«No futebol tudo gira em torno do resultado, ninguém avalia verdadeiramente o contexto» – Entrevista Bola na Rede a Paulo Gomes

Em entrevista ao Bola na Rede, Paulo Gomes traçou o percurso que tem vindo a construir como treinador principal, após uma carreira como jogador profissional em clubes como Vizela, Naval, Lousada e RM Hamm Benfica. Foi no Luxemburgo que deu os primeiros passos como treinador, rubricando duas subidas de divisão ao serviço do Muhlenbach e US Sandweiler. Na Arábia Saudita, conduziu o Al Khaleej à elite do futebol saudita e ao consequente título de campeão e, já no futebol brasileiro, liderou o Botafogo SP, onde defrontou por três vezes o Palmeiras de Abel Ferreira.

Bola na Rede: Olá Paulo Gomes. Antes de mais, obrigado por nos conceder esta entrevista.

Paulo Gomes: É um prazer estar aqui.

Bola na Rede: Teve uma carreira como jogador profissional, chegando inclusive a representar a Naval na Segunda Liga, embora não tenha passado pelos palcos de maior destaque do futebol português. Acredita que os jogadores que chegaram ao mais alto nível, como a Primeira Liga ou a Premier League, partem com vantagem quando se tornam treinadores, em relação àqueles que não atingiram esse patamar como jogadores?

Paulo Gomes: Penso que não. Há diversos fatores. Há treinadores que nunca jogaram ao mais alto nível e chegaram a treinar ao mais alto nível. E isso, por si só, já demonstra um pouco aquilo que estou a dizer. Creio que tudo tem a ver com a oportunidade. Agora, há aqui um ponto que, para mim, é importante: o facto de ter sido jogador. Eu posso ser um bom treinador sem ter sido jogador, claro que sim. No entanto, acredito que é fundamental ter passado muitos anos num balneário, ter jogado, ter vivenciado certas e determinadas situações… Acho que isso dá-te uma bagagem muito maior. Da mesma forma, jogar ao mais alto nível também te dá outra preparação para lidares com certos egos, com certas mentalidades, porque estiveste nesse contexto, conheces bem esse ambiente. Portanto, cada um, à sua maneira, com o seu percurso, com aquilo que viveu, acaba por trazer algo importante para a sua carreira. É assim que vejo as coisas.

«O senhor Ulisses Morais dizia-me que eu ia ser treinador».

Bola na Rede: Terminou a carreira no Luxemburgo, no final da temporada 2008/2009. Como é que surgiu essa oportunidade para ser treinador? Já tinha idealizado esse caminho ainda antes de terminar a carreira de jogador profissional?

Paulo Gomes: O Luxemburgo surgiu através de alguns contactos. Eu já queria sair de Portugal há algum tempo, porque sentia que tinha qualidade para mais. Surgiu essa possibilidade através de um agente. Estive quase para ir para os Estados Unidos, mas acabei por visitar o Luxemburgo a convite de um clube, gostei bastante do país e acabei por aceitar o desafio. Fui para a Primeira Liga, e como nunca tinha jogado numa primeira divisão, foi um convite que me agradou muito. Eu tive a sorte de ter bons treinadores. Bons homens e bons treinadores, com os quais fui moldando também um pouco o meu carácter e a minha forma de ser. Houve um em particular que me marcou bastante, o senhor Ulisses Morais. Mais tarde treinou na Primeira Liga, em clubes como o Marítimo, o Paços de Ferreira, a Académica, entre outros. Eu fui jogador dele, já com 24 anos (era para ter sido mais cedo), e ele, nessa altura, já me dizia que eu ia ser treinador. O mister deve ter visto qualquer coisa em mim, alguma liderança em campo, certamente. Eu não cheguei ao mais alto nível, mas fui praticamente sempre titular nas equipas por onde passei. Tive muitos jogos na carreira, e isso deveu-se sobretudo à minha capacidade de liderança e à atitude dentro de campo porque talento nato, provavelmente não tinha. Mas tinha outras valências que os treinadores achavam importantes. E, por isso, jogava.

«O Luxemburgo tem todas as condições para ter um campeonato ao nível da Liga Suíça».

Bola na Rede: Como é que caracteriza o futebol luxemburguês nos dias de hoje? É um campeonato pouco falado em Portugal, mas sente que tem margem para crescer?

Paulo Gomes: Penso que o Luxemburgo tem todas as condições, a nível de infraestruturas, para ter um campeonato muito melhor do que é. Não digo que possa ser uma liga top five, mas podia perfeitamente ter uma liga equivalente a um campeonato suíço. Está muito bem situado geograficamente e, nos últimos anos, tem funcionado um pouco como um ninho onde crescem jogadores que não têm oportunidades nos países à volta. Nesse sentido, é um país com margem para evoluir. Agora, existem algumas razões de ordem socioeconómica que dificultam esse crescimento. Há profissões com salários bastante elevados no Luxemburgo, o que faz com que o futebol, para muitas famílias, acabe por ser visto como algo secundário. Além disso, na minha opinião, a federação também não valoriza muito o campeonato nacional. Foca-se mais na seleção, que tem quase todos os jogadores a atuar fora do país. Mas, para mim, o futebol luxemburguês ainda está longe daquilo que pode vir a ser.

Bola na Rede: Quais foram os principais ensinamentos que levou da sua passagem pelo Luxemburgo como treinador?

Paulo Gomes: O Luxemburgo serviu-me para testar a minha ideia de jogo e, ao mesmo tempo, para ir construindo e moldando a minha forma de trabalhar. O futebol luxemburguês deu-me espaço para perceber a reação dos jogadores à minha metodologia e isso foi importante porque, num contexto com menos pressão do que nos outros campeonatos, consegui evoluir em várias vertentes enquanto treinador.

Bola na Rede: O que pesou na decisão de rumar à Arábia Saudita na temporada 2019/20?

Paulo Gomes: No futebol luxemburguês, passei por todos os escalões. Comecei a treinar os infantis quando cheguei ao país, e a partir daí fui subindo. Já na Primeira Liga, estava num projeto interessante, era um projeto a dois anos para chegar às competições europeias. No entanto, os diretores decidiram abortar o plano no final da primeira temporada. Foi aí que percebi que tinha chegado o momento de sair do país e abraçar outros horizontes. Senti que o futebol luxemburguês ainda ia demorar a crescer, e como eu não tinha esse tempo, tive de correr atrás dele. A oportunidade na Arábia Saudita surgiu através de um convite do dono do Al Wehda. Tivemos uma reunião, eu apresentei a minha forma de trabalhar, ele gostou e, a partir daí, fechámos contrato. O objetivo era organizar toda a estrutura de formação do clube e conseguimos levar cerca de 18 treinadores portugueses para a Arábia Saudita. Naquela altura ainda não era o que é hoje. A partir do momento em que o Cristiano Ronaldo foi para lá, houve um grande boom, especialmente em Portugal, porque fora de Portugal, já se falava bastante do futebol saudita. Mas foi, sem dúvida, um bom período no Al Wehda como diretor técnico. Para mim, a experiência no Al Wehda foi essencial no aspeto cultural, perceber o que o jogador saudita gosta, quais são as suas qualidades táticas, o nível de profissionalismo e todas essas vertentes. Com esse conhecimento, fui moldando também a minha forma de trabalhar no país.

Bola na Rede: Liderou três equipas na 2ª Liga Saudita entre 2020/21 e 2022/23, tendo conquistado a subida de divisão e, consequentemente, o título de campeão com o Al Khaleej. Que significado teve essa conquista para si?

Paulo Gomes: Foi uma temporada extremamente difícil, mas de muito crescimento e superação. Foi um período de grande aprendizagem porque o clube queria alguém que falasse francês, inglês e português, além de ter experiência com a cultura árabe. Eu preenchia esses requisitos, já que havia jogadores que falavam apenas uma dessas línguas. Conseguimos organizar bem a equipa, especialmente defensivamente, que era um ponto fraco antes da minha chegada. Tivemos 21 jogos sem sofrer golos de bola parada, 11 jogos sem sofrer golos, o melhor ataque da competição. Tudo isso sem ter o maior orçamento, num clube que enfrentava dificuldades financeiras, com salários em atraso, e onde eu cheguei sozinho, sem levar equipa técnica. A minha equipa técnica era composta por um treinador-adjunto esloveno, outro tunisino, treinador de guarda-redes croata, fisioterapeuta tunisino e restante staff saudita. O desafio cultural foi enorme e exigiu uma grande capacidade de adaptação.

Paulo Gomes Arábia Saudita
Fonte: Arquivo Paulo Gomes

Bola na Rede: Essa experiência de lidar com culturas tão diferentes foi um fator importante para si enquanto treinador?

Paulo Gomes: Sem dúvida. Implementar as minhas ideias num contexto onde o staff e jogadores não conheciam o processo foi complicado. Muitas vezes questionavam o porquê de seguirmos um caminho e não outro. Não foi fácil, mas a realidade é que conseguimos e isso foi fundamental para atingir o que atingimos.

Bola na Rede: Houve alguma razão profissional que o impediu de continuar com o clube na 1ª Liga?

Paulo Gomes: Sou contra sermos formatados enquanto seres humanos e, na altura, senti que a mentalidade dos dirigentes do clube estava formatada. A ideia era que um treinador da 2ª divisão não podia subir para a 1ª porque era ‘técnico de 2ª divisão’. Isso não faz sentido para mim. O clube decidiu trocar de treinador e eu segui o meu caminho. Fico feliz que o clube tenha estabilizado na 1ª liga, porque sei o esforço que foi feito para chegar a esse objetivo.

Bola na Rede: Na sua opinião, o que motivou o futebol árabe a entrar neste ciclo de investimento?

Paulo Gomes: Quando cheguei à Arábia Saudita em 2019, já existia um fosso entre os pequenos e os grandes clubes, como em qualquer país. Os principais clubes, como Al Ittihad, Al Nassr, Al Hilal, Al Ahli, Al Shabab, disputavam os primeiros lugares. Os outros clubes tinham condições muito semelhantes, tanto na 1ª como na 2ª liga. O governo montou infraestruturas para os clubes, mas as condições são basicamente as mesmas para todos: cidade desportiva, estádio municipal, etc. O que mudou claramente foi a entrada do PIF, que começou a controlar os maiores clubes e aumentar o investimento. Ainda existem problemas, como salários em atraso. Também não concordo com aquela ideia de que a liga da Arábia Saudita é uma das melhores do mundo. Ainda assim, a visão ‘2030’ do Príncipe está a valorizar significativamente o país e a abrir portas para o Ocidente, utilizando o desporto, nomeadamente o futebol, como uma das principais ferramentas para essa transformação. No entanto, as equipas pequenas precisam de mais apoio para que a liga possa efetivamente crescer e competir num patamar semelhante a uma Premier League por exemplo, onde equipas médias conseguem competir com as grandes. Hoje, clubes que sobem da 2ª liga ainda enfrentam muitas lacunas, como questões de infraestruturas e financeiras. O Al Khaleej, por exemplo, não tinha ginásio, o campo de treinos também não tinha as melhores condições. Com a subida de divisão e novos jogadores, essas condições melhoraram, mas as diferenças financeiras e estruturais continuam a ser um desafio, já que o Estado é quem financia grande parte e acaba por canalizar menos apoio para os clubes menores.

Bola na Rede: Como é olha para esta evolução do futebol na Arábia Saudita?

Paulo Gomes: Analisando a primeira e a segunda liga da Arábia Saudita, é notório que hoje atraem muitos mais nomes de peso do que há cinco anos. O maior boom aconteceu quando o Cristiano Ronaldo assinou pelo Al Nassr, há cerca de três temporadas. Na segunda liga, por exemplo, houve uma fase em que só eram permitidos três estrangeiros, depois aumentaram para cinco e, na última época, chegou a haver seis estrangeiros, penso eu. Agora, a regra vai voltar a reduzir esse número para três novamente. Quando diminuis a qualidade e quantidade dos estrangeiros, automaticamente a qualidade e competitividade da liga baixam, mas também o investimento financeiro. Por isso, acredito que, especialmente na segunda liga, haverá uma queda na qualidade técnica, embora tenho a ideia de que a competitividade se mantenha elevada. Quanto à Primeira Liga da Árabia Saudita, penso que o nível se manterá, mas fica a questão se terão capacidade para desenvolver as equipas mais pequenas, de modo a tornar a liga mais competitiva como um todo. Um ponto fundamental para mim é que as condições salariais sejam cumpridas. Não pode existir uma liga profissional onde, por exemplo, um médico da equipa não viaja na última jornada porque os salários estão em atraso e a equipa desce de divisão. Isso simplesmente não acontece nas melhores ligas do mundo. Portanto, não podemos afirmar que a Arábia Saudita seja atualmente uma das melhores ligas do mundo.

Arquivo Paulo Gomes
Fonte: Paulo Gomes

Bola na Rede: No final do ano de 2023, decidiu liderar o Botafogo, da Série B. Como avalia o percurso? Conseguiu implementar as suas ideias num contexto tão competitivo como é o futebol brasileiro?”

Paulo Gomes: Foi um grande desafio. Fácil nunca é. A disponibilidade para levar o teu staff é muito importante. Se não tens essa oportunidade, o teu trabalho vai ser em dobro, em triplo, porque tens de convencer mais pessoas a acreditarem na tua ideia e isso demora muito mais tempo, obviamente. Quando chegamos ao Brasil, tivemos três semanas para acabar de montar um plantel que tinha feito uma má temporada. Além disso, ainda fizemos a pré-época, que normalmente são três semanas, para começar a jogar no Campeonato Paulista, que é o campeonato mais difícil do mundo, sem dúvida. É como se estivesses a liderar uma equipa da 3ª divisão e jogares contra o Porto ou contra o Braga. Depois, acabas por voltar a jogar com uma equipa do mesmo nível. No Brasil é ainda pior, porque as distâncias são muito maiores, e a recuperação é mais difícil. Nós sempre tivemos todas as condições para recuperar os jogadores, mas é muito difícil tu disputares jogos com as melhores equipas brasileiras. Felizmente, tivemos essa oportunidade e conseguimos fazê-lo com distinção. O próprio Abel Ferreira foi uma das pessoas que valorizou o nosso trabalho, e acho que conseguimos fazer um trabalho com qualidade.

«O Campeonato Paulista é o mais díficil do mundo».

Bola na Rede: Com todas as experiências acumuladas nos diferentes contextos por onde passou, sente que hoje está mais preparado para enfrentar realidades exigentes e construir projetos sustentáveis e sólidos em clubes?

Paulo Gomes: Eu já liderei muitos projetos desses (risos). Aliás, é precisamente por isso que, neste momento, não estamos a trabalhar. Já chega de projetos com dificuldades, já enfrentámos muitos e conseguimos dar solução a praticamente todos.  As fases más passam, com maior ou menor apoio das direções. E quanto maior o carácter de um presidente, maior a capacidade de acreditar no trabalho de um treinador. Há treinadores que vivem o clube 24 horas por dia, e há outros que só estão lá durante o horário de trabalho, digamos assim. Quando chegamos ao Botafogo SP, fomos competitivos. Batemos de igual para igual com as melhores equipas brasileiras. Jogámos três vezes contra o Palmeiras, duas no Allianz Parque e uma em casa e lutámos sempre até ao último minuto. Jogámos três vezes contra o Santos, ganhámos uma, perdemos duas por 1-0, mas sempre a disputar o jogo até ao fim. Também empatámos em casa do Red Bull Bragantino, com o Pedro Caixinha, uma equipa que tinha feito uma temporada espetacular no Brasileirão. Sinto que as pessoas não têm noção do que é o futebol brasileiro. Disputar seis jogos até ao último minuto com estas equipas é extremamente difícil. Só quem está lá é que percebe. A pressão, o fanatismo…. Jogar no Allianz, com 50 mil pessoas a empurrar o adversário para a vitória, quando tu estás na Série B, não é nada fácil.

Bola na Rede: Em algumas entrevistas, chegou a elogiar o jogador brasileiro não só pela qualidade técnica, mas também pela parte tática. Sente que o futebol brasileiro hoje em dia já se equipara ao topo do futebol europeu? Acredita que o Mundial de Clubes foi importante para perceber onde é que estas equipas se posicionam ao nível dos clubes europeu?

Paulo Gomes: Em relação ao Mundial, é difícil dizer quando comparamos dois contextos tão diferentes. O futebol europeu está no final da temporada e o brasileiro a meio. Na minha opinião, isso faz toda a diferença. Quem jogou sabe: jogares é jogares, independentemente do nível. Quando chegas ao fim de uma época estás cansado, queres férias, estás a pensar para onde vais viajar, e sabes que, em breve, tens de estar outra vez no teu máximo físico. Portanto, essa vertente do Mundial pode ter sido mais competitiva talvez por isso. Depois, acho que taticamente as equipas brasileiras também melhoraram, nomeadamente com a presença de treinadores portugueses no Brasileirão. Isso não se pode negar. Nos últimos três ou quatro anos, houve vários títulos conquistados por portugueses, e com equipas diferentes. Ganhou o Abel Ferreira, depois o Artur Jorge, e agora o Leonardo Jardim também está a destacar-se. Claro que estamos a falar de clubes com capacidade financeira, grande capacidade de recrutamento e muitos adeptos, mas é inegável que o campeonato brasileiro é extremamente competitivo. E o Mundial acaba por dar esses dois sinais. Quanto ao aspeto tático do jogador brasileiro, acho que eles têm todas as condições. Um dos problemas do futebol brasileiro é mesmo o processo de formação. A CBF não pode ter treinadores não profissionais nas camadas jovens. O Brasil é pentacampeão do mundo, devia ser exemplo para o futebol mundial, e, em algumas áreas, é. Têm profissionais de qualidade, fazem coisas que em Portugal não se fazia até há pouco tempo. Mas falta profissionalizar todo o processo de formação. Ter profissionais a tempo inteiro nas camadas jovens. Acho que essa interação com treinadores de outras escolas, especialmente a portuguesa, tem sido muito positiva. Quem está fora não tem noção, só quem está dentro. É uma loucura. Jogas de três em três dias. Chegas de uma viagem de seis ou oito horas, ganhaste o jogo, mas quando entras no gabinete já lá está o relatório do próximo adversário. Nem dá para desfrutar da vitória. No fundo, o jogador brasileiro tem qualidade e se lhe deres o ‘mapa’, ele cumpre. Às vezes há alguma resistência, talvez pela falta de hábito ou formação tática. No Botafogo SP tivemos um jogador fortíssimo que podia render muito melhor como ala numa linha de cinco. Ele achava que era extremo, só do meio-campo para a frente. Tentei mostrar-lhe que partindo de trás poderia ser ainda mais forte. Custou-lhe a adaptar-se. Na Europa, se calhar, em duas ou três semanas já estavam a cumprir perfeitamente. Ali demorou três meses. Não porque não saiba, mas porque nunca foi ensinado a jogar assim. É mais esse o problema. Porque em termos de talento, são fantásticos.

Paulo Gomes
Fonte: Arquivo Paulo Gomes

Bola na Rede: É inegável a crescente presença de treinadores portugueses no futebol brasileiro, com Jorge Jesus a abrir caminho para vários outros nomes. Considera que esta ‘onda portuguesa’ contribuiu para mudar a mentalidade dos clubes brasileiros, que tradicionalmente viviam num ambiente de constante ‘troca de cadeiras’?

Paulo Gomes: Não há como fugir disso. Por exemplo, trabalhar com o Sr. Paulo Pelaipe (diretor-executivo) foi fantástico para mim porque ele já tinha trabalhado com o Jorge Jesus. Ele conhecia a escola portuguesa, sabia a nossa capacidade de trabalho. E, quando a fase má chegou, ele sustentou o projeto. Isso é muito importante. Todos os clubes passam por momentos negativos numa temporada. Um campeonato não são só cinco jogos. Podes ter a melhor defesa do Paulistão, mas quando chegares ao jogo 30, tudo pode mudar. Eu referia isso muitas vezes nas conferências de imprensa. Depois de três ou quatro jogos sem ganhar, já se começa a colocar em causa o trabalho do treinador. Na minha perspetiva, tem de haver uma sustentabilidade no trabalho. Agora, isso depende muito da capacidade dos dirigentes para avaliarem o que está a ser feito. Não estou a dizer que se deve manter um treinador independentemente de tudo, mas três ou quatro derrotas não podem ser suficientes. O calendário também influencia muito. É preciso avaliar o contexto: contra quem jogaste nessa fase? Quantas competições estavas a disputar? No nosso caso, estávamos em quatro. Esta temporada, o Botafogo SP está a disputar apenas uma. Já vi treinadores a serem despedidos depois de perderem contra os grandes, em deslocações muito difíceis. E depois vem outro treinador, que apanha um ciclo de jogos contra equipas da parte de baixo da tabela, ganha dois ou três jogos e parece que mudou tudo. Mas é normal, o grau de dificuldade era diferente. Acho que essa análise tem de ser feita com mais critério.

Bola na Rede: No Brasil, sabemos que há uma grande densidade de jogos. Como foi para si lidar com esse desafio?

Paulo Gomes: Esse foi o grande handicap que nós tivemos. Há um aspeto fundamental na minha perspetiva e na minha experiência, que é a capacidade de formar uma boa equipa e isso começa muito cedo. No futebol brasileiro, o mercado de transferências é muito agitado. Há muitas trocas entre clubes. Nós, além do trabalho com o plantel principal, tivemos uma grande capacidade de observação. Mal cheguei, fui ver os sub-20, e percebi que havia ali um jogador muito interessante para integrar na primeira equipa: o João Costa. Desde Sócrates e Raí que o clube não colocava um jogador na seleção brasileira e estamos a falar de dois craques mundiais. O João Costa fez mais de 30 jogos na Série B com 19 anos, foi convocado para a seleção sub-20 e no final da temporada foi vendido ao Fortaleza. Tivemos de nos adaptar rapidamente. Desenvolvi uma espécie de “ciclo de inteligência tática”, chamei-lhe assim porque, com tão pouco tempo entre jogos, tens de ser muito inteligente e perspicaz. Não dá para desligar o chip. Termina um jogo e já tens de estar a preparar o próximo. E ainda assim, tens de planear uma estratégia vencedora. Isso exige um foco total e uma grande capacidade de análise.

«Não é fácil um treinador português adaptar-se a contextos como a Arábia Saudita e o Brasil ».

Bola na Rede: Treinou em três realidades completamente distintas. Como é que se gere essa adaptação a novas culturas, a novas exigências, a novas mentalidades, sem perder a sua identidade como treinador?

Paulo Gomes: Há, acima de tudo, uma grande necessidade de ter capacidade de adaptação. Não é fácil um treinador português adaptar-se a contextos como a Arábia Saudita e o Brasil e há vários casos. No meu caso, já tinha ido ao Brasil há muitos anos. Já tinha estudado por lá para conhecer melhor os treinadores brasileiros, perceber como pensam, como jogam, como reagem. E isso foi muito importante quando entrámos no campeonato brasileiro. Mas, sobretudo, aquilo que tu precisas, acima de tudo, é de uma boa equipa. Isso ajuda-te de uma forma incrível. Se tiveres uma boa equipa, tens meio caminho andado porque uma boa equipa valida as tuas ideias. Agora, se tiveres boas ideias, mas depois, por isto ou por aquilo, não consegues resultados, não vais conseguir afirmar-te porque, no futebol, tudo gira em torno do resultado. E esse, para mim, é o grande problema. Só se olha para o resultado. Ninguém avalia verdadeiramente o contexto. Até há pouco tempo, um clube grande contratou um treinador estrangeiro, chegou a Portugal e as coisas não correram bem. Mas porquê? Era mau treinador? Ou a estrutura não estava preparada? Era o plantel? Foi tudo ao mesmo tempo? São muitas variáveis. E normalmente, é mais fácil apontar o dedo só ao treinador. Hoje em dia, se não tens sucesso, és considerado fraco. As pessoas pensam assim. Mas as coisas não são assim tão simples. Da mesma forma que, se ganhares tudo, também não és automaticamente o melhor. Há treinadores que já desceram de divisão e, anos depois, ganharam tudo. Eles já eram bons, o que mudou foi o contexto. O início da carreira do Roberto De Zerbi foi marcado por muitas derrotas, muitas dificuldades. No meu caso, comecei a carreira com 26 jogos sem perder. E achei que era treinador. Depois, liderei uma equipa da 3.ª divisão, subi à 2.ª Liga e coloquei a equipa em primeiro lugar só com vitórias. Nessa altura, pensei: Eu inventei o futebol (risos). Mas mais tarde fui para a Primeira Liga treinar o último classificado… e comecei a perder. E foi aí que percebi: afinal, não tinha inventado nada. (risos) A qualidade do treinador não está apenas nas vitórias. O futebol é mais complexo do que isso.

Bola na Rede: Falando em contextos exigentes e depois de tudo o que viveu e aprendeu, sente-se hoje mais preparado para abraçar um desafio de maior dimensão?

Paulo Gomes: Sem dúvida. É isso que procuramos neste momento. Um desafio que esteja ao nível do que já demonstrámos. Trabalhamos diariamente para evoluir, acompanhando novas tendências, observando treinadores, estilos de jogo e queremos que o próximo passo reflita essa ambição e essa qualidade. No Brasil, fizemos 44 jogos, disputámos quatro competições com um plantel limitado, e muitos dos titulares que jogavam comigo, hoje estão na Série C ou até sem clube. E ainda assim, conseguimos competir com os grandes do futebol brasileiro. Por isso, estamos a fazer uma gestão de carreira cuidada. Queremos um projeto que faça sentido, que valorize o nosso trabalho, que tenha estrutura, que tenha uma visão clara. Não estamos focados na parte financeira. O que queremos é sustentabilidade e uma ideia de futebol alinhada com aquilo em que acreditamos.

Bola na Rede: Há alguma liga onde gostaria particularmente de trabalhar?

Paulo Gomes: Gostava muito de trabalhar em Portugal, na Primeira Liga. É o meu país e, como jogador, não consegui atingir esse patamar. Houve conversas, mas nunca se concretizou. Mas não estabeleço objetivos fixos. Trabalho com a realidade. Quem me contratar vai ter um profissional competente, dedicado, com capacidade e paixão. O que prometo é trabalho e qualidade. Aonde vamos chegar? Só Deus sabe. O importante é continuar a crescer, continuar a ser melhor a cada dia. E que o próximo projeto possa ser um passo em frente.

Paulo Gomes Botafogo SP
Fonte: Botafogo SP

Bola na Rede: Olhando para o futebol nacional e para a próxima temporada, quem considera que parte em vantagem na luta pelo título entre as equipas portuguesas?

Paulo Gomes: É sempre relativo, porque o futebol tem muitas variáveis. Mas, em geral, quem parte em vantagem costuma ser quem mexeu menos no plantel e manteve a continuidade do treinador. Neste momento, parece-me que o Sporting é a equipa que menos alterações fez. Contudo, perdeu um jogador importante como o Viktor Gyokeres, o que representa uma grande perda no aspeto goleador. O treinador Rui Borges não vai perder qualidade, mas é certo que a equipa vai marcar menos golos, a não ser que contratem alguém com capacidade de fazer os golos que o Viktor Gyokeres fez. Isso é evidente e o Rui Borges sabe perfeitamente disso. Quanto ao FC Porto, houve uma mudança interessante. A ver pelos treinos, a equipa parece ter mais intensidade e parece estar a reforçar-se melhor comparativamente à época passada. É difícil imaginar que façam pior do que fizeram em 2024/25, por isso o trabalho do Francesco Farioli está protegido e certamente vai apresentar melhorias. O Benfica é um clube com muita capacidade e acaba de contratar um profissional que conheço bem, o Mário Branco. Penso que ele vai trazer mais competência, qualidade e muito profissionalismo ao clube. Não que os anteriores não tivessem, mas o Mário Branco conheço e sei que vai elevar o nível. Por isso, é difícil apontar um favorito claro. Acredito que a luta será a três, com o Braga também a evoluir bastante a nível estrutural e a apresentar-se como um sério candidato para dar luta.

Bola na Rede: Tendo em conta que enfrentou Richard Ríos em três ocasiões, que avaliação faz do seu potencial e das suas características?

Paulo Gomes: Richard Ríos é um jogador incrível, difícil de parar no meio-campo, na minha perspetiva um verdadeiro box-to-box com um remate fortíssimo e uma meia distância impressionante. Estou curioso para o ver jogar semanalmente em Portugal, apesar do calendário apertado devido à Champions. Ele traz muita qualidade ao meio-campo do Benfica, sem dúvida. É um motor com técnica, força e inteligência tática, que aprendeu muito com o Abel Ferreira nos últimos anos. 

Bola na Rede: Outro dos grandes talentos emergentes do futebol brasileiro é o Estevão. Qual foi a sua impressão sobre o jogador quando o enfrentou?

Paulo Gomes: É um fenómeno. Olhas para ele e vês um miúdo franzino, mas com a bola colada ao pé resolve situações de 2 ou 3 contra 1 com uma facilidade tremenda. É muito imprevisível, tanto vai para dentro como para fora. Para mim, é o melhor jovem da atualidade, sem dúvida. A par do Lamine Yamal, vai ser um dos melhores do mundo, não tenho dúvidas. Muito craque. Resolveu muitos jogos do Palmeiras na época passada numa liga que é muito física, como é a brasileira. Acho que vai ter imenso sucesso em Inglaterra.

Bola na Rede: Para finalizar, vimos recentemente o FC Porto pagar 20 milhões de euros por Viktor Froholdt e o Benfica dar 27 milhões por Richard Ríos. Enquanto treinador, prefere investir em jogadores com maior margem de progressão ou em atletas já mais feitos, com rendimento imediato?

Paulo Gomes: Eu cheguei a jogar na formação do FC Porto, com oito anos, e lembro-me de ir ver todos os jogos às Antas. O Porto, na altura, tinha o Branco, titular da seleção brasileira, o Celso, o Jardel… O Benfica tinha o Elzo, o Ricardo Gomes, o Valdo, todos titulares da seleção brasileira. O Sporting chegou a ter o Ricardo Rocha, campeão do mundo. Ou seja, os grandes portugueses iam buscar jogadores feitos às melhores equipas do Brasil. Não eram promessas, eram certezas. O Real Madrid, por exemplo, foi buscar o Endrick. Tem 19 anos e é um grande jogador, eu joguei contra ele, conheço-o bem. Mas está preparado para jogar já no Real Madrid? Na minha opinião, não. Tal como o Casemiro também não estava quando saiu do Brasil. E porque é que o Casemiro se fez jogador? Porque passou pelo FC Porto, onde teve uma temporada sólida, jogou com regularidade, ganhou maturidade. Isso é o que faltou, por exemplo, ao João Félix. O Atlético Madrid contratou-o, mas talvez precisasse de mais um ano de competição regular num contexto como o Benfica, onde era titular e podia continuar a crescer. A verdade é que um jogador jovem precisa de jogar. Precisa de acumular minutos, de tomar decisões em campo, de errar e aprender. Isso molda a estrutura mental para aguentar a pressão e os desafios num clube maior, com outras exigências. Agora, o que noto é que muitos clubes grandes estão a saltar etapas. Querem poupar na contratação, mas depois pagam salários altíssimos e o jogador não joga, porque há jogadores melhores. Acho que os clubes devem pensar em reduzir a incerteza. Por exemplo, entre pagar 20 milhões por um jovem promissor ou 27 milhões por alguém como o Richard Ríos, que já é titular da Colômbia e tem rendimento consistente, o que é melhor? À partida não sabemos, mas o risco é menor com o jogador mais feito. O Richard Ríos vem de temporadas consolidadas, habituado a uma metodologia europeia com o Abel Ferreira, conhece a intensidade e dificilmente vai estranhar o ritmo do campeonato português. O Victor Froholdt, por exemplo, pode ser excelente, pode valer 80 milhões daqui a três anos, mas o risco é maior… O próprio Richard Ríos também pode ser vendido por 80 milhões se fizer uma grande época. O caso do Gyokeres é outro exemplo: o Sporting pagou 20 milhões, teve um rendimento fantástico e foi vendido por mais de 65 milhões de euros. É esse tipo de aposta que eu acho que vale a pena. Não digo que contratar jovens seja um erro, longe disso, mas os clubes têm de medir bem o risco. Os jogadores mais jovens precisam de jogar.

Bola na Rede: Obrigado pela entrevista Paulo Gomes.

Paulo Gomes: Foi um prazer.

Rodrigo Lima
Rodrigo Limahttp://www.bolanarede.pt
Rodrigo é licenciado em Ciências da Comunicação e trabalha atualmente na área do jornalismo desportivo. Apaixonado pelo mundo do desporto, tem no futebol a sua principal área de interesse e análise.

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