O antigo internacional português Jorge Costa faleceu subitamente aos 53 anos vítima de uma paragem cardio-respiratória. O mítico capitão do FC Porto e uma das maiores figuras do futebol português, tinha acabado de conceder uma entrevista à Sport TV no centro de estágio do Olival, quando ter-se-á sentido mal, tendo sucumbido a uma segunda paragem cardíaca já depois de o terem conseguido reanimar numa primeira instância.
“É parte da minha história que vai embora”, foi desta forma que José Mourinho reagiu de voz embargada a uma pergunta (estapafúrdia, diga-se de passagem) de um jornalista sobre o porquê dele estar tão triste com a notícia da morte de Jorge Costa.
Perante a panóplia interminável de testemunhos, tributos e justas homenagens que se têm feito nas últimas horas a Jorge Costa, decidi destacar primeiramente esta de José Mourinho, porque sintetiza um pouco o que eu sinto neste momento.
Caros leitores, perdoem-me a audácia, mas este será o meu texto mais pessoal de todos, e seguramente o mais difícil que já me tocou escrever. Muitos irão questionar o porquê de eu sentir que parte da minha história também foi embora, quando ao contrário de Mourinho, eu não tive o privilégio de privar com Jorge Costa e nem contribuí para os seus êxitos desportivos.
Por isso, é de mãos trémulas que lhe dedico estas palavras. Pensei qual seria a melhor forma de homenageá-lo, mas por fim decidi fazer um texto de cariz mais pessoal.
Costumo dizer que os nossos heróis são por vezes aqueles que aprendemos a idolatrar. A minha admiração por Jorge Costa transcende o futebol, para mim ele será sempre a personificação do que me fez escolher o meu clube de coração.
Foi o comandante de duas das maiores gerações do futebol português: a do penta entre as épocas 1994/95 e 1998/99, e a daqueles dois anos absolutamente mágicos entre as épocas 2002/2003 e 2003/2004 comandados por José Mourinho e que levou o FCP a ganhar Taça UEFA e Liga dos Campeões de forma sucessiva.
Fernando Santos recordou um momento delicioso e onde fica refletida a nobreza de caráter e o grande líder que este sempre soube ser. Quando o “engenheiro do penta” (como assim ficou conhecido) foi apresentado no FC Porto, vinha de um excelente trabalho no Estrela da Amadora, que era um clube de uma dimensão muito inferior à do FC Porto. A sua contratação gerou alguma perplexidade e desconfiança junto do balneário, que se desvaneceu com um simples “Acreditem mais ou menos nele, este é o nosso treinador, e como tal, este é o melhor treinador do mundo a partir deste momento”.
Ao longo do dia, também muito se falou sobre o momento em que pediu a José Mourinho para sair do balneário num célebre intervalo de um jogo no estádio do Restelo, no qual a equipa azul e branca estava apática e perdia por 1-0, dizendo aos seus colegas que “Nós vamos lá para dentro e nós vamos ganhar. Se assim não for, não estamos a fazer nada neste clube”. Nesse caso em particular, materializou as suas palavras em dois golos (na única vez em que bisou numa partida), em mais uma demonstração de uma liderança incomparável.
Nos anos áureos de Mourinho, Jorge Costa chegou a partilhar a capitania com Vítor Baía, outro dos grandes símbolos do FC Porto, mas o carisma do “Bicho” era único. Vítor Baía também o tinha, mas Jorge Costa era um líder nato, dentro e fora do campo.
“Foste o meu capitão durante anos, mas, acima de tudo, foste sempre um amigo verdadeiro, presente nos bons e nos maus momentos. A tua voz firme, o teu olhar determinado, o teu abraço depois de cada vitória… ficam gravados para sempre”, publicou na sua rede social Vítor Baía.
Na minha modesta opinião, um líder deve ser determinado, ambicioso, liderar pelo exemplo, ser resiliente, mas igualmente apaziguador, humilde, agregador, bom ouvinte e um ombro amigo se a situação assim o necessitar. E desde sempre que reconheci essas qualidades no Jorge Costa. E alegra-me saber que as pessoas que privaram com ele, enaltecem igualmente essas qualidades.
Não fiz parte da vida de Jorge Costa, mas Jorge Costa fez parte da minha durante mais de duas décadas. E é o menino da geração de 90 e início dos anos 2000 que vos escreve hoje. Não pode ser de outra forma, por muito que eu pudesse dizer e escrever sobre a carreira lendária e legado incomparável do eterno capitão.
Ao longo das últimas horas, fui ouvindo vários testemunhos de ex-colegas e de ex-treinadores que me impactaram bastante, alguns deles aos quais decidi dar o devido destaque, porque são o perfeito recurso para quando se esfume a minha criatividade e apenas me corram as lágrimas pelos olhos.
Porque este não é mais um artigo para mim, é um tributo e uma homenagem a um homem que contribuiu enormemente para grande parte das minhas maiores alegrias desportivas.
Em 1991 tinha 4 anos, mas lembro-me de ver vezes sem conta a repetição dessa mítica final do mundial sub-20 contra o Brasil no Estádio da Luz vezes num VHS religiosamente guardado pelo meu pai. “Os miúdos de Carlos Queiroz” conseguiram conquistar esse bicampeonato mundial de sub-20 num estádio da Luz a abarrotar perante 120 (!) mil espectadores.
Incontáveis foram as vezes que voltei a ver aquele desempate por penalties e vibrar com a nossa vitória, como se ainda não soubesse de antemão o desfecho daquele jogo de cor e salteado. Até o onze inicial poderia dizer caso me perguntassem agora mesmo.
Rui Costa e Jorge Costa faziam parte dessa geração de ouro e desde aí, foram sempre companheiros de quarto nas concentrações e estágios da seleção nacional que antecediam as grandes competições, tendo desenvolvido uma amizade inabalável, que resistiu a momentos turbulentos e a uma forte rivalidade clubística.
O próprio Rui Costa reconheceu há umas horas que perdeu um grande homem e um grande amigo, e que era um dia muito triste para ele a nível pessoal. Destacou igualmente o fato de terem sido campeões do mundo juntos, e da sua amizade ter perdurado no tempo. Os laços que se criaram naqueles momentos revelaram-se indestrutíveis com o decorrer dos anos, e sempre falavam de forma descomplexada da sua amizade e de uma maneira muita carinhosa um do outro, não se coibindo de o expressar várias vezes ao longo dos anos.
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Talvez por ser portista (o que não me tira nenhuma imparcialidade nem discernimento na hora de escrever), esta morte toca-me de uma maneira indelével e muito profunda. A nação portista tem sofrido perdas muito dolorosas, desde o ex-bibota de ouro Fernando Gomes, passando pelo falecimento do presidente dos presidentes Jorge Nuno Pinto da Costa, não me esquecendo trágico desaparecimento de Diogo Jota e do seu irmão André Silva (que fez toda a sua formação no clube), culminando nesta perda que ainda não é possível de quantificar.
Nos últimos anos, Pinto da Costa perdeu uma parte do crédito e da consensualidade que sempre reuniu junto da apaixonada massa associativa portista. Jorge Costa também a terá perdido, por ter decidido apoiar a candidatura de André Villas Boas.
Célebre foi a sua frase (que está agora afixada num ecrã gigante no Estádio do Dragão) “Aconteça o que acontecer, faço parte da história do clube do meu coração” e eu nem sequer pestanejo ou ouso questionar o amor incondicional de Jorge Costa pelo FC Porto.
Não vou dar lições de “portismo” a ninguém. Cada um sente e vive o clube à sua maneira. Mas Jorge Costa provou o seu amor ao clube durante quase duas décadas defendendo galhardamente a camisola azul e branca como jogador, muitas vezes fazendo uso excessivo da força (há que o admitir) com os seus adversários, mas sempre movido pela fome de vencer. Como um emocionado Domingos Paciência, ex-colega de equipa e seleção de Jorge Costa, afirmou à Rádio Observador “Jorge Costa era o bicho dentro de campo, e o Jorge fora dele”.
Foi o seu antigo companheiro e grande amigo Fernando Couto que lhe deu esse apelido, devido à sua postura mais agressiva dentro de campo.
“Talvez pela minha forma de jogar, a minha entrega ao jogo. O Fernando é que poderia explicar, mas acho que era isso, eu era um animal, era um bicho, era alguém que dava tudo o que tinha dentro do campo”, recordou na altura Jorge Costa.
E talvez essa dissonância (que muita gente não conseguiu entender e nem sempre respeitar) entre o Jorge Costa capitão e atleta extremamente competitivo, em contraste com o Jorge Costa dócil (de trato fácil e de uma educação extrema fora do terreno jogo), seja a razão que explique que um dos seus melhores amigos no futebol (tal como mencionei anteriormente), tenha sido o atual presidente do Benfica, Rui Costa.
“Grande homem. Das melhores pessoas que eu apanhei no futebol, disse e digo isto várias vezes aos meus amigos. O Jorge era uma pessoa fantástica. Eu recordo-me da primeira vez que fui à seleção principal, onde ele me chamou e disse-me “Miúdo, aqui é contigo até ao fim sempre”. Alguém que eu respeitava muito dentro de campo, mas que eu admirava tanto fora de campo. Quem me conhece sabe que eu tinha uma admiração muito grande do Jorge dentro e fora do campo. Um ser-humano fantástico com um coração do tamanho do mundo”, disse um igualmente emocionado Beto em entrevista à Sport TV.
Beto chegou a capitanear o Sporting, um dos maiores rivais desportivos do FC Porto, e quando oiço estas declarações, para além de emoção, o que eu sinto é um profundo orgulho por perceber que um dos meus heróis encarnava os princípios e os valores que eu tanto defendo, e que são inegociáveis.
“É este tipo de dimensão de pessoas, que cada vez se procura mais hoje em dia.
Num futebol cada vez mais internacionalizado, onde falamos mais nas questões económicas que prevalecem no mundo do futebol. Aquele orgulho da camisola que se perdeu. Esse tipo de carácter, cada vez mais difícil de encontrar, já nós tínhamos ao longo do tempo, personalizado pela dimensão de pessoas como o Jorge Costa”, afirmou um igualmente desconsolado Abel Xavier em entrevista à CNN Portugal. Também ele foi campeão do mundo de sub-20 com Jorge Costa, e também ele elogiou as grandes qualidades humanas do seu líder.
O futebol que eu amo, é o futebol preconizado por Jorge Costa, onde havia o amor à camisola e o dinheiro era apenas um fator no mundo do futebol, mas não o determinante. Predominava a competitividade, a sede de vencer e a verdadeira essência do futebol. Acredito Jorge Costa tenha conseguido (no curto tempo que teve) incutir esse espírito e passar essa mensagem ao atual plantel profissional do FC Porto. Se assim foi, acredito que a equipa portista dará muitas alegrias aos seus adeptos nesta época desportiva.
Era essa mística que Jorge Costa estava a tentar restituir para o FC Porto. Essa mística e garra personificadas na sua imagem, e que se vinha perdendo paulatinamente no Dragão. Como diretor de futebol da equipa azul e branca, estava a realizar um mercado de transferências que devolveu a ilusão aos adeptos portistas, que protagonizaram um ambiente no Estádio do Dragão, que não se via ultimamente, com uma receção apoteótica dos adeptos ao plantel antes do jogo de apresentação com os espanhóis do Atlético de Madrid.
Esse jogo foi realizado nem há 48 horas do momento em que vos escrevo este artigo, e ainda é estranho conjugar o tempo verbal no passado, dizendo que Jorge Costa aparentava estar bem de saúde e feliz com este novo cargo, onde se voltava a sentir reconhecido e amado pelos adeptos do clube por que sempre lutou até à última gota do seu suor. A vida é mesmo um sopro, e devemos fazer da mesma a jornada mais feliz de todas.
A morte de Jorge Costa terá deixado profundamente abalado André Villas Boas, toda a sua classe directiva, respetiva equipa técnica e plantel profissional, pelo que foi totalmente compreensível que tenham solicitado à Liga Portugal o adiamento do jogo da primeira jornada da liga contra o Vitória SC (que inicialmente estava previsto para sábado dia 9) e que agora irá realizar-se na segunda-feira dia 11, dando assim mais margem para que toda a estrutura portista se refaça desta perda irreparável.
Pedro Proença, presidente da Federação Portuguesa de Futebol, afirmou na sua página do Facebook que “A morte de Jorge Costa deixa-nos completamente consternados. Além de jogador carismático, capitão e uma das maiores figuras da história do FC Porto, Jorge Costa representou a Seleção Nacional com todo o orgulho. (…) No campo, defendia as suas cores com convicção. Fora dele, era um homem bondoso, com personalidade forte e grande sentido de humor. Adorava o Futebol. Como jogador, treinador ou dirigente, foi figura respeitada e estimada em todos os emblemas por onde passou.”
É preciso ser-se de uma enorme grandeza humana para se reunir esta quase absoluta consensualidade junto dos rivais, e de todos os intervenientes no mundo do futebol, que sabemos ser um mundo de egos e onde não abunda a bonomia dos agentes desse espetáculo em que parece que é apenas o que prevalece no futebol.
Se este artigo tivesse um trilião de caracteres, poderia ficar aqui a escrever até o Sol raiar, tanto seria o que poderia escrever e destacar da carreira de um jogador que dentro de campo ganhou tudo o que havia para ganhar pelo clube do seu coração (muito poucos são o que se podem gabar disso e ter esse privilégio), que foi um dos grandes líderes da geração de ouro da nossa seleção nacional, mas nenhum texto faria jus à dimensão humana de Jorge Costa, onde aí o seu legado é ainda mais importante do que naquilo que conquistou como futebolista.
Daqui a umas horas, farei questão de ser um dos milhares adeptos do futebol (independentemente das cores clubísticas), a despedir-se de um dos maiores de sempre do FC Porto e de uma das figuras mais incontornáveis e emblemáticas do futebol português.
Ainda incrédulo e com as mãos dormentes, despeço-me de um dos meus heróis.
Partiu para outra dimensão mas nunca sairá do meu coração. Adeus Bicho, O Dragão da Chama Eterna.