«Não adiantou o Platini pedir desculpa ao Vitória SC» – Entrevista BnR com Manuel Cajuda

    Manuel Ventura Cajuda de Sousa, o treinador que não festeja golos, esteve à conversa com o Bola na Rede e dá-nos uma lição de bola à antiga. De ideias claras e discurso assertivo, fala-nos do passado em Leiria, na Madeira e no Minho, onde foi Tio e herói, enquanto dá lições de liderança, gestão de plantel e psicologia. Fora de Portugal, encontra a desorganização no Zamalek, onde teve 10 presidentes num ano, descobre o “filão” nos Emirados Árabes Unidos, onde os seus desejos eram ordens e não faltava nada, e aprende que na China a palavra mais é importante é “mas”. Por fim, partilha os seus objetivos para o Leixões e a sua visão sobre o estado do futebol português e os desafios para o futuro.

    – A ocasião faz o treinador –

    Bola na Rede [BnR]: Como é que surge a oportunidade de ser treinador?

    Manuel Cajuda [MC]: Não fazia parte do meu horizonte enquanto jogador, foi uma questão de oportunidade, foi-me dada pelo Presidente do Farense na altura, o sr. Fernando Barata. Eu não queria ser mas ele foi de tal forma insistente no pedido que acabei por ficar como ajudante do Mladenov. Continuei como jogador e capitão e disse que ajudava como capitão, não como um futuro treinador, porque não fazia parte dos meus horizontes. Depois comecei, colaborei e ajudei com honestidade perante o compromisso que tinha feito.

    BnR: Quando é que conseguiu mudar o “chip” de jogador para treinador?

    MC: Penso que levei algum tempo para despir a camisola de jogador, cerca de 10, 11 meses e então comecei a achar que era qualquer coisa de fascinante a carreira de treinador. Agarrei-me a ela com unhas e dentes, tive sorte, consegui progredir, tenho jeito, continuo a adorar e acabei por, e espero continuar, a fazer uma carreira que me orgulho, que me dá satisfação e que foi aquilo que foi possível fazer.

    BnR: Quais os treinadores que o influenciaram mais na sua carreira de treinador?

    MC: Eu sou muito pouco influenciável (risos). Não me deixo influenciar com facilidade, tento sim absorver as coisas que eu acho que são boas, que são úteis e que me fazem evoluir. Isso também quer dizer que não vou referenciar seja quem for pelo aspeto positivo, porque ao fazê-lo estou seguramente a desapreciar alguns que não forem nomeados e isso não me parece justo. Aprendi com todos, aprendi com bons, com maus…

    BnR: O que é que aprendeu com os maus treinadores?

    MC: Foi muito importante aprender a não fazer algumas das asneiras que eu vi serem cometidas enquanto atleta, sobre as diferentes áreas. De todos tirei um pouco e juntei aquilo que fui aprendendo desde o início, quando comecei do zero. Na altura, depois desse conhecimento que fui adquirindo, juntei imaginação, hoje chama-se criatividade, e fui utilizando os conhecimentos que fui adquirindo sempre com a imaginação, o que quer dizer que fiz, pelo menos na minha ótica, aquilo que é mais aconselhável.

    BnR: É mais difícil treinar a equipa e ensinar os processos de jogo ou gerir as pessoas, os egos? Ou seja, é mais difícil o trabalho no treino e depois durante o jogo ou a gestão do plantel/humana?

    MC: Talvez seja mais difícil gerir o plantel/parte humana. Também é verdade que atualmente o conhecimento está mais acessível a todos, incluindo aos jogadores, eles hoje têm um maior conhecimento do que é a sua profissão, dos parâmetros em que ela se deve gerir. O pôr em prática no treino penso que é a parte mais fácil, o que acho interessante e para mim é fundamental é conseguir transmitir e fazer com que os jogadores aceitem essa ideia, esse princípio, essas regras. Depois é muito mais fácil pôr em prática no campo aquilo que são as nossas ideias, os nossos métodos de trabalho, o nosso modelo de jogo e a forma como o modelo de jogo vai influenciar a utilização dos sistemas táticos. Não basta dizer que tenho uma ideia, é preciso fazer com que eles compreendam primeiro e depois aceitem as ideias e aquilo que nós pretendemos pôr em prática.

    BnR: Chamaram-lhe louco há vinte e tal anos quando foi o primeiro treinador em Portugal a ter um psicólogo na equipa. Como é que se apercebeu dessa necessidade?

    MC: Não me parece que tenha sido um ato de inteligência da minha parte. Parece-me acima de tudo que foi um ato de compreender e aceitar que o futebol, já nessa altura, precisava de ciências envolventes que podem ajudar a praticar um melhor futebol. De há uns anos para cá, começou a aparecer a psicologia mais direcionada para o desporto e o futebol. É um dos fatores importantes porque no fundo é a ciência que estuda o comportamento humano. Muitas vezes não é a que antevê o comportamento humano, é a que estuda o comportamento humano. Eu comecei a perceber que não entendia tudo do comportamento dos meus jogadores e era preciso que alguém me falasse sobre isso para poder gerir melhor o meu grupo.

    BnR: No fundo, ver e entender a pessoa para lá do jogador.

    MC: Sim. O comportamento das pessoas às vezes é inexplicável, provoca-nos uma série de interrogativas às quais nós de momento não somos capazes de encontrar resposta mais imediata e nada melhor que ter na minha equipa técnica alguém que me pudesse fazer compreender, tirar melhor rendimento dos jogadores e ensinar-me aquilo que queria. Porque se olharmos bem, não é de agora, há já alguns anos que se fala na forma tática, na forma técnica, na forma física, na forma psicológica e todos esses aspetos são importantes. Eu tinha necessidade de aprender e solicitei isso.

    BnR: Como é que o grupo lidou com isso na altura?

    MC: Foi muito estranho na altura porque toda a gente entendeu mal, inclusivamente os jogadores pensaram “Nós não somos malucos, não precisamos de um psicólogo”. Mas aquilo que eu entendi logo é que um psicólogo não era só para os jogadores e hoje cada vez tenho mais essa ideia, que o psicólogo é para o grupo. O grupo inclui, na minha opinião, o treinador, a equipa técnica, os roupeiros, o departamento médico, todos aqueles que verdadeiramente fazem parte do grupo. Portanto, o psicólogo é para o grupo, não é para os jogadores e às vezes o meu conselho é que os treinadores bem precisam de ter um psicólogo ao lado, precisam mais do que os jogadores.

    BnR: Na União de Leiria, chega à final da Taça de Portugal em 2002/03. Era missão impossível derrotar aquele FC Porto de Mourinho?

    MC: Impossível não era mas que era muito difícil era. Aliás, difícil não porque não conseguimos. O FC Porto de José Mourinho era uma equipa que fez “só” isto, ganhou a Liga dos Campeões e a Taça UEFA em dois anos seguidos. Ainda por cima tinha uma característica muito interessante, é que tinha levado três ou quatro jogadores da União de Leiria, portanto eu fiquei com a equipa enfraquecida. Fomos capazes de lutar com eles, perdemos 1-0, o jogo não foi muito fácil para o FC Porto. Lembro-me que se dizia que uma final entre o Leiria e o FC Porto não era uma coisa emocionante e eu respondi ao José Mourinho “Qualquer final que tivesse o FC Porto era um jogo muito interessante”. O Leiria é que ia fazer parte dessa situação. Ganharam os melhores, ganhou o FC Porto, ganhou o melhor treinador.

    Manuel Cajuda levou a U. Leiria à final da Taça de Portugal
    Fonte: Facebook Manuel Cajuda

    BnR: O que é que disse aos jogadores antes do jogo?

    MC: Esses jogos não têm grandes argumentos para um treinador os estar a motivar. O próprio jogo em si, vejamos pela parte dos treinadores: eu sempre ouvi os meus colegas dizerem que é um sonho estar no Jamor. Para mim, o sonho já estava concretizado, eu estive no Jamor. O mesmo acontece aos jogadores. A questão emblemática à volta da Taça, a prova rainha do nosso futebol, não a prova mais importante mas a prova rainha, é conseguir chegar ao Jamor. Isso dá uma visibilidade, quer aos jogadores, quer aos treinadores e até aos clubes, que provoca vários tipos de motivação. Aquilo que é necessário fazer naquela altura é agarrar em todos os “rios” motivacionais e tentar juntá-los ao serviço do grupo mas penso que não é tão necessário motivar num jogo desses.

    BnR: Quem era esta equipa da União de Leiria?

    MC: Muitos, os craques eram todos. Jogadores de eleição… O Helton, o Silas, o capitão Bilro. Havia uma série de jogadores mas não é elegante da minha parte referir só alguns. Claramente uma das melhores equipas da União de Leiria, pelo menos pelos resultados que alcançou. Foi a melhor época de sempre da União de Leiria, nunca ninguém fez igual. Há um 5º lugar também um ou dois anos antes com o Manuel José só que nós somámos esse 5º lugar e a final da Taça de Portugal, com a consequente qualificação para a Taça UEFA.

    BnR: Na época seguinte, consegue a qualificação para a Taça UEFA com o CS Marítimo. Depois no ano seguinte só faz um jogo e sai. Porquê?

    MC: É realmente uma das melhores épocas, mesmo agora passados estes anos todos, e há o apuramento para a Taça UEFA. Depois na segunda época eu sou demitido após o primeiro jogo.

    BnR: Porquê?

    MC: O porquê não é muito interessante. Provavelmente terá havido alguma coisa que não correu bem no relacionamento entre mim e o sr. Presidente [n.d.r. Carlos Pereira]. Hoje continuo amigo dele, continuo a dizer que ele é um extraordinário presidente, acho que é dos melhores que tive. Mas houve coisas que ele não entendeu ou que pelo menos entendeu de uma forma diferente da minha. É presidente, está no direito de alterar, alterou. Continuo a dizer, e já falei disso com ele depois, há algumas coisas que ele eventualmente terá razão e outras que ele eventualmente terá entendido de uma forma diferente. Eu só posso ser responsabilizado por aquilo que digo, não por aquilo que os outros deduzem, só posso ser responsabilizado por aquilo que faço e não por aquilo que os outros deduzem que eu faço. O erro está repartido entre as duas partes.

    BnR: Disse há uns tempos que faltava intensidade ao futebol português. Sente que isso se deve ao pouco tempo de jogo útil que temos em Portugal?

    MC: Há que esclarecer uma coisa muito pequena. Eu quando digo que falta intensidade ao futebol português não estou a falar mal do futebol português ou dos meus colegas, estou apenas a dizer que o futebol português melhorará muito se tiver mais intensidade. Aliás, os melhores campeonatos na Europa dizem-nos exatamente isso: Espanha, Inglaterra tem muito mais, Alemanha também, até a Itália tem uma intensidade grande. Nós em relação aos cinco melhores campeonatos da Europa temos uma pausa de intensidade. Essa pausa de intensidade muita gente entende logo que é um défice de trabalho físico. Não é só, mas também é. Eu considero que há pouca intensidade na forma de pensar e aqui incluo logo o aspeto primordial que é a visão, quer a direta quer a periférica, porque se percebe muito pouco daquilo que cada jogador tem na envolvência da visão periférica.

    BnR: Essa pouca intensidade está relacionada com a velocidade a que se joga?

    MC: Sim, somos lentos a pensar quando ganhamos a bola, somos lentos na recuperação da posse de bola, somos lentos a reposicionar no aspeto tático e esse pensamento pouco intenso provoca … levamos mais tempo a executar, mais tempo a querer surpreender o adversário. Levamos muito tempo a definir aquilo que queremos construir, a fase de construção é excessivamente grande, mesmo que seja em segundos é excessivamente grande, e isso permite sempre ao adversário a contra-arma de se reorganizar. Um exemplo fascinante é o Liverpool FC, porque eles praticamente parece que não têm fase de construção. Parece que constroem a uma velocidade impressionante, não estão à espera do erro do adversário, eles provocam o erro do adversário e aqui se traduz a falta de intensidade que eu gostaria, como treinador e como espetador porque vejo muitos jogos, ver melhorada. Aquilo que digo e aponto como uma deficiência que me parece evidente, em relação aos restantes campeonatos da Europa ainda é mais evidente, só com muito diálogo se consegue melhorar. Gostaria muito que no futebol português todos os jogos fossem entre duas equipas que querem ganhar, taco a taco. Há muitas equipas em Portugal que dizem que enfrentam o adversário cara a cara… cara a cara mas parados (risos).

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