40 Anos da Primeira Final Europeia: Pedroto e a Taça das Taças

    Quarenta anos é marca de cartel no sempre divertido futebol nativo. Se os de Lisboa batem assertivamente com um longo ponteiro nessa longevidade para associar o sucesso do FC Porto a práticas de rufias e malfeitores, os da Invicta marketizaram-na para agilizar as vendas de merchandising e desvalorizar as acusações.

    Olhamos para o calendário e são mesmo os 40 anos que nos distam da primeira final europeia dos portistas, facto que se assinala pela função de charneira que a data assumiu no futebol português – o FC Porto foi o último Grande a estrear-se nessas lides mas a partir daí catapultou-se para a ribalta, com mais quatro finais europeias e quatro vitórias, mais que qualquer dos outros dois, que desde aí escorregam sempre que lá chegam.

    Esse FC Porto era ainda virgem nessas supremacias. Só em 1978 tinha conseguido terminar o jejum de 19 anos sem campeonatos, divididos à escala 3×1 entre Benfica e Sporting, com leões sempre vencedores em ano de Mundial. Fora José Maria Pedroto o obreiro desse título, coadjuvado por Jorge Nuno Pinto da Costa, ainda só director de futebol que presidente era Américo de Sá, homem sério mas pouco atrevido no combate aos poderes instalados daquilo a que os dois chamavam centralismo da capital. Pedroto e Pinto da Costa recorriam a subterfúgios ideológicos para dar sustento a um insinuosa forma de luta desportiva e só em 1982, após as peripécias do Verão Quente portista, assumiriam definitivamente o poder do clube, fazendo-o entrar de peito cheio na nova era.

    O Benfica tinha dominado o futebol europeu de clubes na década de 60, com cinco finais da Taça dos Campeões e duas conquistas; O Sporting tinha vencido a Taça das Taças em 1964, em caminhada triunfante à qual nem o Manchester United resistiu, saindo de Lisboa vergado a um esclarecedor cinco-zero. O melhor que os azuis e brancos tinham conseguido até 1984 era a 3.ª eliminatória da Taça UEFA ou uns Quartos da Taça dos Vencedores das Taças, currículo mais pobre que Vitória FC – quatros vezes atingidos os Quartos da Taça UEFA até 1974, metendo humildade na cabeça de Lyon, Liverpool, Inter ou Anderlecht – e do mesmo nível que Belenenses ou Boavista.

    José Maria Pedroto num treino do FC Porto
    Fonte: FC Porto

    José Maria Pedroto foi um dos geracionais talentos estratégicos do futebol português, um ávido autodidata do jogo sempre à procura de se actualizar das grandes tendências europeias que conjugava os conhecimentos técnicos que fizeram dele, na juventude, um dos mais espectaculares jogadores portugueses, integrante da última equipa portista pré-jejum (1958-59) e dezassete vezes internacional, com uma personalidade fora do comum, carisma desconcertante que o entregava prontamente a lugares de liderança, qualquer que fosse o contexto: aos 12 anos, fundou o Futebol Clube de Pedras Rubras, sendo capitão de equipa e presidente.

    Iniciou percurso de atleta federado aos 18 no Leixões, e depois de passagens assinaláveis por Vila Real de Santo António, pelo Lusitano, e Belenenses, o Porto insistiu loucamente na sua contratação. Estávamos em 1952, por isso ainda se impunha a semiprofissionalização – Pedroto, além do bom ordenado no Restelo, juntava outro como escriturário na Hidro-Elétrica do Zêzere. Então puxou dos galões: 150 contos (em 1974, 22 anos depois, o valor do inédito salário mínimo nacional era decretado em… três contos e trezentos escudos) ou nada, continuaria por Belém. O FC Porto constituiu sociedade comercial entre as suas gentes mais abastadas, fez solidária vaquinha, e toma: 500 contos, maior transferência de sempre do futebol português, 335 para o Belenenses e 165 para Pedroto, mais do que pedira, e por isso irrecusável.

    Em 1961, já treinador, juntou os júniores portugueses e foi campeão europeu em troféu organizado pela UEFA. Foi com ele ao leme que o Vitória setubalense empolgou Portugal e a Europa ou que o Boavista importunava o Benfica na luta pelo título e ganhava Taças, duas. O Zé do Boné foi um vendaval no futebol luso. Mas para percebermos a fundo a outra forma do seu génio, as arestas da personalidade, Vítor Serpa, director do jornal A Bola, escreveu um dia certa anedota que serve perfeitamente parar criar na imaginação de quem não o conheceu a realista impressão de malandro protagonista:

    Como todos os homens cultos, também era um homem de humor. Um dia, acompanhei o FC Porto numa jornada europeia na Bélgica. Foi, aliás, um dos piores resultados e sempre do currículo do treinador do FC Porto, que perderia, em Bruxelas, por concludentes 4-0 (1982-83, frente ao Anderlecht que venceria depois o Benfica de Eriksson na final).

    Na véspera do jogo, Pedroto ocupava o seu tempo, depois do treino, como quase sempre, fumando, conversando e jogando às cartas. Os jornalistas que acompanhavam a equipa viajavam no mesmo autocarro dos jogadores e ficavam no mesmo hotel. Era como se fizessem parte do grupo e Pedroto nunca sentiu qualquer problema com isso. Pelo contrário, aproveitava para falar sobre futebol com os jornalista e pregar algumas partidas aos mais ingénuos.

    Havia no grupo um conhecido jornalista de rádio que era um dos alvos preferidos de Pedroto. O homem tinha viajado com a família e fazia da maior parte do tempo uma visita turística à cidade, impressionando-se menos com a Grand Place e mais com o elevado preço das refeições e com a pequena quantiodade das doses, em restaurantes tão diferentes daqueles que frequentava no Porto.

    Pedroto ouviu-o em silêncio, depois chamou-o para se sentar a seu lado. Continuava a prestar atenção ao jogo, mas inclinou-se e segredou-lhe que tinha combinado com o chefe do hotel, que era português, uma soberba bacaulhazada. Tinha todo o gosto em convidá-lo: melhor, não era preciso pagar nada. Podia, enfim, comer como se estivesse na sua cidade, mas havia um pequeno problema: a ceia teria de ser tardia. Nunca antes das três da madrugada, depois da hora que o cozinheiro terminava o seu horário de trabalho.

    O convidado sentiu-se honrado, para mais sendo um convite do senhor Pedroto, e logo bacalhau, de que ele gostava muito. E a esposa, poderia ir?… Não?… Pois, era evidente, seria uma coisa só de homens e não iria ficar bem. Que não havia problema, conseguia explicar-se à familia. Prometeu não faltar e agradeceu com vénias sucessivas e olhos gulosos.

    Pela madrugada, a mesa de Pedroto estava, como sempre, coberta de fumo e de conversas cortadas pelo som das cartas a bater no tampo de madeira. Havia, como se estivéssemos no Batalha (hotel onde habitualmente o Porto estagiava), um pequeno grupo de admiradores e servos da gleba prontos a anuir às opiniões do mestre e a elogiá-lo como a um deus grego. Como sempre, Pedroto dominava a cena. Às vezes, chegavam os noctívagos, os homens das aventuras nocturnas, que traziam novidades da vida mais escondida de Bruxelas, alguns, gabarolas encartados, contando histórias improváveis de estrangeiras sempre extasiadas com portugueses marialvas. Pedroto ouvia, divertido. O cigarro a encurvar-se em cinza, os olhos, por detrás dos óculos, semicerrados pela lonjura da noite. Já estávamos perto das quatro da manhã  quando o homem da rádio, tímido e sumido de voz, perguntou:

    -Mas, senhor Pedroto, acha que o bacalhau ainda demora muito?

    Campeão pelos portistas no tal decisivo 1977-78, bisava no ano seguinte mas o Verão Quente obrigaria-o a interregno de dois anos, nos quais ajudou o Vitória vimaranense, voltando em 1982 já com Pinto da Costa, os dois finalmente prontos para pôr em marcha o seu projecto de dominação nacional, sem ninguém a estorvar.

    Só mesmo Eriksson conseguiria adiar os seus intentos, dominando o período 1982-84, com dois campeonatos e uma Taça, além duma final da UEFA – o FC Porto fazia o que podia e era obrigado a virar-se para outros objectivos. Apesar de exemplar rendimento interno, com segundo lugar e… nove golos sofridos em 30 jornadas (ainda hoje recorde absoluto) nada feito, tinha que ser a Europa a abrir-se como solução para o sucesso, pela porta da Taça dos Vencedores das Taças.

    Até chegar a Basileia, o FC Porto foi avançando sem grandes percalços, mesmo que tivesse que recorrer à regra dos golos fora nas duas primeiras eliminatórias (Dínamo Zagreb e Rangers, 2-2 agregado). Com o Shakhtar, nos Quartos, o 3-2 das Antas possibilitou que o empate em Donetsk desse acesso à qualificação, e nas Meias surgiu o Aberdeen dum tal de Alex Ferguson, que ainda não era Sir, mas já tinha levado os escoceses ao sucesso continental, sendo ele o campeão em título da Taça das Taças – mas o Porto, pouco interessado pelos ecos do futuro dos outros, ganhou pelo mais honesto e sincero dos resultados, tanto em casa como fora: 1-0.     

    Chegava-se à final para se ver pela frente outro competidor sério. A Juventus de Giovanni Trappatoni tinha sido finalista da Taça dos Campeões no ano anterior e seria-o no ano seguinte, em 1985, sagrando-se campeã frente ao Liverpool de Dalglishna tragédia do Heysel. Era a base da Itália campeã mundial em 1982 e juntava à espinha italiana a posta estrangeira, como Platini – prémio de melhor do mundo três vezes seguidas, de 1983 a 85. Em 1982, o melhor do mundo tinha sido Paolo Rossi, ponta-de-lança titular, e em terceiro lugar desse ano surgia Boniek, o trequartista.  Era este o estado de arte.

    A missão mais díficil se tinha tornado com a doença de Pedroto, que o obriga a cuidados a partir de 5 de Dezembro de 1983 e a internamento em Londres a partir de Janeiro. Em Maio, no dia do jogo, ainda é ele que faz a táctica, mesmo longe. Depois da vitória na Escócia, António Morais, fiel adjunto e responsável pela transposição das ideias, revelava os procedimentos:

    Tudo correu melhor do que eu próprio esperava, com aquele golo do Vermelhinho, que foi ouro sobre azul. O mérito de tudo isso pertenceu a Pedroto, pois tive com ele demoradas conversas em que definimos a estratégia a adoptar. Aliás, Pedroto esteve tentado a vir a Aberdeen mas à última da hora receou uma recaída. Mas já tem bilhete comprado para a Suiça! Penso mesmo que isso foi grande moção de confiança a estes jogadores

    A final não correu bem apesar do bom rendimento portista, que ficou a agradecer a Adolf Prokop, o alemão do apito, a vista grossa em dois penálties e no golo de Boniek, que se atira ostensivamente sobre João Pinto. Muito reclamaram os do Norte, convictos porém de que estavam prontos para enfrentar a elite europeia. Havia equipa para isso. Pedroto sentiu concluída a primeira fase do projecto. Tentou lutar, destemidamente, como sempre fizera contra todas as instâncias e intervenientes, contra a doença, mas o fatalismo era adversário de outro calibre. Em Novembro o Presidente Ramalho Eanes tem o tacto de o honrar ainda em vida, dignando-o com a Ordem do Infante. Mesmo em grandes dificuldades, ergueu-se, e depois de meter os icónicos óculos foi à porta do quarto receber o Presidente, ao qual agradeceu com um nobre pedido: que desse aos profissionais de saúde as melhores condições possíveis na luta contra o cancro.

    A 8 de Janeiro de 1985, já o Porto corria de vento em pompa para a completa glória internacional sob orientação de Artur Jorge, seu discípulo, a quem pedira para o vir ajudar depois de tirar os mais avançados cursos de treino em Leipzig, Pedroto pediu, já noite dentro, um pouco de Whisky – que a filha lhe deu a beber numa colher – e um cigarro, para degustar pela última vez os prazeres terrenos. Tinha 56 anos. Como todos os excepcionais, de vida e paixões intensas, a longa vida fica para as ideias que lançam, as sementes que outros colherão depois. 

    Fernando Vaz, outro grande nome dos bancos, campeão pelo Sporting e vencedor da Taça em Setúbal, que fora o seu último treinador, despedir-se-ia assim:

    Beirão de gema, amado por um e odiado por outros, José Maria Pedroto foi a figura mais fascinante que conheci entre os homens de futebol do nosso tempo. O seu carácter era constante no mundo de gente enérgica que o envolveu desde muito jovem e que sempre o sujeitou ao esforço e à luta.

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    Pedro Cantoneiro
    Pedro Cantoneirohttp://www.bolanarede.pt
    Adepto da discussão futebolística pós-refeição e da cultura de esplanada, o Benfica como pano de fundo e a opinião de que o futebol é a arte suprema.