O passado Também Chuta | Manuel Fernandes (1951-2024)

    Só o amor pela instituição e as noções solidárias dum irrepreensível praticante de jogo colectivo o impediram Manuel Fernandes de ser o maior dos maiores. Como o que o alimentava era a felicidade dos companheiros e associados, oferecia golos na mesma quantidade com que os marcava. Muitos penalties e livres deixava para outros, apesar de ter no remate uma das suas principais armas. Só por isso, acomoda-se no zénite leonino como um dos ilustres, partilhando assento com Peyroteo, Travassos e Damas – e não, como talvez mereceria a sua devoção, rendimento e longevidade, como o maior de todos eles, num patamar ligeiramente acima.

    Para se medir a paixão que suportou tanta eficácia e suor às riscas verdes e brancas, bastará lembrar que chegou a Alvalade depois de recusar os mil contos que Pedroto e Américo de Sá estavam prontos a dar, a partir do Porto, porque atendeu às vontades do coração e de sua senhora mãe – que, dizem, profetizara antes de partir que o seu filho acabaria jogador do Sporting.

    Manuel, já aí apaixonadíssimo, seria-o ainda mais em 1987, quando o inglês Keith Burkinshaw, treinador vencedor da UEFA pelo Tottenham de Ossie Ardiles uns anos antes, o decide dispensar. Porque tinha 36 anos e o prazo de validade estar já fora de prazo, argumentavam, mesmo tendo acabado de fazer 15 golos em 29 presenças no Campeonato. Quando perguntado se o poker feito ao Benfica em certa tempestuosa tarde de Dezembro era o melhor momento da sua carreira, Manuel lançava: «Sinceramente, mais do que qualquer golo ou jogo, o maior momento de glória da minha vida foi aquele em que vesti, pela primeira vez, a camisola do Sporting. Só de pensar nisso fico sem palavras, por vezes com as lágrimas à beira dos olhos…»

    Foi em Agosto de 1975, logo com um hattrick frente à Académica (5-3). Tinha 24 anos, um miúdo já feito homem pela precocidade dos feitos: aos 16 anos, finalmente decidiu tentar a sorte no clube da terra, o 1.º de Maio Sarilhense – passado um ano, já era titular dos séniores, na III Divisão. A CUF, gigante da zona, não tardou a lançar-lhe o maior canto de cisne da altura – futebolista na equipa da fábrica onde se empregaria, com profissão à escolha. Do futebol recebia 800 escudos, do emprego 1000. Os primeiros tempos não foram rosas, isso só depois: porque Costa Pereira, o guardião das Taças dos Campeões benfiquistas, não soube ver nele grande espingarda. Só com Carlos Silva e sobretudo Fernando Caiado, outro benfiquista com mais olho futebolístico, é que dá nas vistas no Lavradio. A partir da banda direita do ataque, é muito por ele que a CUF consegue o 4.º lugar no campeonato 71/72 – marca nas Antas o golo que permite ultrapassagem na tabela – , e é pela CUF que consegue estrear-se nas sensações de futebol europeu – vencendo os belgas do Racing White e incomodando o Kaiserslautern, inclusive ganhando na Alemanha, a primeira de sempre duma equipa portuguesa.

    O 25 de Abril e os ventos fortes do PREC acabaram com a CUF, destruindo o projecto empresarial e sobretudo o desportivo, precipitando a decisão de muitos dos craques: ou continuar empregado fabril ou tentar a sorte como futebolista. Em tempos que a fábrica dava mais segurança financeira, Manuel Fernandes arriscou o sonho de criança. Pedroto cantou-lhe do Porto e obrigou Américo de Sá, quem Pinto da Costa derrotaria para se tornar presidente em 1982, a agir rapidamente – 1000 contos de luvas, pegar ou largar.

    João Rocha, a partir de Alvalade, não garantia tanto, mas demonstrava vontade e apelava ao sentimento. Manuel Fernandes decidiu pelo coração e pelo desafio: ser o sucessor de Hector Yazalde, o fabuloso argentino que marcara 128 golos em 135 jogos pelo Sporting e que ainda hoje retém o recorde numa edição da Liga (46, 1973/74).

    Figura de proa durante doze anos pela propensão a protagonista nos instantes mais perturbadores, foi dele o decisivo golo na finalíssima 77/78 da Taça, ganha ao FC Porto (a polémica final na qual o árbitro Mário Luís é acusado pelos portistas de favorecer o Sporting e, a favor dessas alegações, estará para sempre o facto de ter viajado, no dia seguinte, para a China, como acompanhante da digressão… leonina) e foi dele também um tento em Leiria que deu o campeonato dois anos depois.

    Comporia com António Oliveira e Jordão um trio inesquecível que, ordenado pelo espectacular Malcolm Allison, conquistaria a dobradinha 81/82; aos 34 anos, em 85/86, faz 30 golos em 29 presenças no campeonato, averbando a Bola de Prata e só não conseguindo a Bota de Ouro do L’Equipe porque em Amesterdão jogava um senhor chamado Van Basten, que fez 37. Ora, jogava-se nesse Verão o Mundial do México, para o qual a Selecção se qualificara surpreendentemente com o canhão disparado em Estugarda. Pensar-se-ia que teria vaga garantida. Não, disseram os interesses que afligiam a Federação.

    O imbróglio, que tomou proporções de escândalo, começou no início dessa época, quando Manuel Fernandes foi convidado para ir ao Domingo Desportivo por ter feito cinco golos num 6-0 ao Penafiel. Inocentemente e mostrando o seu lado mais humanístico, Manuel falou o que lhe ia no peito.

    «Fui convidado pela RTP para participar no Domingo Desportivo. Uma das perguntas do comentador foi o que eu achava da selecção. Disse então que eu já estava a caminho dos 35 anos e que seria talvez a hora de dar oportunidades aos mais jovens. Mas disse sem segundas intenções. Daí em diante aproveitaram-se disso para justificar a minha ausência».

    José Torres foi empurrado o assunto com a barriga que não tinha e foi-se sempre esquivando das justificações mais plausíveis. Na hora da verdade convocou Fernando Gomes e Rui Águas, avançados de FC Porto e Benfica, clubes que disputavam o controlo absoluto do futebol luso. João Rocha, o mítico líder dos Leões, não tinha medo. Em comunicado oficial, não se coibiu de ser subversivo, de chamar as torres pelos nomes.

    «Deploro profundamente o facto que atinge cruelmente um dos mais briosos e representativos atletas do Sporting, atribuindo a esta atitude a inadmissível birra e má-fé dum indivíduo (…) que não reúne, portanto, os mais elementares atributos para o cargo que, em má hora, lhe foi submetido. O êxito da representação nacional estará, pois, à partida, ingloriamente comprometido se o Sr. José Torres não apresentar, no imediato – como se impõe – o pedido de demissão das suas funções, deixando o caminho livre a quem esteja, de facto, interessado em levar ao México a melhor equipa portuguesa».

    Livraram-no dos sarilhos de Saltillo. 20 dos convocados ficaram riscados, do Manuel Fernandes precisaram para ser finalmente o que já era há muito tempo no Sporting – líder máximo. Seria o principal nome da reformulação dos quadros de atletas séniores e cumpriria cinco jogos na qualificação falhada para o Euro 88, com um golo frente à Suécia (o sétimo de 31 internacionalizações).

    Depois da ingratidão inimaginável às mãos de Burkinshaw, Manuel Fernandes reencontrava em Setúbal o amigo Malcolm Allison, novamente com o melhor dos rendimentos – 16 golos na Liga.

    Seu sucessor seria, como jogador-treinador, carreira que depois assumiu a tempo inteiro com êxitos assinaláveis em Campo Maior (depois de Nabeiro o desafiar a levar o clube à Primeira divisão) e nos Açores, onde levou o Santa Clara da IIª B ao escalão máximo. Pelo meio, voltaria ao seu coração: primeiro, para ser adjunto de Bobby Robson – e em solidariedade para com o inglês saiu depois da injusta derrocada em Salzburgo, frente ao Casino, dando-lhe o tempo toda a razão do mundo; e voltando em 2000, para assumir de forma interina e fazer a transição até Lazlo Bolöni, com o mesmo espírito de missão de sempre, colocando o clube acima do seu bem-estar ou reputação.

    A sinceridade da postura e a intensidade dos gestos não lhe chegavam a dar fama de maldoso, apenas metia a cabeça em água com tanta travessura, porque a crescer depressa fora obrigado e nunca perderia a essência da ginga rebelde dos da Margem Sul. Utilizava isso em seu favor e em favor do clube.

    Até contra gente mais chegada, vizinhos e amigos: mesmo aos mais experientes, como Bento, que perdeu as estribeiras da razão e se deixou enlouquecer, impotente perante o auge leonino em 1981/82, num 3-1 em Alvalade à jornada 23, ao responder a gesto menos próprio de Manuel Fernandes na mesma moeda.

    «Sem querer, acabei por raspar, com a biqueira da bota, na cabeça de Bento. E ele teve aquela atitude impensável, dando-me com a mão e a bola na cara. Perdeu a cabeça e o árbitro não poderia ter feito outra coisa… Não percebi…  Somos amigos de longa data, havemos de continuar a sê-lo».

    Jordão, outro amigo de muitos sucessos, já tinha bisado. O Manuel, mesmo sem ainda ter marcado, foi o primeiro a dar-lhe a oportunidade única de completar o hattrick- e talvez por isso, quatro anos depois, alguém tenha decidido que, seria naquela noite, contra o mesmo rival, que faria não três, mas quatro golos, mais dois remates do qual sairiam ressaltos para mais dois golos, influência directa em seis dos sete, como recompensa pelos recorrentes sacrifícios do ego em prol da causa maior – porque assim trabalha a justa Providência, que agora actuará no sentido de dar ao nome de Manuel Fernandes a merecida importância, tardiamente.

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