O Clássico, o xadrez russo e o distanciamento social

    O Sporting CP empatou diante do FC Porto e manteve o distanciamento social exigido pela Direção Geral de Saúde. A estrutura, os técnicos, o plantel e os adeptos tentaram a aproximação, mas os dragões recuperaram de uma desvantagem de dois golos e engendraram uma manobra de xadrez ao estilo de Garry Kasparov defronte de Anatoly Karpov: segurou a prerrogativa dos seis pontos, embora relegasse a dianteira no confronto direto. Quem disser que a menção do xadrez não provoca a balbúrdia mental é russo ou assistiu a The Queen’s Gambit.

    “O Clássico foi quentinho”, intenso. Para quem assistiu à partida pela televisão, ficou a sensação de que as quatro linhas se assemelhavam a uma fogueira excitada e estimulada pela gasolina do lançamento sobre a relva e de que o público compunha as muitas achas lançadas em torno dos intervenientes diretos e indiretos.

    Uma espécie de quadra natalícia com o tio embriagado até ao tutano, responsável pelo erigir de ruídos (digo ruídos pela sobreposição do álcool à fala): há sempre uma alma que lança o primeiro sonho à testa do indivíduo. Já ouviram falar do efeito bola de neve?

    No Norte, se dúvidas restavam acerca da preponderância de Fábio Vieira na manobra ofensiva do FC Porto, ontem foram dissipadas: o miúdo oriundo do Olival calçou pantufas azuis, comandou e operou uma quase reviravolta praticamente sem ajuda à altura. Evanílson deu a fuga da baliza adversária, Otávio evadiu-se de uma expulsão, Vitinha deixou escapar o pormenor que o define.

    Fonte: Diogo Cardoso / Bola na Rede

    Do lado leonino, Sebastián Coates fez esvair a esperança de sair do Dragão com a vitória, assim como o FC Porto esfumou qualquer tentativa de ataque na segunda parte. De Islam Slimani ninguém conhece o paradeiro. Matheus Reis manufaturou um manguito a Francisco Conceição, mas o miúdo não esteve à altura.

    Frederico Varandas teve um pressentimento que devia adotar uma postura anónima e desprovida de qualquer valor monetário e material, mas não deu importância. A saída do recinto já correspondeu à premonição.

    João Pinheiro apitou e nenhuma das três equipas em campo, juntamente com seguranças, dirigentes, “homens de futebol” e diretores de comunicação respeitou o tão famigerado distanciamento social. Então dentro de campo terminou tudo como começou e fora andam aos beijinhos e amassos? Considero que os operadores de câmara e as respetivas estações televisivas não agiram corretamente ao transmitir a paixão ardente e pornográfica a que assistimos.

    O pós-jogo recordou o rebentar da tensão sentida na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia, mas divergiu num aspeto particularmente interessante: os militares foram substituídos pelos coletes azuis. Não, desta vez não existiu qualquer manifestação sobre o aumento de impostos de qualquer estirpe.

    A não ser que os publicitários do clube estivessem com os salários em atraso e quisessem descarregar a fúria por não terem indumentária da cor do equipamento alternativo do Sporting CP. Não se via uma disputa de vestimenta de tal ordem desde a primeira aparição de um centro comercial em Portugal.

    Fonte: Diogo Cardoso / Bola na Rede

    O abraço entre o Rúben Amorim e Sérgio Conceição comoveu-me. O pedido de desculpas do árbitro aos jogadores do Sporting CP embeveceu o meu semblante. Mas ver Pinto da Costa na tribuna restaurou a minha fé na condição humana. 40 anos não são 40 dias! A figura papal inspira à devoção e ao respeito (medo, vá) dos baluartes do clube. No fundo, sinto-me como se fosse ao spa de manhã, a uma aula de ioga durante a tarde e tivesse praticado meditação depois de jantar.

    O mais recente episódio da saga que abarca o futebol português retirou-me as forças para introduzir a monografia com louvores ao ocorrido dentro do relvado e com rasgados elogios às instâncias coniventes com a bandalheira e com a imoralidade.

    O fenómeno internacionalizou-se num ápice e ainda bem: felizmente, o universo pôde constatar a putrefação na qual a modalidade está emaranhada. O hooliganismo teve origem em Inglaterra, mas a indecência é natural de cá. Que se lixe, continuamos a ser os melhores do mundo, não é?

    Só neste país é que não se tem respeito pelo presidente!

     

     

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    Romão Rodrigues
    Romão Rodrigueshttp://www.bolanarede.pt
    Em primeira mão, a informação que considera útil: cruza pensamentos, cabeceia análises sobre futebol e tenta marcar opiniões sobre o universo que o rege. Depois, o que considera acessório: Romão Rodrigues, estudante universitário e apaixonado pelas Letras.                                                                                                                                                 O Romão escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.