A tensão entre o Cova da Piedade e a SAD reacendeu-se a poucas semanas do primeiro jogo oficial em casa, no Estádio José Martins Vieira, agendado para o próximo dia 18 de Agosto.
Com efeito, este já conhecido conflito conheceu novos desenvolvimentos na passada sexta-feira: o clube garantiu, por comunicado assinado por todos os órgãos sociais, que tem a haver da SAD quase 750 mil euros. Nesse sentido, o clube refere que a aprovação das contas da SAD em assembleia de accionistas “reconhece uma dívida” ao clube de mais de 192 mil euros, para além de outras verbas correspondentes a subsídios da Federação Portuguesa de Futebol – metade de cerca de 287 mil euros – e mais de 400 mil euros sobre vendas de jogadores. Em resposta, o director geral da SAD, Edgar Rodrigues considerou como “chantagem” o comunicado do clube e avançou que a SAD “pagará tudo o que o tribunal decidir”.
Importa frisar que o capital social da SAD do Cova da Piedade é detido em 90% pela CADI, uma empresa sediada em Macau, enquanto os restantes 10% pertencem ao Clube.
O clube de Almada é, portanto, mais uma das várias vítimas desta guerra que opõe um Clube a uma SAD, cujo impasse suplica cada vez mais por uma resolução firme e decisiva por quem de Direito e até mesmo um debate alargado em torno das SAD.
A Sociedade Desportiva surge em 1997 no ordenamento jurídico português através do Decreto-Lei n.º 67/97, que aprovou o Regime Jurídico dos Clubes Sociedades Desportivas. Esse diploma foi objecto de alterações como a que foi introduzida, em 2013, pelo Decreto-Lei n.º 10/2013 que estabeleceu como condição para os clubes disputarem os campeonatos profissionais de futebol da Primeira e Segunda Ligas a constituição de uma sociedade desportiva, tendo a maior parte optado pela criação das Sociedades Anónimas Desportivas (SAD), cujo capital social mínimo é um milhão de euros, 250 mil euros ou 50 mil euros consoante a SAD dispute a primeira liga, a segunda liga ou escalões não profissionais.
A SAD é, pois, um veículo jurídico muito apetecível para investidores. E também começou por ser útil aos clubes. Afinal seria sempre uma forma de captar fundos para os tornar mais competitivos e um autêntico balão de oxigénio para suprir as suas dificuldades financeiras ou até mesmo sobreviver.
Todavia, como acontece em qualquer área ou ramo (o futebol não é excepção), quem investe tem como objectivo só e tão-só o lucro. Quem põe dinheiro num clube sem pretender uma contrapartida é um benemérito. Temos, assim, a primeira grande diferença entre os dois lados da barricada: o Clube procura resultados desportivos; o accionista da SAD pretende o retorno do seu investimento e o lucro.
Há um facto que é comum em clubes como o Cova da Piedade que se encontram em conflito com as respectivas SAD: é que quem investe assume o controlo total do futebol. Na verdade, a lei obriga apenas, no momento da constituição, a uma representação mínima do clube no capital social da SAD de apenas 10%. E aqui surgem duas ordens de problemas que a lei foi incapaz de prever, mas que são óbvios. Primeiro, as direcções dos clubes, eleitas pelos sócios para representar a sua vontade, perdem cada vez mais ou deixam mesmo de ter importância na gestão do futebol. Em segundo, o que acontece se os investidores pretendam proceder a um aumento do capital social da SAD que seja impossível de ser acompanhado pelo clube? Como disse atrás, a lei apenas obriga a uma “quota mínima” do clube de 10% no momento da constituição da SAD, não impedindo que essa percentagem possa ser reduzida ou até desaparecer.
É certo que a lei confere um direito de veto ou, grosso modo, um veto decisivo, ao clube (enquanto accionista da respectiva SAD) sobre matérias fundamentais tais como a mudança da localização da sede ou dos símbolos e os símbolos do clube, desde o seu emblema ao seu equipamento.
No entanto, tudo o que seja matéria de gestão e planeamento do futebol fica nas mãos de quem tem a maioria do capital social da SAD. Na verdade, caso o investidor não possa controlar a SAD deixa naturalmente de ter interessa em investir nela. Acresce que em quase todos os casos o poder de decisão é entregue a investidores vindos do estrangeiro, o que agudiza ainda mais as dissonâncias com as direcções dos Clubes.
O Cova da Piedade é um clube que actualmente compete na II Liga, uma liga profissional. Mas também já são vários os clubes do Campeonato Nacional de Séries e até dos campeonatos distritais cujo futebol é controlado por investidores. Veja-se o caso do Atlético, a título de exemplo.
Se tomarmos atenção sobre cada um dos casos de conflito verificaremos sempre alguns destes denominadores comuns: incumprimentos dos acordos firmados entre clube e SAD, nomeadamente, sobre o pagamento da SAD pela utilização do estádio e instalações do clube; sobre-endividamento da SAD; maus resultados desportivos. Há mesmo situações trágicas como foram os casos do Beira-Mar, da União de Leiria e do Atlético cujas SAD entraram em insolvência e catapultaram os Clubes para as divisões distritais por não cumprirem requisitos para competir nos principais escalões.
Podemos agora perguntar se havendo uma lei que regula este tipo de sociedades como é que chegámos a este estado de sítio em que vemos clubes históricos em divisões distritais ou mesmo situações ridículas como a que acontece no Belenenses, em que SAD e Clube têm respectivamente uma equipa de futebol.
A resposta é simples: o actual framework jurídico que regula as SAD e as relações destas com os clubes é débil, escasso e repleto de lacunas ou falhas. E pior: estabelece muitas obrigações paras ambas as partes mas não prevê um quadro de sanções aplicáveis no caso de incumprimento das mesmas ou, pelo menos, mecanismos jurídicos para compelir o seu cumprimento.
Por exemplo, não há qualquer consequência para uma decisão levada a cabo pela SAD que seja contrária à vontade do Clube, apesar de este ter o tal direito de veto sobre ela. Também não há qualquer sanção aplicável à SAD que não cumpra as obrigações a que se vinculou perante o clube através de acordos assinados entre ambos. Mais, no sentido dos muitos alertas feitos por juristas do direito desportivo, a lei não protege, de todo, os próprios nome e marca do Clube no caso de este deixar de ser accionista da SAD. Ou seja, a SAD não está impedida de os alteres conforme lhe apetecer. Ou seja, quem controla as SAD tem o caminho aberto para fazer tudo o que lhe apetece, porque não há sanções.
Paralelamente à completa ausência de um quadro sancionatório, a lei também não prevê mecanismos de controlo ou supervisão dos investidores ou sequer uma investigação prévia sobre a proveniência dos capitais que serão investidos nas SAD. Na verdade, o vácuo da lei permite que uma SAD possa ser usada para fins ilícitos tais como branqueamento de capitais e evasão fiscal. Veja-se a título de exemplo o caso do União de Leiria.
O que me surpreende – e muito – é a passividade das entidades que cuidam do futebol nacional perante o avolumar de casos. O próprio Governo que há bem pouco tempo foi tão rápido a vir a público fazer do ataque a Alcochete um autêntico “big deal”, assobia para o lado e tal como Pilatus lava as mãos nesta matéria. Urge que todas estas entidades repensem a lei.
O que é facto consumado é que este conflitos ou impasses têm sugado clubes históricos para o abismo. Portugal está a perder o seu património clubístico. Muitos dos clubes históricos são hoje sombras do que em tempos gloriosos foram. E quem perde verdadeiramente no meio disto tudo são os adeptos, que não são tidos nem achados numa SAD.
Foto de Capa: CD Cova da Piedade, SAD