
Não é fácil fazer um resumo de uma temporada com tantos acontecimentos como a do Sporting em 2024/25. A final da Taça de Portugal coroou a época leonina com uma dobradinha que já escapava há 23 anos e é, de certa forma, o retrato perfeito de uma equipa que teve de viver 1000 vidas em poucos meses.
A final da Taça de Portugal não correu de feição para o Sporting e foram estas vidas quase infinitas que permitiram aos leões manter-se vivos no jogo até ao final, ao momento em que Viktor Gyokeres se lembrou que uma despedida teria de ser uma despedida ao nível do que habituou Portugal e se desenvencilhou das amarras que os leões sentiram durante os 90 minutos iniciais.
Há na final da Taça de Portugal uma certa dose de simbolismo e de retrato de uma época atribulada e diferente do planeado quando Ruben Amorim guiou os leões a uma série de vitórias consecutivas. Rui Borges tem o mérito de devolver a crença ao grupo. Sem a atitude com que lançou a sua passagem a Alvalade, este artigo exaltaria apenas a forma como a estratégia do Benfica e alguma displicência do Sporting tornaram o jogo numa batalha nivelada a vermelho.
Importa – e mesmo a Rui Borges, numa análise mais fria – não esquecer a forma como as águias se impuseram aos leões, principalmente após uns minutos iniciais muito divididos onde o Sporting, com a ação de Pedro Gonçalves como terceiro médio, conseguiu ganhar vantagens e confundir as marcações do meio-campo das águias. A equipa verde e branca tinha maneira de sair da teia da pressão encarnada, mas deixou de o conseguir fazer e foi engolida em campo.

O Sporting acumulou vários erros na saída de bola, com passes falhados, demasiado curtos, e alguns problemas em ações técnicas simples como receções ou perfilhamentos. O Benfica cresceu, encurtou ainda mais o espaço e ganhou a disputa pelo esférico, assumindo a batuta de um jogo que Bruno Lage preparou com uma nuance que possibilitou às águias criar mais perigo.
O laboratório do treinador do Benfica preparou, durante a semana, uma equipa para jogar num sistema inicial que replicasse os posicionamentos dos leões e que tornasse o jogo numa batalha de duelos individuais. Ao contrário do que se sucedeu na Luz, com os extremos frequentemente nas entrelinhas, Bruma foi lançado para um papel que vinha embeber esse espírito e que tornava o extremo numa espécie de terceiro médio, com vários lances de aproximação e de continuidade, arrastando Gonçalo Inácio consigo.
A maior diferença foi Kerem Akturkoglu. Em vez de procurar uma tarefa semelhante, jogando neste mesmo espaço, o turco pode jogar sem bola. É assim que se valorizam as características de um Harry Potter cuja magia que espalha não é mais do que pragmatismo nas ruturas e ações de procura de baliza no terço. A velocidade de Eduardo Quaresma e Jeremiah St. Juste impediram o extremo de fazer mais estragos de um ponto de vista individual, mas coletivamente Akturkoglu permitiu abrir espaços para as ações de Bruma e Vangelis Pavlidis. O grego não teve um papel surpreendente no jogo, mas foi um dos destaques claros do Benfica, provando que está na melhor fase da temporada, ligando o jogo encarnado, abrindo espaços e definindo lances.

Com Orkun Kokçu liberto do papel de construtor pela esquerda, ocupado por Álvaro Carreras como central pela esquerda – um posicionamento que permite ao espanhol incursões interiores e uma função de lançador – o Benfica ganhou maior dinâmica perto da área contrária e aproximou o médio da baliza adversária. Marcou um golo e somou um par de ações valiosas para as águias que começaram a cair de produção assim que o número 10 se lesionou e Bruno Lage lançou Renato Sanches para o meio-campo.
Seria de esperar um recuar das linhas e uma maior atribuição da iniciativa ao adversário, mas o Benfica fê-lo demasiado cedo. Sem Kokçu, as águias ficaram sem ligação no seu jogo, uma tendência que se acentuou com as saídas de Vangelis Pavlidis e Bruma. O Benfica preparou-se para jogar sem bola e para conseguir esticar o jogo na frente, aproveitando o espaço que o Sporting deixaria com dois centrais exteriores de progressão, mas perdeu o controlo do jogo. Perdendo esse controlo, há dois fatores que justificam um crescimento tímido dos leões na reta final dos 90 minutos. Aos leões não se vislumbrava um desfecho épico – como viria a ser – mas as 1000 vidas apareceram no fim.
Geovany Quenda perdeu protagonismo no final da época. Não há aqui qualquer crítica ou julgamento a um miúdo de 17 anos que acumulou nas pernas mais minutos que quase todos os veteranos colegas do plantel. Entrou na segunda parte e mudou a atitude do Sporting para o jogo. Defensivamente fartou-se de galgar metros, de recuperar bolas e de acompanhar os adversários. Ofensivamente, trouxe algum rasgo individual que faltava e voltou a dar mostras da ousadia que o torna um dos mais entusiasmantes projetos do futebol português.

Depois apareceu Viktor Gyokeres, mas, antes do sueco indomável, destacou-se Francisco Trincão. Vinha de uma série de lances menos bem definidos, mas a jogada do golo do empate começa na condução do internacional português que se soltou de uma série de avançados e encontrou a máscara sueca. O Sporting procurou em demasia Gyokeres durante o seu jogo e fê-lo, principalmente, em circunstâncias que nunca beneficiariam o sueco.
O Benfica, que começou a defender Gyokeres com dois homens, conseguiu mesmo colocar apenas um jogador a marcar o número 9 dos leões e somar mais um homem à pressão alta, limitando ainda mais as bolas que chegavam ao ponta de lança leonino. Quando lá chegaram, António Silva conseguiu impor-se sem se impor. É esta a melhor foma de travar Gyokeres, controlando os impulsos, mantendo posição e reagindo de forma proativa, mas sempre mais passiva. Quando deixou escapar este controlo e foi à queima, o central viu Gyokeres saltar sobre ele e arrancar para uma corrida que só terminou quando já dentro de área, Renato Sanches fez a falta que Florentino Luís deveria ter feito quando a bola estava no meio-campo. E a partir deste momento, tudo mudou para o Sporting que, do alto do Olimpo que foi este final da época, viu as 1000 vidas chegarem para levar o jogo a prolongamento onde foi, manifestamente, superior.
Conrad Harder marcou um golo importante, ele que deverá ser mais exigido caso se confirme a saída de Viktor Gyokeres e Francisco Trincão voltou a evidenciar-se. Assistiu o dinamarquês no segundo e, depois de um trabalho cerebral do nórdico de quem já se quis Gyokeres, mas que só vingará se for Harder, sentenciou a partida com um golo esteticamente de um plano superior. Não há, na época do Sporting, melhor representante das vidas múltiplas e infinitas que Francisco Trincão, já meio moribundo com o cansaço das pernas, mas capaz de fazer a diferença. E, numa outra nota impossível de ignorar, Rui Silva voltou a ser determinante ao conseguir arrastar o jogo até aos descontos da segunda parte com um 1-0 no marcador. É um dos nomes que alavancou a temporada do Sporting.

Era impossível deixar fugir os méritos coletivos do Benfica e os deméritos que acabaram por atraiçoar os encarnados. Também o era no lado do Sporting que, novamente, viu as individualidades comparecerem às chamadas de resgate. Só assim se explica uma época terminou com o mais belo retrato das 1000 vidas.
BnR na Conferência de Imprensa
Bola na Rede: Antes demais parabéns pela vitória. Já aqui mencionou a estratégia um pouco diferente apresentada pelo Benfica hoje, também pelo papel dos extremos, com o Bruma entrelinhas a funcionar como um terceiro médio em alguns momentos e o Akturkoglu a tentar forçar a linha defensiva. Como analisou a exibição da linha defensiva do Sporting e qual o objetivo das alterações e de colocar dois laterais no papel de centrais exteriores?
Rui Borges: A linha defensiva esteve muito bem. Ao intervalo pedi para ser um bocadinho mais proativa no sentido de acompanhar quando as bolas andavam para trás. Estávamos a ficar um pouco baixos e depois o Inácio tinha de ir buscar o Bruma mais fundo e via a distância mais longa. Às vezes hesitava e criou-nos alguns problemas na primeira parte num ou noutro lance. A linha defensiva tinha de ser mais proativa em encurtar o espaço entre a linha defensiva e a linha média para que o Inácio tivesse menos espaço e fosse mais rápido a encurtar a distância. Quanto à estratégia do adversário não sei. Têm de lhe perguntar a ele, mas é algo que estávamos preparados e achávamos que ia fazer como acabou por acontecer. Entrou num jogo que gostamos, porque andamos muito a referências, não tanto no espaço, mas no homem. Tínhamos de ser competitivos e melhores nos duelos e em alguns momentos não fomos e deixámos alguma hesitação criar lances perto da área por essa falta de competitividade. Deixámos o Carreras conduzir duas vezes pelo espaço interior, mas a linha defensiva esteve muito bem. Em relação ao Iván [Fresneda] e ao Matheus [Reis] são dois jogadores que têm treinado ali. O Iván nunca jogou, mas treinou lá por várias vezes. Torna o jogo diferente porque estávamos a perder e em vez de criarmos desequilíbrios só com o Maxi [Araújo] e o Quenda, tínhamos dois centrais na largura que também são de corredor. Podíamos criar superioridades de 2X1 e criar ali mais oportunidades com mais homens, laterais e jogadores de corredor. O Gonçalo Inácio e o Quaresma não o têm, são centrais mais fixos, posicionais. O Matheus e o Iván andaram mais fundos, passaram mais vezes no corredor, mesmo sendo centrais da largura. Arriscámos um bocadinho mais e tentámos criar essa dinâmica.