivo de direita, dirigindo-se tranquilamente para a sua cadeira, sem que antes colocasse o dedo no seu ouvido (celebração típica do tenista murciano quando ganha os pontos mais importantes) e incendiando as bancadas do court central de Roland Garros.
Praticamente um estádio inteiro a coroar o seu nome, num court que a partir deste ano, terá uma placa lateral com a impressão bem marcada do 14 (!) vezes campeão de Roland Garros e a pegada das suas sapatilhas no court Philippe Chatrier: Rafael Nadal, o ídolo de Carlos Alcaraz.
Servindo para fechar o encontro e padecendo do famoso “síndrome da oportunidade desperdiçada”, o esfíngico Sinner demonstrou finalmente que também fraqueja nos momentos de decisão, e inclusive chegamos a ver um Sinner irritado com algumas decisões de arbitragem, com uma linguagem gestual pouco usual nele, ou por não estar a encontrar um antídoto para a melhoria exibicional significativa do seu adversário.
Alcaraz recuperou a quebra de serviço in extremis (admitiu no fim de jogo que sabia que Sinner ia acusar a pressão do momento), ganhou facilmente o seu jogo de serviço e encaminhamo-nos assim para um novo tie-break. Nesse tie-break, Alcaraz foi muitíssimo sólido, serviu lindamente, variou mais o seu jogo, e retirou Sinner da linha de fundo, que é a sua zona de conforto e onde o seu esplendoroso ténis reluz mais.
Ganhou categoricamente esse tie-break e finalmente deparamo-nos perante o cenário que todos projetavam antes da final: um jogo equilibrado e uma partida que seria decidida no quinto set.
No início do quinto set, Alcaraz apareceu muito mais fresco fisicamente, e parecia estar mais forte animicamente, algo bastante sintomático se atendermos ao fato de ter conseguido quebrar o serviço de Sinner logo no início do quinto e decisivo set, tendo confirmado a quebra desse serviço de forma contundente no seu seguinte jogo de serviço.
Da mesma forma que nunca podemos dar por morto Alcaraz, também jamais devemos menosprezar o espírito combativo de Sinner (apesar de nunca ter ganho um jogo com duração superior a quatro horas), que continuou a pressionar o serviço do tenista espanhol, que apesar da vantagem de um break, vivia momentos de indecisão e imprecisão no seu serviço e no seu jogo.
Apesar disso, Alcaraz foi mantendo o seu serviço e Sinner também não concedeu nenhuma oportunidade de Alcaraz conseguir a tão desejada dupla quebra de serviço. Tanto Sinner como Alcaraz, estavam plenamente conscientes de que se Alcaraz tivesse que ser forçado a servir para fechar o encontro com o resultado em 5-4, poderia também ele não ficar indiferente à solenidade do momento, refletindo-se isso na qualidade do seu serviço.
O primeiro serviço desapareceu nesse jogo, as grandes e profundas respostas ao serviço e a direita de Sinner renasceram das cinzas, e também ele conseguiu recuperar o break de atraso e empatar o marcador a 5-5. O enésimo golpe de teatro desta final.
Sinner conseguiu assegurar o seu serviço, colocou-se 6-5 no marcador e Alcaraz viu-se novamente na corda bamba, com 15-30 no seu serviço. Um erro não forçado de Sinner, uma defesa indescritível com um golpe de squash de Alcaraz, evitaram que Alcaraz tivesse que estar novamente na posição de salvar match points.
Apesar de uma grande resposta do tenista transalpino com 40-30 no serviço de Alcaraz, e que levou esse jogo para vantagem nula, Alcaraz esteve novamente à altura da ocasião, terminando esse jogo com mais um excelente serviço, e que com um passing shot de esquerda deslizando como só ele sabe na terra batida, encaminhou assim o jogo para um match tie-break (jogado à melhor de 10 pontos e que foi o único match tie-break de todo o torneio).
Esse match tie-break é para mostrar a todos os aspirantes a tenistas profissionais. Num ápice, Alcaraz viu-se com 7-0 (!) no marcador desse jogo de desempate num autêntico recital de ténis.
Alcaraz literalmente aniquilou as esperanças renovadas de Sinner à base de winners quase impossíveis, de amorties (que finalmente resultaram) indefensáveis, de toques de magia, e de erros incaracterísticos de Sinner, mas que eu considero mais erros forçados do que erros não forçados, devido a toda a pressão que Alcaraz lhe exerceu e toda a mestria que demonstrou ter nas trocas de bola mais prolongadas.
Sinner ainda conseguiu fazer dois pontos no seu serviço, Alcaraz assegurou os dois pontos seguintes no seu serviço, e no primeiro de sete championship points, Alcaraz fechou em beleza esta final memorável com um fantástico passing shot de direita ao longo da linha.
Carlitos atirou-se para o pó de tijolo uma vez concluída a partida, dirigindo-se de imediato ao seu grande rival Jannik Sinner (abraçando-o de forma muito sentida), que faz dele melhor jogador e vice-versa. Sinner melhorou imenso na terra batida, quer na sua qualidade de movimentação, quer na maneira como desliza na terra e na sua maior solidez em longas trocas de bola.
Devo igualmente realçar os grandes desportistas que ambos são. Foram várias as situações em que ambos concederam pontos um ao outro durante esta final, abdicando inclusive de revisões de marcas por parte do árbitro, numa clara demonstração de que é possível serem rivais, sem nunca se desrespeitarem, e tendo uma rivalidade saudável, servindo de exemplo para os mais jovens e os adeptos mais apaixonados do ténis.
Apesar de toda a desilusão que lhe deve causar esta derrota, o tenista italiano tem de sair de Paris de cabeça erguida. Numa superfície que não era até agora a sua especialidade, demonstrou que está preparado para lutar pelo título de Roland Garros na próxima década, e estou seguro que acabará por o fazer.
Neste domingo, Sinner teve variadíssimas oportunidades para quebrar o enguiço e superiorizar-se a Alcaraz, mas Carlitos é muito Carlitos. Jamais se dá por vencido, não dá uma bola por perdida e transcende-se nestes momentos, principalmente quando sente que tem o público do seu lado, e nesta final, a generalidade dos presentes estava a torcer pelo talentosíssimo tenista de Murcia.
Por vezes, Alcaraz joga de forma quase instintiva e absolutamente inconsciente, tal como o próprio admitiu no fim do jogo. Os padrões de jogo de Sinner são muitíssimo trabalhados e quase mecânicos, e talvez tenha que dotar o seu jogo de uma maior criatividade e imprevisibilidade para poder derrotar Alcaraz.
Alcaraz não consegue manter o mesmo nível exibicional e de concentração que Sinner demonstra, mas quando joga no máximo do seu potencial, faz uso da sua maior variedade de pancadas, o que consegue quebrar o ritmo vertiginoso de Sinner e a potência das suas pancadas, nomeadamente da sua direita, interrompendo a cadência habitual que Sinner gosta de empregar ao seu jogo.
Como disse e muito bem o ex-tenista sueco Mats Wilander (sete vezes vencedor de torneios do Grand Slam e atual comentador da Eurosport), “Alcaraz joga como Federer, move-se como Djokovic e tem o coração e a paixão de Nadal. É uma combinação assustadora. Ver este rapaz com apenas 22 anos a controlar o jogo desta forma é algo de especial.” Não poderia estar mais de acordo com esta declaração. Alcaraz é a combinação perfeita dos Big Three.
Para além disso, o fato de o fazer e de ganhar à sua maneira (remetendo para o seu excelente documentário da Netflix, que gerou muita controvérsia), é o que diferencia dos demais.
O próprio treinador Juan Carlos Ferrero, sabe o talento que tem nas suas mãos, e é plenamente consciente de que Alcaraz jamais será um escravo do ténis (Nadal também não o foi, essa é uma falácia) para se poder converter num dos melhores tenistas de todos os tempos.
Tem todo o potencial para chegar a esse patamar, mas ele quer acima de tudo ser feliz em court e não perder o seu sorriso, nem a sua alegria em jogar. E não há nada de errado nisso, muito pelo contrário.
Foram vários os recordes que Carlitos bateu ou igualou com esta conquista. Destaco o fato de ter sido a primeira vez que Alcaraz conseguiu recuperar de uma desvantagem de dois sets a zero, e também o fato de ser o único tenista da era Open a ganhar as primeiras cinco finais de Grand Slam que disputou, só sendo ultrapassado pelo mágico suíço Roger Federer, que ganhou as primeiras sete finais de Grand Slam.
Por momentos, foi quase como se tivesse reencarnado Nadal (o seu grande ídolo) em Alcaraz durante vários períodos desta final.
São jogadores totalmente distintos, diria mesmo que as comparações com Nadal serão sempre despropositadas e odiosas, mas não deixa de ser curioso que Alcaraz tenha ganho o seu quinto Grand Slam com a mesmíssima idade do seu compatriota (22 anos, um mês e três dias), que o havia conseguido depois do que muitos consideram o melhor jogo de ténis de sempre na final que opôs Nadal a Federer em Wimbledon, no longínquo ano de 2008.
Na minha modesta opinião, esta final teve mais qualidade tenística e um drama superior do que essa mítica final no All England Club. Claro está, que aquela vitória de Nadal será sempre lendária e lembrada como uma passagem de testemunho do pentacampeão Federer a Rafael Nadal, pois o tenista maiorquino ganhava no jardim (provavelmente o melhor jogador de sempre em relva) do tenista de Basileia quebrando a sua hegemonia nesse torneio.
“Alcaraz e Sinner não estão apenas a ganhar títulos. Estão a mudar a forma como se joga ténis. Esta final foi uma declaração: o futuro chegou.”, completou Mats Wilander no seu comentário a esta final.
Esta foi a melhor promoção possível para este icónico desporto. Dois grandes campeões a digladiarem-se de forma estóica e a levarem-se ao limite para conseguirem alcançar a glória eterna.
Como o próprio Roger Federer disse nas suas redes sociais, quem ganhou não foi apenas Carlos Alcaraz. O ténis ganhou.
Alcaraz e Sinner protagonizaram a final mais épica de sempre, e quem sabe não teremos dose dupla já nas próximas semanas na relva de Wimbledon.