Jogo Interior #6 – Sobre o Talento: Aquilo que não nos disseram

    jogo interior

    Existe percurso sem ser o da prática?

    O talento já vem de “fábrica” ou é construído? Quando vemos um miúdo de 6 anos a fazer coisas fantásticas com uma bola, seja com as mãos, seja com os pés ou com a cabeça, a primeira coisa em que pensamos é: “Aquele miúdo tem talento…”. Amiúde acontece-nos isto mas julgo que nunca nos debruçámos efectivamente sobre esta questão.

    Há uns tempos encontrei um livro bastante interessante de Daniel Coyle: “O Código do Talento”. Basicamente explica-nos com alguma profundidade e base científica e experimental o que faz com que alguém tenha talento, em qualquer área. O que nos diz também é que há uma pequena base genética que pode influenciar a habilidade de um filho para fazer algo, habilidade essa relacionada com uma que o pai ou a mãe também tenham. Diz-nos ainda que essa base genética é apenas um ponto de partida e que o desenvolvimento do talento em si é fruto de uma prática intensiva. Daniel Coyle no seu livro explica-nos que “A teoria da excelência através do talento natural priva as pessoas e as instituições da motivação para se mudarem a si mesmas e às sociedades.”.

    Nós não acreditamos no poder da prática, seja ela informal ou formal, se considerarmos que Ronaldos ou Messis nascem já com o talento que demonstram ou até demonstraram quando eram crianças e foram encontrados pelos “caçadores de talentos”, sejam eles os próprios pais, familiares ou olheiros. Não acreditamos que a prática pode moldar a forma como os jogadores jogarão no futuro, seja ele imediato ou remoto. Muitos pais, quando o filho já mostra alguma coisa a nível técnico em tenra idade, criam expectativas desmedidas e alimentam o ego da criança até à exaustão: o ego da criança, sim, mas principalmente o seu, sendo que aquilo que o filho faz é motivo de um orgulho cego, desproporcionado e desmedido, e quando a criança não corresponde às expectativas surge uma grande desilusão. Ou isso, ou quando um treinador competente, honesto e sincero vai ter com um pai ou uma mãe e diz algo do género: “O seu filho não é o jogador que você julga que é…”. O que acontece de seguida? O pai retira o filho dessa equipa porque o treinador para ele é um incompetente e não percebe nada do jogo… Esta questão levar-nos-ia para longe do contexto do tema e por isso vou-me focar no talento em si.

    O Professor Júlio Garganta (2014) afirma que “o Talento Potencial pode existir antes do treino, mas o jogador só existe depois disso.”. O talento potencial mencionado pelo Professor nesta afirmação indica a possibilidade da existência de certas potencialidades e propensões genéticas que podem ajudar uma criança a tornar-se no futuro um talento real, como também poderão ter existido certas influências e experiências que guiaram alguém ao estado de talento potencial. Importa recordar que inúmeros talentos potenciais apenas o são em certas idades e posteriormente, por diversas razões, acabam por não ser transformados em reais, deixando naturalmente o indivíduo de se tornar num jogador.

    O que retiramos da frase do Professor não é que esse potencial existe mas que o jogador só existe depois da prática e que não há uma opção em que o potencial transforme o indivíduo em jogador sem este praticar. Coyle coloca isso como sendo uma condição obrigatória… Como foi referido anteriormente um indivíduo pode ter propensões que o ajudarão ou farão com que as suas experiências sejam vividas de forma diferente.

    O talento do treinador

    Quando consideramos o talento de um professor ou treinador, podemos usar o mesmo tipo de reflexão e abordar os mesmos aspectos, embora de forma diferente. No nono capítulo do livro de Daniel Coyle (“O Código do Talento”), o autor lista as quatro maiores virtudes dos grandes treinadores. Essas qualidades são decorrentes de observações feitas a uma série de treinadores, não sendo apenas treinadores desportivos. Na opinião de Coyle, “A habilidade de ensinar excepcionalmente bem é um talento como qualquer outro: parece algo mágico quando na verdade é uma combinação de habilidades.”. A esse conjunto de habilidades Coyle chamou “As quatro virtudes”.

    A primeira virtude constitui-se no “software” do treinador, ou seja, naquilo que ele armazenou ao longo do tempo: a sua memória, o conhecimento, a experiência. Para Coyle, na prática, isso consiste numa mistura de “conhecimento técnico, estratégia, experiência e sensibilidade aguçada (…) sempre pronta a identificar e compreender o ponto em que os alunos (ou atletas) estão e aonde precisam chegar.”. Quando ele se refere à sensibilidade aguçada está a referir-se à inteligência emocional, obviamente.

    A segunda virtude é a perspicácia. O treinador não apenas vê mas esmiúça, decifra, identifica, reconhece, atribui uma lógica para o que está a acontecer! Para Coyle, os grandes treinadores “ficam a observar demoradamente, sem sequer piscar os olhos.”. Transformam os seus olhos em câmaras, com a finalidade de captar todas as informações. Conseguem ver aquilo de que precisam e vêem também o que não estão à espera de ver. Aplicam o seu filtro interno e livre de julgamento a priori…

    A terceira virtude, a que ele chama “O reflexo GPS”, é a capacidade de o treinador fornecer dicas que conduzem o atleta à execução ideal. O atraente desta comunicação é que ela acontece por imperativos, como por exemplo: “Faz assim!”, “Usa!”, “Vira!”, etc.. O treinador tem algo objectivo a partilhar. Não deixa dúvidas quando comunica, pois quer levar o seu atleta para um lugar que interessa aos dois. Se necessário, o treinador muda o tipo de informação que emite até conseguir o efeito desejado. Para Coyle, “Quando o plano A não surtia efeito tentavam o B e o C. Quando o B e o C falhavam, ainda tinham todo o resto do alfabeto à disposição.”. Demonstrações de paciência e persistência integram esta virtude. Bem, na verdade, não é paciência, mas sim uma impaciência estratégica por parte do treinador. A paciência está mais ligada ao executante.

    A quarta virtude identificada foi a “honestidade teatral”. Trata-se da virtude de o treinador encontrar a forma de comunicar mais adequada para cada atleta, cada situação: encorajando, variando o tom e a velocidade da voz, perguntando, sendo assertivo, umas vezes calmo, outras vezes inquieto, etc.. Para Coyle, “o teatro e as máscaras não passavam de instrumentos utilizados por eles para transmitir aos alunos a verdade sobre o seu desempenho.”. Portanto, grandes treinadores têm um vasto conhecimento, são perspicazes, sabem o que querem e como comunicar, o que não é fácil.

    O papel chave da descoberta guiada no desenvolvimento do talento no desporto

    No desporto não concebo a aprendizagem e o desenvolvimento que não sejam feitos através de descoberta guiada. É a minha perspectiva. A descoberta está relacionada com entrar no desconhecido ou incerto, sendo que, por ser guiada, através da presença de alguém que orienta, certificando-se de que a experiência se mantém dentro da busca do objectivo, o executante desenvolve em si competências cognitivas consistentes, permitindo-lhe fazer o transfer entre as diversas situações e/ou contextos. O potencial talento a que o Professor Garganta se referia é fruto da constante descoberta e experiência inicial, repetidas vezes sem conta, que em idades baixas a criança executa.

    Tenhamos em conta o basquetebol. Um miúdo de 8/10 anos que começa a tomar contacto com a modalidade (provavelmente deram-lhe uma bola e ele arranjou um campo com cesto) começa basicamente por imitar outros jogadores mais velhos, que ele admira, seja do campo ou da televisão, a driblar, a passar, a encestar, com uma mão, com duas mãos, a experimentar passar a bola por trás das costas, por baixo das pernas, etc.. Isto vezes sem conta, atendendo a que a sua motivação estará ligada directamente à sua capacidade de evolução. A tríade tentativa/erro, tentativa/correcção e tentativa/acerto é o mapa mental que a criança usa para aprender, e as legendas são as imagens que ela copia e compara. Aos 13 anos, e após prática diária regular e intensa, verificam-se em média cerca de 1200 horas investidas em treino.

    Fonte: Chilli Head
    Fonte: Chilli Head

    Não é de admirar que este jovem se torne excelente e que transforme o talento potencial em real. Isto somente através da autodescoberta. Entrando ele para um clube e integrando uma equipa de formação que treina e compete bastantes horas e com treinadores competentes, a descoberta guiada irá fazê-lo emergir do potencial para o real em pouco tempo. Ter um excelente treinador acelera este processo.

    A importância da Mielina

    O talento veio em parte da autodescoberta dos gestos, da prática, da persistência, da motivação, da genética, e de inúmeros outros factores que o influenciam, havendo até uma enorme influência ao nível neurofisiológico, através da mielinização dos axónios das células nervosas (as “fibras” que transportam os impulsos eléctricos e que os neurónios utilizam para comunicar entre si). A mielina permite não só a condução rápida dos impulsos nervosos como a sobrevivência das próprias células nervosas.

    A psicologia da aprendizagem ensina que o conhecimento, ou movimento, uma vez aprendido, fica armazenado no neocórtex sob forma de engrama (impressão deixada nos centros nervosos pelos acontecimentos vivenciados, activa ou passivamente, pelo indivíduo), que consiste num determinado padrão de ligação entre os neurónios. O engrama, que é sempre utilizado, fica cada vez mais “nítido” e “forte”, ao passo que aquele que não é utilizado enfraquece e pode até extinguir-se. Se um gesto desportivo for repetido com constância, o seu engrama ficará tão forte que permitirá a execução do gesto de forma reflexa, através de uma rápida comparação entre as reacções neuromusculares e o engrama. Este aspecto está ligado à mielinização das fibras nervosas e à velocidade de condução dos impulsos, bem como à caracterização dos tipos de movimentos.
    Em jeito de conclusão deixo aqui algumas questões:

    Aquele miúdo que era uma promessa e tinha grande talento nos juvenis “desapareceu” porquê? Aquele que era tosco aos 13 anos porque é que agora é um excelente jogador profissional? Que influência pode ter o treinador, através da experiência que fornece aos seus atletas, na realização de um potencial talento? O que é que os talentos reais actuais fizeram para chegar onde chegaram?

    O Segredo? Prática, prática, prática… É isso! Agora, embora lá treinar…

    bruce lee

    O Bruce Lee disse uma vez: “Eu não receio aquele que praticou 10.000 pontapés uma vez. Eu receio aquele que praticou um pontapé 10.000 vezes.”

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    Alcino Rodrigues
    Alcino Rodrigueshttp://www.bolanarede.pt
    Já foi jogador mas há uns tempos passou para o outro lado e ajuda os treinadores com as coisas que escreve. Adora desporto e todas as componentes do jogo interior, ou treino mental. O seu foco são os processos e adora estudar as dinâmicas do trabalho em equipa. Coloquem muita malta a trabalhar junta e ele descortina todas as suas nuances. Já teve filhos, plantou árvores e ultimamente lançou um livro. Parece que está safo…                                                                                                                                                 O Alcino não escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.