A pequena Helena e aquela tarde no Jamor: histórias de amor-ódio

    Existe nas circunstâncias da origem de cada indivíduo ou associação a tentação de manter um conjunto específico de características e tradições familiares e uma obrigação perpétua na defesa da honra de um ideal comum. Os nascimentos de Sport Lisboa e Sporting Clube de Portugal não foram só diferentes nos contextos de criação como nos ideais perseguidos e maneirismos que perduram na contemporaneidade portuguesa, numa linda metáfora da nossa sociedade e que ultrapassa trocas geracionais.

    O povo que pula nos estádios de futebol é o mesmo que insiste rastejar em Fátima – e talvez daí seja perceptível uma empatia especial dos lusitanos para com misticismos vários que influenciem a sua vida e que sejam ‘porto de abrigo’ das suas emoções.

    Quando os Irmãos Catatau trocavam passes rasteiros com Cosme Damião e rematavam em arco contra as paredes do pátio da Farmácia Franco, nunca eles imaginariam a dimensão da sua fé e da sua iniciativa num desporto ainda apenas e só de elite; quando José Alvalade se revolta numa assembleia caótica do Campo Grande Football Club e profere a declaração que corresponde à criação do Sporting – «Vou ter com o meu avô (Augusto das Neves Holtreman, o famoso Visconde de Alvalade) e ele me dará dinheiro para fazer outro clube”» – nunca ele imaginaria o peso da sua atitude e como ela definiria toda uma dicotomia que coloriu a cultura portuguesa por todo o século XX, assente em histórias mirabolantes e duelos marcantes que a fizeram chegar ao novo milénio como a mais apaixonante rivalidade desportiva. O verde e o vermelho num harmonioso frente-a-frente eterno, como na bandeira nacional.

    Estamos em 1907. O Sporting, recém-nascido, não tem qualquer equipa de futebol, apesar de ser essa a sua principal intenção. Os melhores jogadores estavam já nas fileiras dos principais clubes da região e dos 17 dissidentes da rambóia com o Campo Grande Football Club: eram poucos os praticantes competentes. José Alvalade lança, junto com as moedas do avô em envelope lacrado, canto de cisne de forma a seduzir os melhores executantes do Sport Lisboa. O primeiro de todos os Verões Quentes.

    Oito titulares aceitariam. Júlio Araújo, presidente do Sporting uns anos mais tarde, contextualizava: «O Sporting caprichava em apresentar sempre uma bola nova em cada desafio. Um dia, num jogo em que choveu torrencialmente, o Sporting, depois de ter estreado uma bola na primeira parte, apresentou outra, novinha, na segunda. Quanta exclamação por tal facto! Terminado o encontro (com o Carcavelos, no Lumiar) foi oferecido um finíssimo chá a todas as senhoras presentes, realizando-se em seguida, numa grande sala da casa do Exmº Sr. Visconde de Alvalade, um banquete a todos os jogadores, imprensa e delegados da Liga de Football». Ou seja, ao Sporting, quando piscou o olho aos desgostosos rapazes de Belém, faltava apenas uma grande equipa de futebol. Não foi difícil consegui-la.

    Foi esse então o rastilho de confrontos centenários e ódios viscerais que marcaram a generalidade de uma relação intensa, de nervos à flor da pele. Mas é natural que ao fim de tantas zaragatas se crie empatia e confiança recíproca nas capacidades humanas de ambas as associações. Se episódios como a contratação de Eusébio ou o Verão Quente reacendem, de quando em vez, as hostilidades relembram que é imperial não perder a concentração em autêntica guerra fria: há episódios de muita humanidade e que mostram o outro lado do jogo.

    Houve também alturas de armistício no Benfica-Sporting, situações sobre as quais vale a pena a reflexão e o salientar dos bons momentos e dos episódios que marcam positivamente a querela: são os mais raros e os mais curiosos.

    Um desses passa-se nos arrabaldes dos loucos anos 20, já Francisco Stromp fazia contas quanto ao final da sua carreira como jogador. Conta Romeu Correia na biografia da lenda sportinguista que quando este recolhia à cabine para equipar, «confiava sempre a irmã (Helena Stromp, que se destacou como tenista) a amigos sportinguistas. Aconteceu uma vez que houve um jogo escaldante Sporting-Benfica, tendo deflagrado grande zaragata entre jogadores e público, motivada por uma decisão do árbitro bastante discutível… Como a desordem se alastrou no arraial sportinguista, onde se encontrava a pequena Helena, os adeptos leoninos começaram a passar a menina de mão em mão para a pôr a salvo de qualquer desacato. E desta forma, inexplicavelmente, a criança foi parar ao camarote dos inimigos benfiquistas. Logo o presidente da colectividade ‘encarnada’, ao saber que ela era uma Stromp, a protegeu e beijou, acarinhando-a e oferecendo-lhe um grande e saboroso chocolate.» Enternecedor.

    Outra grande amostra de que sobre o ódio existem também pontos de contacto amigável entre as duas facções é a final da Taça de 1979-80, quando os adeptos lisboetas se juntaram para apoiar o Benfica na vitória tangencial contra o, à altura, inimigo comum: o FC Porto.

    Além da suposta luta contra a centralização do futebol português encabeçada por Pinto de Costa e José Maria Pedroto, o Campeonato Nacional desse ano viu forte concorrência entre verdes e azuis, numa luta taco-a-taco até ao final e que apenas ficou consumada na penúltima jornada, quando o Sporting foi a Guimarães derrotar o Vitória.

    À conquista no Minho, por números tangenciais (0-1) e com auto-golo de Manaca, ex-leão, sucederam-se fortes acusações de Pinto da Costa, ainda só director do Departamento de Futebol. Lançou, com o seu jeito habitual, suspeitas sobre a integridade do jogador e dos clubes e o rumor de que teriam existido subornos, tendo sido esse clima de guerrilha e acusações contínuas o combustível para a decisão dos adeptos sportinguistas fazerem a peregrinação rumo ao Jamor ao lado dos adeptos encarnados. Nas bancadas ficaram famosos os vários cartazes com provocações às figuras do clube portista, num mar vermelho-esverdeado que ficou conhecido como a ‘Santa Aliança’. Tempos de grandes mudanças no futebol e no próprio país, onde os portugueses viviam ainda a genial loucura da liberdade…

    Luís Figo e João Vieira Pinto, dois génios e figuras daquele saudoso 3-6
    Fonte: SL Benfica

    E daí, ficam outros tantos escondidos nas malhas do tempo; que, desde o primeiro encontro entre os dois, já conta com 113 anos. São a honra e as memórias de 307 partidas que não merecem a actualidade trivial, onde tudo importa menos os protagonistas e o que se passa no relvado. Haverá tardes com mais magia impregnada que o bailado de João Vieira Pinto em Alvalade? Que os sobrenaturais 7-1 numa tarde diluviana? Que o 5-4 no Jamor? Momentos assim serão sempre inolvidáveis para quem os viveu.

    Num confronto onde foram protagonistas deuses da bola como Peyroteo, Coluna, Eusébio, Hilário, Yazalde, Manuel Fernandes, Simão ou Cardozo, existirão sempre motivos suficientes para captar a atenção para o lado positivo – o futebol jogado –, o que justificará sempre uma voluntária ignorância de pedra quanto às incidências de bastidores e fóruns televisivos – o ‘desfutebol’ falado.

    Foto de capa: Carlos Silva/Bola na Rede

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    Pedro Cantoneiro
    Pedro Cantoneirohttp://www.bolanarede.pt
    Adepto da discussão futebolística pós-refeição e da cultura de esplanada, o Benfica como pano de fundo e a opinião de que o futebol é a arte suprema.