Deram música da boa, estimulando a imaginação e tornando real o sonho de independência. Quando um burro, um cão, um gato e um galo derrotaram um grupo de ladrões numa das encruzilhadas nos arredores de Bremen, a fábula escondia no simbolismo da vitória animalesca uma luta mais profunda.
Bremen conseguira protagonismo pelo mercantilismo substancial que tornou possível a Liga Hanseática, e desamarrara a população dos nós do feudalismo vigente pelo resto do continente.
O Werder, que fizera parte do bulício das primeiras edições de Bundesliga, chegando inclusive a conquistar uma, só conhecera o verdadeiro estatuto de personagem principal na fase 1981-1995, com Otto Rehhagel – o mesmo que ganharia em Portugal o Europeu pela Grécia, noutra história improvável – quando atingiu dois campeonatos, duas taças e uma vitória na Taça das Taças, ganha frente ao Mónaco (de Arsène Wenger e com George Weah, Rui Barros ou Petit) num Estádio da Luz… às moscas, pouco importado com o peso histórico dos dois conjuntos.
Rehhagel sairia em 1995 rumo a Munique e o Bremen voltaria paulatinamente à banalidade. Quatro anos depois, estava prestes a cair para a segunda divisão. Quatro derrotas consecutivas punham o Werder na cauda classificativa e provocavam a demissão do também incontornável Félix Magath.
Os responsáveis do clube seguiram a lógica habitual e chamaram Thomas Schaaf, tornando-o o interino pela força do seu trajecto no clube, onde entrara em 1978 para as camadas jovens e de lá não mais saíra, sendo jogador até 1991 e treinador da formação a partir daí. Schaaf tinha quatro jornadas para evitar a descida. Assina a 10 de Maio e a 11 ganha ao Schalke, a 15 vai a Munique vencer o 1860 e a dia 22 aplica chapa quatro ao Monchengladbach no Weserstadion.
Terminaria o campeonato um ponto acima da linha de água, tratando do assunto da manuntenção de forma tão eficaz que o choque motivacional resultou em vitória na final da Pokal, derrotando o campeão Bayern. Estava lançado como treinador principal.
Até 2003, toca de construir uma equipa tão boa como aquelas que fez parte. As peças do 4-4-2 losango foram-se encaixando, Frings e Baumann foram ganhando bagagem como especialistas nos duelos da intermediária, Ismaël veio da Ligue 1 para complementar a experiência do bósnio Krstajic, e Aílton, formado no Ipiranga e em Bremen desde 1998, ainda à espera da explosão, encontrou em Ivan Klasnic o companheiro perfeito para meter em prática o positivo, mas desconchavado futebol imaginado por Thomas Schaaf, dono duma personalidade excêntrica e pouco acessível – de trato difícil, discernia-se a cada resposta o estereotipado sentido de humor germânico, tão denso que se torna provocador.
O Werder Bremen transfigurou-se à sua imagem, não tinha medo da insegurança natural duma procura incessante pela baliza adversária, em ataques rápidos que impunham a entrada dos interiores em zona de finalização.
A equipa tem o melhor ataque da edição e a segunda melhor defesa, mas sofre 38 golos em 34 jornadas. Se consegue um histórico 0-6 em casa do eterno rival Hamburgo, e logo a seguir um 1-3 em Munique – com 0-3 feitos na primeira meia-hora – também é capaz de perder 2-6 na jornada seguinte, mesmo sendo já campeão, ou perder por 10-3 no agregado no ano seguinte, na primeira vez do clube nos Oitavos da Liga dos Campeões.
A coisa começa a correr mal na primeira mão. No Gerland, casa do Lyon de Juninho Pernambucano, Thomas Schaaf tenta apagar a desvantagem de três golos recorrendo ao sentido prático e constrói um onze com três avançados de área (Miroslav Klose, Klasnic e Nelson Valdez). Leva 7-2. «Nunca estivemos prontos para o duelo individual e chegámos sempre tarde na pressão ao homem da bola[1]» era com esta eloquência que Schaaf explicava as razões do desastre.
Mas voltemos a 2003-04, que é a sua obra-prima, porque além da Bundesliga houve vitória na Pokal, uma dobradinha inédita e até agora única. Schaaf, um homem da casa, atingia o zénite e garantiria contrato quase vitalício, estatuto de intocável que lhe valeu mais quase dez anos de reinado.
Até ao final da década, só por uma vez o Werder Bremen sairia do top3 alemão – e mesmo nesse ano chegaria à final da Taça UEFA, perdida no limite para o açucarado Shakhtar Donetsk de Mircea Lucescu. Nesse período, presença constante na Liga dos Campeões, com cinco qualificações consecutivas para a fase de grupos, o que garantiu constante encaixe financeiro, material indispensável à renovação das grandes equipas.
Depois dos campeões de 2004, o sucesso europeu chegou sobretudo pela porta da Taça UEFA, com meias-finais conseguidas em 2006-07 (eliminação aos pés do Espanyol de Riera, Tamudo ou De La Peña, o mesmo que eliminou o Benfica) e o jogo decisivo em 2008-09, no mesmo losango, mas ainda mais engatado para a frente, com Özil e Diego como construtores, Pizarro e Hugo Almeida como finalizadores – mesmo antes da final, uma saborosa eliminação dos rivais Hamburgo.
Nessas grandes caminhadas europeias, também o asterisco dos grandes momentos em casa, das grandes vitórias internacionais que catapultaram o clube para a estante dos grandes clubes alemães: Real Madrid, Inter de Milão, Tottenham, Valência, Chelsea, Ajax, Barcelona. Todos eles parados em Bremen.
O declínio veio com 2010-11 e o 13.º lugar na Bundesliga, que impossibilitou o investimento para colmatar as saídas das principais estrelas – sintomas da bola de neve iniciada pelas remodelações ao Estádio, que sugariam 60M€ a partir de 2008-, agora envelhecidas ou à procura de fazer cumprir outras ambições.
Klaus Allof, o director desportivo inseparável de Schaaf e que o ajudou durante grande parte do trajecto, conseguindo descobrir as maiores pérolas por valores de pechincha, via-se agora aflito para substituir as peças mais essenciais.
A emergência de Hoffenheim, que seguiria a mesma estratégia para dar a conhecer ao mundo um Roberto Firmino, Leverkusen, Hamburgo ou Estugarda, com outra capacidade financeira, acabariam por abrandar a vitalidade do Werder Bremen e afastar do Weserstadion a matéria-prima.
Naturalmente, Diego, Pizarro, Ozil, Frings, Baumann, Almeida, foram saindo sem chegarem para os seus lugares talentos seguros. Schaaf não se conseguiu adaptar, os rumores de casos de indisciplina no balneário fizeram disparar os alarmes do público, que agora questionava o estilo de liderança e se a personalidade de Schaaf seria a indicada para os novos tempos.
O 14.º lugar de 2012/13 provocou a saída do treinador. O trajecto de catorze anos fez-se dum palmarés invejável – um campeonato (dois segundos lugares, três terceiros), três Pokals (e duas finais perdidas), uma Taça da Liga Alemã (mais duas finais), duas Supertaças, uma final europeia.
[1] http://news.bbc.co.uk/sport2/hi/football/europe/4321493.stm